ESTRELAS FEIAS 1/12
ESTRELAS FEIAS I [abril de 2008]
Talvez exista uma possibilidade
de que eu tenha surgido neste dia:
que, anteriormente, fosse só vazia
a minha vida e sem realidade.
Talvez exista uma probabilidade
de que quanto eu recordo não seria
mais que memória implantada por magia,
nada, afinal, de qualquer continuidade.
Se for assim, talvez quanto a memória
registre do passado seja vão,
criado agora e eu nem sei por quem.
Sem que seja real esta minha história,
e os sentimentos deste coração
não se dirijam para mais ninguém.
ESTRELAS FEIAS II
Se for assim, se o mundo é repentino,
se minha consciência surgiu aqui e agora,
se toda a remembrança de um outrora
perdura igual ao repicar de um sino.
Se for alguém que imagina o meu destino,
mas que nunca reconheço nesta hora,
como é vaidade o que passou, embora
tenha surgido em minha senda: peregrino
pelas brisas do arco-íris; andarilho
pelas ondas da geada; sedentário
pelas imagens do sonho; um eremita
nas colinas do vento; um peralvilho
na corte da insolência; um herbanário
da digitalis que o coração palpita.
ESTRELAS FEIAS III
Fico a cismar, se realmente alguém
ou algo imaginou a minha presença,
se há qualquer razão de malquerença
ou se feliz eu possa ser, também;
porque, se me inventaram, mais além,
se tudo isso que sinto, perca ou vença,
é só inútil, indiferente ofensa
do galanteio ao nevoeiro do porém,
então, por que pensar no meu futuro,
se tudo é maya, a bruma da ilusão
e nada está, afinal, predestinado,
pois ocorra o que houver, esse monturo
de encantos vagos, como a anunciação,
se desfará num bocejo ensimesmado.
ESTRELAS FEIAS IV
Quando me lembro dos versos dos antigos,
que me foram exemplos e mentores,
quando recordo seu sofrer de amores,
sobrevivendo a todos os perigos,
nos pergaminhos e papiros, figos
de velhas árvores secas, estertores
de parcerias perdidas, vinho e dores
a que poemas de fuligem dão abrigos,
outros raspados por crueza, enfim,
dos palimpsextos em medíocre litania
a ser escrita, de valor tão nulo,
apenas penso: quem lembrará de mim,
daqui a dois mil anos...? Todavia,
recordo Sappho e lembro ainda Catullo.
ESTRELAS FEIAS V – 13 Out 2022
Balzac eu sei que bem se entristeceu,
porque sua esposa, que o amou bastante,
confessou-lhe com um ar desconcertante,
que entre o autor e o homem a quem se deu,
bem mais amou ao escritor que leu,
que ao homem que via nesse instante;
a sua confiança em si periclitante,
contra si mesmo o autor estabeleceu
a diferença, que havia mil leitores,
que amaram o escritor, mas a princesa
queria amasse esse homem a seu lado,
pois suas palavras seriam duradouras,
enquanto ele, Balzac, com certeza,
por pouca gente, no final, seria amado!
ESTRELAS FEIAS VI
Mas eu não penso assim. Estes mil versos
são a parte verdadeira de mim mesmo,
estas palavras que espalhei a esmo
são carne e sangue em digitar conversos.
Se uma mulher diga que ama esses dispersos
versos de amor, bem mais que amasse a mim,
porém me dê seus beijos mesmo assim,
entre seus braços acharei mimosos berços.
E que me importa se é paixão por minha poesia,
se esta é muito mais que o corpo gasto?
Eu sou os cantos que esparzo por aí,
muito mais que esta imagem que me ria
do fundo de um espelho, em lustro casto
deste meu corpo, em que de fato nunca cri.
ESTRELAS FEIAS VII
Pois como disse antes, eu nem sei
se por acaso possuo uma existência,
fora de teu olhar, nessa pendência,
porque são teus os versos que enviei.
E se nem te conheço, mas te dei
essa versão de minha impenitência,
é o teu olhar, ao ler, que dá valência
aos cem poemas secos que espalhei,
porque tudo quanto escrevo é um arcabouço,
és tu que pões o teu retrato na moldura,
nada escrevi, a não ser a sugestão.
Teus sentimentos são a carne e o osso,
enches os versos com teu senso de ternura,
que brota meigo de teu coração...
ESTRELAS FEIAS VIII
Por igual que esses versos que são teus,
completados por teu constrangimento,
vivificados por teu puro julgamento
os mesquinhos pensamentos que são meus,
não são as pregações de fariseus,
cada um deles aguarda abrandamento,
para escapar-se de seu confinamento
no meu espaço vazio por trás dos véus.
Portanto ,o quanto lês, tu que escreveste,
são tuas as lamúrias e alegrias,
não sou eu mesmo mais que tua ilusão,
que dentro de tua mente concebeste,
no interpretar das pobres elegias,
com que te perturbei sem compaixão!
ESTRELAS FEIAS IX – 14 Out 2022
Não me posso queixar de minha vida,
embora versos repassem agonias
e outros teçam meu tédio em alegrias,
pois todos me escaparam sem medida.
Houve coisas que disse de incontida
tolice, concentrada em homilias,
mudei de humor igual troquei de dias,
a toda humana opinião cedi guarida.
Portanto, não te apresses a julgar-me,
errado ou certo fosse o que escrevi,
ou que fossem de um herético as loucuras,
se a mim mesmo surpreendi ao enfrentar-me,
por que não espantaria mais a ti,
vendo em meus versos tuas paixões mais puras?
ESTRELAS FEIAS X
Só posso então dizer que me inventaste,
isso que pensas de mim é bem verdade,
visão total de minha irrealidade,
pois foste tu que tudo ali imaginaste
e quando pelos versos te espantaste,
é que neles leste a tua personalidade;
a tua interpretação tem qualidade
no julgamento final que decantaste.
Hoje és minha acusadora e minha juíza,
minha defensora por igual no tribunal,
o júri inteiro e cada testemunha,
mas eu não passo da mais leve brisa,
não existe réu nessa tua corte triunfal,
senão aquele que tua visão assim alcunha.
ESTRELAS FEIAS XI
Mas se me julgas acaso irresponsável,
por me eximir de quanto disse e fiz,
não fui senão o teu arco-íris gris,
tua é a aquarela e o quadro memorável,
eu sou somente o agente imponderável
que lançou ideias para quem bem quis,
palavra branca feita em pó de giz,
que o apagador desmancha de implacável.
O que resta de mim é aquela poeira,
que se acumula perante o rodapé,
mil poemas em mistura indecifrável,
mas a quimera que te tocou certeira,
essa se enrosca nas dobras de tua fé
e permanece para sempre inconquistável.
ESTRELAS FEIAS XII
E nem sequer a vida vim pedir
que só tua mente poderá me dar,
que não me importo com viver ou descansar,
não albergo culpas nem alvos a atingir;
porém se dentro de ti eu persistir,
nessa lembrança criada em teu pintar,
não sou fantasma para te assombrar,
só um fragmento de teu próprio perquirir.
E pouco importa que me venha a desfazer,
quando deixares esvair-se minha lembrança,
eu só desejo é que recries os meus versos,
sem que meu nome precise se escrever,
pois os meus sonhos foram reconversos
pela tua alma, em sua total pujança!