TRILHA DE SONETOS LXXVII– DIÁLOGO COM A PINTURA “RETIRANTES - 1944", de Cândido Portinari

 

*OS RETIRANTES*

 

Raquíticos humanos arquejantes,

cansados da aspereza nordestina,

resolvem contornar a triste sina,

deixando para trás os maus instantes...

 

As condições precárias e inconstantes

açoitam suas carnes, e a retina

enxerga o agouro da ave de rapina,

com olhos assustados e hesitantes!

 

Crianças indefesas, tão sofridas,

fantasmagóricas, retêm feridas

marcadas pelas dores do tormento.

 

Nos traços expressivos desses rostos

(dos nove retirantes) só desgostos

e a sede de purgar o sofrimento!

 

Aila Brito

 

 

*MISERÁVEIS*

 

Vagando pelas plagas da miséria,

Em confissões de provação nefasta,

Com a postura vaga, triste e séria,

Os pobres vivem na penumbra vasta!

 

Na névoa da desgraça deletéria,

A geração de miserável casta,

Em gradativa morte da matéria,

Lamenta o seu destino que se arrasta!

 

Sem luz, parece o mundo um chão de gelo,

Enquanto caem fios de cabelo

Das criaturas, nossos semelhantes...

 

O inferno, em seu vivíssimo modelo,

Assusta e até nos causa pesadelo,

Na tela da pintura "Retirantes"!

 

Ricardo Camacho

 

 

*RETIRANTES*

 

Quem vê um retirante, enxerga a fome

somada a tal rosário de amargura,

que a dor, que lhe devasta e lhe consome,

sombreia a débil voz que a fé murmura.

 

Diante da penúria, tudo some,

na vista de quem sofre a desventura.

Enterra a sua terra e o próprio nome…

na réstia de esperança, Deus lhe cura!

 

Quem vê um retirante, em retirada,

levando muito pouco ou quase nada,

por certo, não percebe, na bagagem,

 

o bem mais precioso desta vida:

lembranças de importância desmedida:

prazeres que o presente fez miragem…

 

Elvira Drummond

 

 

*FOME DE ESPERANÇA*

 

As dores de deixar a própria terra

rendem-se à imensa fome que os domina,

e uma miséria trágica e assassina

move-os na retirada que os desterra.

 

Nos rostos macilentos vê-se a guerra

que travam contra a morte e a vil ruína.

Tristonha e pobre gente peregrina,

um sonho, dentre as lágrimas, enterra.

 

Os olhos das figuras claudicantes

mostram a sorte horrenda que maltrata

a todos, aos idosos e aos infantes,

 

mas é no olhar da mísera criança

que se percebe a fome mais inata:

fome de vida... fome de esperança!

 

Geisa Alves

 

 

*FLAGELADOS*

 

Dantesca e desumana debandada

Imposta pelas regras do sistema...

A seca dá suporte para o esquema

Tanger, os miseráveis, rumo à estrada.

 

Sem água, sem comida e sem morada,

As criaturas vagam, sob extrema

Penúria, definhando, sem um lema,

Apenas aguardando a cutelada

 

Da morte... anunciada pelas aves

Famintas, rapinantes, que voejam

Em torno de outras cenas vis e graves.

 

Os latifúndios, moldes degradantes,

Exploram campesinos, que mourejam,

Criando mortos-vivos: retirantes.

 

José Rodrigues Filho

 

 

*SERTANEJO ERRANTE*

 

Não veio a chuva, a plantação sedenta

aos poucos seca acinzentando o chão.

Há muito não se vê crescer um grão,

sem água a espiga morre e não rebenta!...

 

E se a escassez exagerada aumenta,

ao sofredor agonizante, então,

só resta despedir-se do sertão...

Mudar de rumo enquanto o corpo aguenta.

 

Na solidão da estrada ressequida

vai o caboclo, abandonando a lida

para tornar-se um sertanejo errante...

 

À tarde o sol, que ainda não se foi,

lambe a carcaça que restou de um boi,

qual labaredas de um dragão gigante!

 

Edy Soares

 

 

*O PALÁCIO DA DOR*

 

Uma família sertaneja muda,

Desconsolada e com pesar profundo,

Abandonada na aridez do mundo,

No precipício e sem qualquer ajuda.

 

Na sequidão, os corações sem fundo,

Esfaqueados com a dor pontuda,

Empanturrados de uma fome aguda,

Destituídos de um sabor jocundo.

 

Os miseráveis no sertão sem vida,

Com urubus ao derredor na espreita,

Em desespero, sem achar guarida.

 

Cambaleando rumo à porta estreita,

Predestinados à infeliz partida,

No padecer se tornarão colheita!

 

Luciano Dídimo

 

 

*ARIDEZ...*

 

Nas épocas de seca morre o sonho,

surgem os retirantes, sem destino,

sem esperança... e em cada olhar tristonho

fulgura a prostração de um nordestino.

 

Atroz cenário, bárbaro e medonho,

mata o amanhã até do pequenino,

instiga a dor nos versos que componho,

reforça todo assombro que imagino.

 

Na vida, nunca o "sim", somente o "não",

de noite, a escuridão sem um luzeiro,

e a fome castigando o tempo inteiro!

 

São vultos, à procura de outro chão,

que avançam no horizonte de um talvez,

fugindo do fantasma da aridez!

 

Janete Sales Dany

 

 

*ROMEIROS*

 

Na sequidão do solo, a rachadura

transforma-se no leito do plangor

de um sertanejo firme, lutador

que apenas à esperança se segura.

 

A plantação, debaixo da quentura,

não conseguiu medrar e seu livor

lacera o coração do lavrador,

na faina rotineira que tortura.

 

Acaso não sofresse de agonia,

à terra amada nunca poderia

dizer adeus, incerto do regresso.

 

A circunstância obriga o retirante

a ter com a família, bem distante,

o sonho colorido do progresso.

 

Jerson Brito

 

 

*A SINUOSA TRILHA*

 

Mais uma vez, rememorei a cena

do retirante em busca de acalanto,

inconformado, a suplicar ao Santo,

que não suporta tão enorme pena.

 

A procissão, interminável, plena

de toda a fé, regada pelo pranto,

germina a flora em resplendor do encanto

de uma ilusão que aos poucos se apequena

 

peregrinando em sinuosa trilha

que desemboca aos poucos na armadilha

dos que acreditam saciar a sede

 

quase infinita aos olhos do destino

no mais ingênuo coração menino

daquela tela exposta na parede.

 

Adilson Costa