DESTINO EM GOTAS / DESTINO DE LUA / DESTINO DE NUVEM

DESTINO EM GOTAS I – 29 AGO 22

A vida nossa é tal qual gota de orvalho,

das vinte e quatro a cintilar hora por hora;

nos dias quentes mais depressa se evapora,

nos dias frios é um pingente sob um galho;

com a variedade dos dias me atrapalho,

a minha vivência alguma vez se estoura,

em outros dias, passa ampla em sua demora,

planos diários transformados em ato falho!

Mas se somos pingentes, nos quebramos,

nesse momento de bater no chão

e se somos orvalho, bem depressa,

ante o fervor do Sol, evaporamos,

nestes extremos a oscilar o coração,

numa incerteza que nem mesmo a si confessa.

DESTINO EM GOTAS II

Bem lá no fundo, nosso sangue conhecemos,

como um composto de água, sebo e ferro,

pelas artérias circulando sem um berro,

não existe ar nesse sangue que contemos;

do coração a palpitar nós dependemos,

gases no sangue causariam seu emperro,

cessado o seu bater, prestes é o enterro,

bem mais depressa que a água desfazemos.

Então julgamos que para os céus evaporamos,

nesse instante do sangue a coagular

e à grande nuvem humana nos reunimos,

mas os pingentes para trás deixamos,

que ao solo tombam para se quebrar,

nutrindo as flores e a maciez dos limos...

DESTINO EM GOTAS III

Nosso destino de pingente é bem concreto,

não há certeza no destino do vapor;

hora após hora pinga o orvalho no calor,

pequenas gotas dessedentam cada inseto.

Será que sobra, afinal, algum afeto

que se transforme em tal nuvem de amor?

Até que ponto nos controla esse vigor

que nos formou em água desde o feto?

Porque, ao final, mesmo o pingente se derrete

e sobre a terra se desmancha inteiramente:

até que ponto em húmus se transforma?

E no momento em que tal nuvem se complete,

como chuva nos retorna, mansamente,

em novo útero a repetir a antiga norma.

DESTINO DE LUA I – 30 AGO 2022

A Lua me contempla como um cíclope:

Igual que um cíclope me contempla a Lua,

mortiçamente, em mágoa, até faminta,

a Terra inteira com suas cores pinta,

marca minha senda pela estrada nua.

Tendo apenas um olho, ainda a rua

marca bem fácil, em nitidez distinta;

a Lua passa, com olho só me finta,

já a escuridão a meu redor estua.

Não sou Ulysses, com seu longo espeto,

com o qual foram perfurados sem amigos,

que busca o olho perfurar de Polifemo.

Sob os caprichos da Lua eu fico quieto,

quando se esconde, procuro meus abrigos,

mas quando brilha forte, não a temo!

DESTINO DE LUA II

Porém se a Lua fosse um cíclope, de fato

e projetasse um raio agudo como espeto,

capaz de perfurar até meu teto

e então achar-me, ardilosa como um gato,

que assim minha alma perfurasse de barato

e me levasse, igual que um pobre inseto,

a espernear, qual nascituro feto,

tal qual felino, que judia de seu rato

e me levasse até seu acampamento,

à beirada do Sol, com suas estrelas

e na ponta desse espeto então me assasse

e devorasse a mente e o sentimento

e tão somente descartasse minhas costelas

e em plenilúnio minha alma transformasse?

DESTINO DE LUA III

Sei lá porque o porquê dessa revolta,

que me impediria assim de trabalhar,

talvez por perceber o terminar

de mais um ano que vai e nunca volta.

Mil sonhos eu perdi, deixei à solta,

em seu sereno e triste mastigar,

só me restam mil poemas a eructar,

sob esses raios da Lua em minha escolta.

De nada serve volver ao mesmo tema,

já me queixei demais para o papel,

queimou-me a Lua, sem me dar coisa melhor,

porém me sinto no espeto desse esquema,

dia após dia, sem dar ou ter quartel,

enquanto a Lua passa e perco a cor...

DESTINO DE NUVEM I – 31 AGO 2022

Quando eu for nuvem, serei qual nuvem mansa,

um nimbo a teu redor, auréola clara,

meus raios tecerei, somente para

te demonstrar que a procela não te alcança.

Com meus trovões, eu comporei a lança

de uma nova sinfonia, tão preclara,

que te libere da tristeza amara

e te conserve em delicada dança.

Com meu granizo, te engastarei coroa

e a deporei sobre tua testa em diadema,

tiara de marfim por minha loucura

e enquanto o dia passado se esboroa,

que teu olhar reluzir faça como gema,

no gentil manto da ilusão mais pura.

DESTINO DE NUVEM II

Quando eu for nuvem, sobre teus cabelos

farei descer o meu orvalho lentamente;

em teu verão te darei chuva frequente,

como prova do ardor dos meus desvelos.

Quando eu for nuvem, já passados anos belos,

farei descer a geada permanente

sobre essa tua cabeça e toda a gente

verá do tempo na tua face os selos...

Quando eu for nuvem, nos dias de calor,

dar-te-ei um teto de permanente proteção

e me abrirei sobre ti em dias nublados,

prova final dessa visão de amor,

que fez tua alma em ninho de ilusão,

juntando as palhas dos verões passados...

DESTINO DE NUVEM III

Quando eu for nuvem, pertencendo à humanidade,

que em tempos de antanho já se evaporou,

sobre tua face qual meigo vento eu sou,

vento e sibilo que cai da eternidade.

Quando eu for nuvem, nessa estranha liberdade

que com mil mortos já me condensou,

em cem pingentes meu orvalho se formou,

a gotejar sobre teu peito em intensidade.

Quando eu for nuvem, não serei mais lua,

nem o fragor cintilante de algum sol,

somente a chuva, a chuva que é só tua.

Sobre teus lábios depositando o meu frescor,

que da amargura não mais sintam o crisol,

na derradeira meiguice, inútil tanto quanto o amor.