LÁBIOS DE VIDRO

LÁBIOS DE VIDRO I (2007)

Hoje me sinto tão anestesiado...

Os olhos não me luzem, nem as bocas

cuja saliva acordava emoções roucas

e me deixavam o coração descompassado...

Apenas vejo e tremo, acidulado,

por meu carinho ausente. Faço moucas

as orelhas ao amor. E ponho toucas

sobre meus olhos, no olvido do passado...

Apenas movo o leme. E não mais quero

pensar em ti, sequer. Vês como esqueço

e nem sequer teu nome mais me soa...

Ver o filme da vida é quanto espero;

só um parâmetro aberto agora meço:

que saloios ainda cantam em Lisboa...

LÁBIOS DE VIDRO II

Quando é verão e escorrem lantejoulas

pelos canais de Veneza agondoleados,

eu plantarei nessas águas cem papoulas

de flores verdes e ramos encarnados...

Eu marcharei sob os céus acimentados

e lançarei foguetes às moçoilas...

Se me mostrarem canais avermelhados,

soltarei às areias pombas-rolas,

para que voem nos gramados e cavernas,

em que verei rebanhos de salmões

crescendo pelos prados... E nas linhas

dos telefones, emoções eternas,

penduradas em festins de corações:

Porque em Murano são de vidro as andorinhas!...

(*) Murano é uma ilha próxima a Veneza, com uma fábrica de copos

e jarrões muito afamada.

LÁBIOS DE VIDRO III

O Tibre flui cinzento sob as pontes,

lavando ossos antigos, catacumbas,

mimetizando as mais arcanas tumbas,

contaminando as mais perpétuas fontes.

As cinzas ancestrais, que mais nem contes

tornaram grises estas águas plúmbeas...

Queres nelas nadar e então sucumbes

e depositas teus restos sob os montes.

Passo a passo, a caligem se desata,

a alma desce ao Orco e lá suplica (*)

por uma brisa leve, em doce aroma...

Ah, cantilena maligna e insensata,

cujo único pendor somente indica

que o Coliseu se ergue ainda sobre Roma!...

(*) O Orco era a terra dos mortos para o romanos e se localizava

sob a Itália, com entrada no Fórum de Roma.

LÁBIOS DE VIDRO IV

Foge de mim a morna companheira,

em lento corrupio e currupaco;

sem passos, sapateia, taco a taco,

enquanto esvai-se a força derradeira.

A paz se me fugiu; contemplo a beira

da mais promíscua solidão. É opaco

o brilho de meus olhos: naco a naco,

se vai do coração a fibra inteira.

São tijucos negrecidos os meus dedos,

pouco mais que clavículas me restam

e nas costelas faço rataplam...

Meus pulmões já silvaram seus segredos,

mas uma única certeza não contestam:

nascem tulipas em toda Amsterdam.

LÁBIOS DE VIDRO V

Eu tenho um chambre verde de veludo

que recobre meus trapos onde eu ando.

De certo modo, é um agir nefando

usar a veste longa qual escudo...

Também um manto longo é meu estudo

de erudição. Penas arranco desse bando

de disciplinas científicas e então mando

costurar em minha alma e assim iludo

o meu olhar, que é puro e sem malícia

e trato os outros com fraternal bondade,

contudo a alma não é o que olhar diz...

Quem saberá o que carrego de estultícia?

Porque, afinal, a única verdade

é que ainda voam gansos em Paris...

LÁBIOS DE VIDRO VI

Ela falou-me e disse: "Se precisas,

me telefona e farei o que quiseres..."

É muito lindo escutar esses dizeres,

revelados em palavras tão concisas...

Porém como saber qual alvo visas,

minha amiga querida, quais quereres

te agradam mais, quais sejam tais prazeres,

nessas palavras com que o ego meu alisas?

Não preciso de nada. Só a presença

constante de teus olhos a meu lado:

é quanto basta a me alegrar assim...

Contudo, por mais que seja imensa

essa tua ausência, eu me sinto consolado,

porque ainda voam moscas em Pequim...

LÁBIOS DE VIDRO VII – 10 ago 2022

A frase branca escorre em verde ramo,

como as palavras de Rama na minha mente.

Não sei qual avatar hoje reclama,

que intermitência me atinge diariamente.

Apenas torno-me em cânula frequente

enquanto a tinta branca se derrama,

qual sêmen cerebral floridescente,

num orgasmo que diário se proclama.

Sou paradoxo e dilema nos meus dias,

um conundro de sombras luminosas,

que de mim brilham no lugar em que estou.

Eu sou tinta de verso e melodias,

enquanto as horas deslizam, preguiçosas,

que também voam andorinhas em Moscou.

LÁBIOS DE VIDRO VIII

Eu a pressinto por telepatia,

seus membros vejo por clarividência

e por telequinese, com paciência,

faço soar-lhe, das trompas, melodia.

Seu útero intocado em elegia

é meu, só meu pela jurisprudência

de uma levitação sem consequência,

na previsão de um futuro que seria

apenas para mim, sempre a meu lado,

enquanto escorra da ampulheta a areia,

enquanto a clepsidra se incendeia

e o gnômon marca o sol endemoniado,

que me reencarna na sansara, assim,

quando as monções inundam Bombaim.

LÁBIOS DE VIDRO IX

Amo tua ausência, quando tua presença

é mais ausente por se achar aqui.

Amo a presença dessa ausência densa,

que a verdadeira presença nunca eu vi.

Só de tua vista a pálpebra entrevi,

nem sequer sei se atrás dela se adensa

um verdadeiro olhar, qual pressenti,

nessa emoção que ansiava mais extensa.

Mas na verdade, sequer teus lábios abro,

para ver se têm língua ou mesmo dentes.

Se existe uma garganta eu nem senti.

É como se este rosto que consagro,

no altar do coração, fossem as gentes

que inda sacodem castanholas em Madrid.

LÁBIOS DE VIDRO X

Esse intenso interesse que antes tinha,

de certo modo se desvaneceu.

Não sei ao certo o que me aconteceu,

apenas sinto que a emoção mesquinha

tornou-se. Quando à mente se avizinha,

a lembrança de ti, já pereceu.

Por exigências bem outras, faleceu:

enfim, deixaste de ser a minha rainha.

E nem é que por outra me interesse:

só penso em meu trabalho e a quantidade

de coisas atrasadas, que não há

maneira de atender com esforço ou prece.

Perdi o impulso, apenas... Na verdade,

as bombas ainda voam em Bagdad...

LÁBIOS DE VIDRO XI

Eu amo a bênção de meu desconsolo,

marchetado de ti, mulher de pérola,

mesmo que a vida me atinja dura férula,

não deixarei de partilhar teu dolo

para comigo mesmo. Sem ter golo,

eu jogo essa partida, como a mérula,

engastada em festim de madrepérola,

e o sentimento não me peja expô-lo.

Eu amo a bênção de não saber-te minha,

porque, se minha fosses, nessa infinda

cantilena quotidiana, meu cantar

talvez se amofinasse em ladainha...

Mas sempre me consolo, porque ainda

cometas dançam sobre o Monte Palomar...

LÁBIOS DE VIDRO XII

A vida é a morte. São faces da moeda

que o acaso lança, aleatoriamente.

Quando me erra, fico indiferente,

que um dia acertará também minha queda.

A vida é assim. Tão feia quanto leda.

Existe na beleza sua oponente

e na feiura, o belo é subjacente,

tal qual o ódio sempre amor degreda.

Assim, tudo é questão de ver com gosto

tal espetáculo, por mais que nos desgoste:

quem cai embaixo, também está por cima.

E ainda se espera que seja frio Agosto

e que o calor de Dezembro assim nos toste,

enquanto as flores renascem em Hiroshima.