GRANEL 1/12

GRANEL I [20-8-1979]

A flama ardente que de amor sentia,

De tanto crepitar-se, em labareda,

Brotou centelhas verdes como seda,

No teu olhar de espanto e nostalgia.

A flama ardente fez-se em melodia,

Teu coração tocou de ideal discreto,

Mui destramente, em gesto bem secreto,

Até fazer brilhar toda a harmonia...

Qual brilho quente, em teu olhar luzia,

Mas recoberta, como em almotolia,

De uma camada fina de receio...

E ao sorver deste azeite no teu seio,

Bebi todo o temor que ali jazia,

Plantando em troca amor no teu gorjeio.

GRANEL II

Que pensarão de mim as mulheres que não tive?

As que possuir eu quis, mas nunca me quiseram,

Aquelas que queriam a mim e não disseram

E aquelas que quiseram, enquanto eu me contive?

Que pensarão de mim, essas mulheres todas

Que sentiram pousado em seus ombros, o adejo,

O desejo incontido, brutal, desse meu beijo,

Condor alcandorado e alçado em novas bodas...?

Que pensarão de mim, bem fundo aos corações?

Que tive medo ou antes, fugi às emoções

Bem fundo registradas no âmago do peito...?

Que pensarão de mim, às vezes, no seu leito,

Num devaneio azul bordado de ilusões

Ou antes num desprezo do mais total despeito...?

GRANEL III

Há sonhos e há sonhos... Os primeiros

Nos chegam cada noite, sem memória,

Somente vívidos enquanto dura a glória,

Porém se esquecem os maus e os lisonjeiros.

Os segundos... São os sonhos corriqueiros,

Compartilhados por toda a humana história,

Sonhos sublimes, sonhos mais de escória,

São esses sonhos que nos deixam derradeiros.

Mas sonhos, sonhos são... Ou viram planos,

Ou permanecem no plano da ilusão,

Pois muita vez os planos são quimeras...

Só se conservam os planos dos humanos

Se projetados forem com razão,

Mesmo que durem só por poucas eras...

GRANEL IV

Já os meus sonhos... Tendem a esvair-se.

São devorados por essa ânsia inútil

De tudo registrar, valioso ou fútil,

Nas costas de cartões a destruir-se

Depois que tenham tempo de imiscuir-se

Na digital incerteza do inconsútil,

Retransmitidos num esforço inútil,

De alcançar corações onde homiziar-se.

Que não importa que um sonho eu realize,

Desde que em mentes alheias se introduza,

Que então o possam firmemente realizar.

Alguém que em chão mais sólido assim pise

E o sonho em plano e num projeto cruza,

Para que o possa enfim concretizar...

GRANEL V – 07 julho 1980

Talvez não entendam quando afirmo isto,

Mas não guardo ciúme das ideias,

Nem mesmo das mais perfeitas epopeias

Que na mente me surgem e em que eu insisto.

O que eu almejo é que o sonho seja visto,

Não importa por quem, por que plateias

E que as imagens, em longas alcateias,

Sejam impostas às mentes em que as enquisto.

Quanto a meu nome... A glória da autoria,

O louvor dos aplausos e galeras,

A garantia da fama... lauréis e recompensas

Realmente não importam. O que eu queria

É que estes versos transpassassem as esferas,

As mil demoras das esperas tensas...

GRANEL VI

Sinto de fato que meu nome não importa,

Nem que jamais venha a ser reconhecido,

Basta que saibam aqueles com quem lido

E que conhecem o ardor de minha retorta.

Mas que as ideias e os ideais matéria morta

Não se tornem, porque isso é imerecido,

Bem mais que eu valho é o meu verso desnutrido,

Só lhes lastimo uma esquecida sorte.

Pois que outros me plagiem tais ideias

E que as façam difundir pelo universo!

Que as imprimam sob outra assinatura!

Mas que corram por aí as odisseias,

Dessa maré de inesgotável verso

De que minha pena é apenas tessitura!

GRANEL VII – 3 agosto 2022

De forma igual, pouco importam os conceitos

Que outros façam de mim. Integridade

Sempre mostrei em meu trato da verdade,

Inda que os gestos fossem algures imperfeitos.

Sobre desejos, não há autorais direitos:

Eles saltam por aí e a humanidade

É recoberta por tal teia. Opacidade

Bem pouco se refere a tais sujeitos.

Quantos fantasmas projetei de mim

Sobre fantasmas que tão só eu via!

Quantos fantasmas eu nem cheguei a ver!

Quantas suspeitas projetaram seu porfim

Nessa farândula que em nuvem pressentia

E que por isso nunca vim a ter!...

GRANEL VIII

Porém desejos são sementes em granel,

São milhares de raízes sem terreiro,

Estames em pólen no vento derradeiro

E que se arraigam nas mentes como gel!

São muito mais que o feromônio cor de mel,

Que nas narinas penetra sorrateiro,

Não a visão de um mundéu assim certeiro,

São milhares de grãos sem ter farnel.

E como as plantas espalham louros pós,

Que nos pulmões penetram em primavera,

Assim vivemos entre nuvens de desejo

E nem sequer percebemos os seus nós,

Enrodilhados nesse museu de cera

Que mumifica cada abortado beijo!

GRANEL IX

Porém quando meus olhos entrefecho

E então contemplo pelas frestas das pestanas,

Ali percebo essas figuras quase insanas,

Configuradas nos fulgores de seu sexo.

Mil desejos são sem óvulo e sem nexo,

Sem sêmen derramado, sem roldanas

Que os possam erguer, com que te irmanas

Em seu sonar melífluo como um plectro.

Mas que andam nas paredes apoiadas

E percorrem as calçadas pisoteadas,

Essas figuras de brumas perseguidas,

Lençóis de vento à luz crepuscular,

Tristezas inconscientes e sem lar,

Que nem sequer se sabem esquecidas...

GRANEL X

Assim vagueiam em sua inconsútil rede

Os desejos de homens por mulheres,

Os desejos de mulheres por haveres,

Sem lar, sem vida, em permanente sede.

E somente o meu olhar é quem os mede,

Pois meus próprios desejos têm misteres,

Abandonados na pressão dos quefazeres

E sua visão meio súplice me pede.

Mas se envolvem nesse mesmo esvoaçar,

Redemoinhos sementais, brisas fogosas,

Zéfiros fúlgidos que nada podem fecundar,

Desencadeados em novos estertores,

A se mesclar em quimeras portentosas,

Ansiosas por amar sem ter amores.

GRANEL XI

Às vezes deles me vem a inspiração,

Ao me envolverem incauto em seu abraço,

Introduzidos no pulmão, no róseo espaço

De cada brônquio, fugindo à expiração.

Então surge lá do fundo uma canção,

Nessa visão fugaz de um brando traço,

Ou brotam versos de um fulgor mais baço,

Sem que se saiba sequer qual sua razão.

Ou então ardem em peito apaixonado,

Como a flecha do deusinho, inesperada,

Por qualquer rosto humano contemplado.

E aquela sombra de sementes contraídas

Quase usufrui dessa emoção airada,

Nas cicatrizes de suas múltiplas feridas.

GRANEL XII

Mas eu que penso tais visões reconhecer,

Me deixo abeberar, sou penetrado,

Sou possuído em seu consumo demorado,

Deixo que as brumas me venham percorrer.

O brilho quente do passado a preencher

Cada instante macio e desvairado

E escorre o verso sob a pena, descuidado,

Sem que sua origem mesmo eu possa perceber.

Assim correm tais poemas a granel,

Poemas das sementes dos fantasmas,

Das mulheres que não foram nem geradas

E dos homens embrulhados no xairel (*)

De mil ejaculações que em sonhos pasmas

Numa colheita de rimas assombradas.

(*) Pano que recobre as costas de cavalos.