INVASÕES DA ALMA / CALÇADAS SOLITÁRIAS / VISÕES FINAIS
invasões da alma I – 28 julho 2022
o que ocorre se outra alma invade a tua?
a campanha se inicia em beijo leve,
ou em toque da mão onde não deve
ou por olhar avaliador em plena rua...
a pouco e pouco essa outra alma se insinua
e a mais intimidades mais se atreve,
o beijo que te dá não é mais breve,
mas sua saliva em tua boca estua...
e sem te dares conta, te domina,
de forma tal que és escravo voluntário
ou então serva predisposta ao sacrifício...
domina essa outra alma assim tua sina,
em um controle constante e multifário
que dela julga receber só um benefício...
invasões da alma II
mas é assim que ela nutre tua paixão
e um real amor desperta eventualmente,
grande gozo nesse amor tão envolvente,
feito tão grande a não caber no coração...
e que fazer quando idêntica ilusão
já se espalhou por teu par inteiramente?
um amor mútuo profundo e incandescente,
nenhum dos dois a dominar tal emoção...
quando teus olhos cintilaram mil promessas,
decerto os meus a cintilar desejos,
quiçá tua alma eu invadi também...
uma na outra a pregar as mesmas peças,
tão grande a força dos violentos beijos,
que tudo dão, mas nos tomam o que se têm!
invasões da alma III
em geral pensa o homem na conquista
de um território por ele inexplorado,
mas na verdade é ele o conquistado,
quer lhe pareça ser ele quem insista...
de fato só a percorrer a antiga pista
que a biologia lhe tem pavimentado;
foi pelos olhos da mulher examinado
e dos mil passos do amor percorre a lista...
o fato é que ela, mesmo que inconsciente,
foi preparando essa invasão de seu afeto:
é a mulher, ao pretender que a tomem,
que preencheu a alma do homem inteiramente,
feita a senhora ao pretender ser o objeto,
irresistível por seus beijos que o consomem...
invasões da alma IV
lembrei apenas das invasões do amor
que ocorrem com frequência e diariamente,
em artifícios é a mulher o seu agente,
a bela e a feia por igual tendo o pendor...
no coração se insinua sem temor
e pelas veias e artérias calmamente
atinge o cérebro em que a alma esteja assente,
nela penetra e assegura o seu andor...
que de algum modo em deusa se transforma,
pelo menos ao perdurar do encantamento,
a natureza a garantir-lhe proteção...
porém de um homem terá diversa forma,
algo vampírico em seu arrebatamento,
sua vítima a dominar sem compaixão!
calçadas solitárias I – 29 julho 22
se nossos passos se colassem pelas ruas,
nas tijoletas deixando uma aquarela,
oblongas tésseras no chão que se enregela,
vasto mosaico a percutir de falcatruas,
não são as solas dos pés deixadas nuas,
nem se desgasta o calçado a pisar nela,
um fantasma ainda mortal em fina estela,
tornado frio ao lamento de mil luas...
nada perdemos, mas ali os cravos ficam,
marchetados em cimento ou tijoletas,
que abandonamos em total indiferença;
chegam os pássaros e as secas sobras bicam,
para seus ninhos vão as fibras mais secretas,
deixando apenas o tiritar da desavença...
calçadas solitárias II
nossas passadas são ultravioletas,
que não podem captar nossos olhares;
ficam ali à espreita, aos milhares,
ressentidas das passadas mais completas,
ainda quentes das impressões diletas
dos traços novos de novos calcanhares,
da indiferença casual desses andares,
que sobre elas se espalham como setas...
em ruas cheias de pleno movimento,
novos passos superpõem-se em inclemência,
os mais antigos sendo aos poucos esmagados...
mas em ruelas retiradas seu assento
permite demonstrar em mais potência,
sobre as calçadas a expandir seus lados...
calçadas solitárias III
mal imagino os quantos passos teus
que se inscreveram nas pedras de minha rua,
cada marca a mostrar solidão nua,
mesmo os odores já perdidos para os céus...
só imagino quantos pedaços meus
já derramei, marchando à luz da lua,
quanto de mim nessas calçadas sua,
quão religiosos meus passos ateus...
mas são apenas bidimensionais
as criaturas dessa terra plana,
salvo se escorrem por entre ranhuras...
ou pelas fendas de calçadas terminais,
ainda ciosas do calor da antiga chama
sombras passadas das ilusões mais puras...
visões finais I – 30 julho 2022
já estou alcançando finalmente
a mais difícil e real constatação:
toda a minha vida calcada num padrão,
toda perdida no abismo do poente...
é inegável que tive méritos frequente,
mas fui tocado desde a infância por condão,
por mais me rebelasse qual tufão,
minha rebeldia seguiu a senda assente
por meus antepassados e contemporâneos,
fui somente outro capítulo na história
de minha própria vida, a maior parte
sendo a atuação de arcaicos sucedâneos,
ao pé da página sem me tornar em nota inglória,
por tantas lascas que roubei da antiga arte...
visões finais II
contudo eu sinto que ainda posso respirar
na iminência da derradeira hora,
em que vou transformar-me em meu outrora,
sem nada mais que te possa revelar...
porém se a arte um dia fui fragmentar,
copiando exemplos de quem partiu embora,
buscando ainda original tornar-me agora,
nesses pedaços da estrutura milenar,
sei muito bem que herdei as minhas praxias,
sou simplesmente um outro ser humano,
que no futuro talvez queiram imitar...
tive a coragem de percorrer minhas vias,
sem me perder em horóscopo ou arcano,
só a Dionyso e a Apollo me entregar...
visões finais III
visto que a arte que sempre me inspirou
foi aquela em mim atuada pelo amor,
por paixões mornas todo o meu pendor:
cupido cego sempre em mim morou...
assim suas tortas setas me emprestou
para mil poemas elegíacos compor,
em sua aljava mil corações repor:
tomei sua venda para o amor que me cegou...
e assim contemplo cego esta visão
de que esse amor nunca foi original,
segui apenas as ilusões de meus avós,
ano após ano, a marchar na multidão,
que toda a arte foi amor só consensual,
meu coração agrilhoado nesses nós!
visões finais IV
percebo agora que se poemas escrevi,
sem ter nenhum copiado realmente,
toda essa arte só em mim se fez presente
pela linguagem arcaica que antes li...
nenhuma frase nova eu redigi:
por mais buscasse renovação fremente,
não foi escrita em linguagem renascente,
usei apenas o alfabeto que aprendi...
e por mais tenha escrito em abundância,
não inventei jamais um novo idioma,
segui apenas o que me foi legado;
e aqui recordo em derradeira instância
essa ancestralidade que me doma
na arte e amor com que fui aquinhoado!