CÁRCERE 1/12
CÁRCERE I
Quando a tomar nos braços, mais amor
eu mostrarei, no perpetual ensejo,
do que o amor sedento de desejo,
em que se bebe a bênção sem valor.
Quando a tomar nos braços, meu torpor
será posto de lado, no seu beijo:
o que é um amor profundo, agora eu vejo,
muito mais do que julgara meu calor.
Quando a tomar nos braços, serei dela,
até um ponto em que nunca pertenci,
por mais sinceros fossem meus abraços.
Porque me abriu ao coração uma janela,
nos entreolhamos por instante... E vi
que era o momento de a tomar nos braços...
CÁRCERE II
Teu beijo me negaste pelo tempo
que se contém na casca de uma noz.
Se pareceu tão longa a espera atroz,
quando o beijo chegar, verei que o tempo
não se passou sequer. Existem nós
que ligam entre si os dias do tempo,
como se juntos fossem num só tempo,
desde o momento em que ficamos sós.
O tempo sobre o tempo recurvou-se
e meu desejo, a escoicear, curvou-se,
porque esse beijo tanto o tempo tarda.
Pois o tempo recusou e o tempo o guarda,
de modo tal, que quando o queiras dar,
talvez nem saiba mais como beijar...
CÁRCERE III
Amor de solidão, amor de grumo,
amor desmantelado de incerteza,
amor de planta, inerme e sem defesa,
que não pode jamais tomar seu rumo.
Amor de aceitação, amor de insumo,
amor reativo, amorfo e sem beleza,
amor de aceitação, amor por lesa
curvatura ao destino, amor sem prumo.
Amor composto apenas de inação,
vendo ao redor amor que é proativo,
amor de curvatura ao assassino,
Amor formado tão só de dilação,
amor composto de angústias de menino,
que roem, bem lá dentro, o coração.
CÁRCERE IV
Eu te encontrei na tua solidão
e na minha solidão tu me encontraste;
mas não querias, tanto te afastaste
quão grande o vácuo de teu coração.
Ao insistir, mantive a discrição
e mantida a discrição, tu te lançaste
e em outras tentativas te encontraste
com o que te parecia outra paixão.
Alvo da ausência, tal que essa evasão
para os domínios sempre solitários,
de certo modo, teu vazio enchesse...
Talvez porque ao unir tua solidão
com a minha solidão, espaços vários
aumentariam, que a tristeza preenchesse.
CÁRCERE V
Tenho saudade é disso que não vi,
porém que os outros viram e consigo
de ti levaram para alheio abrigo,
coisas que nunca restituirei a ti.
São pedaços de ti que encarceraram,
esses de teu passado de criança
da adolescente que a vista não alcança,
da idade adulta até, que me roubaram.
Mas não posso assim tomar de alheios olhos
a visão almejada dos refolhos
ou tal mirada, até mesmo indiferente,
daqueles que te olharam pela rua,
ou que te viram, quem sabe, toda nua
e guardarão tal lembrança eternamente.
CÁRCERE VI
Cada um que te viu, levou-te a imagem,
ou por prazer ou capricho inconsistente.
Não importa que te amasse ou indiferente
e até bem feia julgasse tua visagem...
Eu só queria, num gesto de coragem,
arrancar deles todos, imponente,
os retratos de ti, cada pingente
de que conservam nas mentes amostragem.
Eu só queria que por tua vida inteira
apenas eu te visse, interiormente
e minha fosse cada qual dessas visões...
Que ninguém recordasse a mais ligeira
memória que eu roubasse, diligente,
e a replantasse dentro em minhas ilusões...
CÁRCERE VII
Perante a vida, sou uma bolha de sabão
e temo até qualquer felicidade,
porque sinto que os deuses, com maldade,
apenas sopram e me insuflam de ilusão.
Fico assim encarcerado em exultação,
sinto-me pleno, quase em saciedade,
até o momento em que amor ou amizade,
a gargalhar, de mim arrancarão...
É assim que percebo as entidades
que governam o destino: nos assopram,
até ficarmos grandes e brilhantes
e, nos momentos cheios de vaidades,
essa película de súbito já estupram,
com seus ferrões de risos perfurantes.
CÁRCERE VIII
Mas se um dia permitires, vou roubar
da memória dos outros toda a imagem;
enfrentarei, em mil momentos de coragem,
para a pupila de seus olhos penetrar.
Eu sei que se consegue pelo olhar
ter acesso imediato a tal passagem,
sua mácula ocular feita miragem,
terminação nervosa irei galgar.
Eu vou então buscar olhos alheios,
talvez adormecidos, distraídos,
e então me lançarei através deles,
a percorrer seus labirintos feios,
em seus fulcros neurais entretecidos,
até te descobrir imersa neles...
CÁRCERE IX
Pouco me importa serem amigos ou parentes,
companheiras de infância, teus amantes,
conhecerei a tocaia dos instantes
e saltarei os mundéus mais confrangentes.
Eu te acharei nos meandros confluentes
e desse cárcere em que habitavas dantes
eu te retirarei com meus descantes
e te sustentarei entre meus dentes.
Pois imerso nas profundas dos olhares,
talvez precise seus demônios combater,
firmando os pés no chão escorredio,
até que possa retornar aos luminares
e das lábrimas a senda percorrer,
tendo na boca o gosto de teu cio.
CÁRCERE X
Mal imagino a cópia de lembranças
que encontrarei destarte soterrada
nos raios-X de película encarnada,
nos folículos de emanações em tranças
e contudo, seguirei em tais avanças,
até certificar-me de que nada
de tuas imagens me terá sido negada,
enroladas em minha língua tantas danças;
e sairei então, na ânsia de guardar
no depósito de que somente tenho a chave
todo esse espólio que pude assim saquear
e as usarei como velas de meu rumo,
para o governo da derradeira nave,
por esse oceano de volutas e de fumo.
CÁRCERE XI
Pois desses cárceres te trarei à vida,
que não existe em meu peito tal prisão,
salvo as batidas de meu coração
e o ronronar do sangue em tua acolhida.
Não te prendo nos braços, mas contida
serás integralmente em meu pulmão,
no vaivém de toda a inspiração
respírarás, das quimeras a escolhida.
Mas então terei ciúme de teus traços
e talvez mesmo me converta ao islamismo,
para cobrir-te em teu sair à rua;
e se filhos tiveres dos abraços,
mesmo deles o rancor de meu egoísmo
impedirá que te vejam toda nua!...
CÁRCERE XII
Não sei bem se algum lugar ficou vazio.
Que o preencham com lembranças de outros dias;
são as imagens de ti figuras guias,
que só a mim pertencem de arredio!...
Talvez não queiram, num furor de cio,
permitir-me que arranque essas esguias
lianas de paixão ou puras fantasias,
ou miragens murmurantes como um rio.
Mas meu querer é mais forte e não domado
e o que viram de ti a mim pertence,
vou conservar-te no fundo de meu peito
e assim tudo hei de trazer para meu lado,
pois amor igual ao meu tudo mais vence
tendo arrogado de ti todo o direito.