AVASSALAGEM 1/12

AVASSALAGEM I – 3 jul 22

O que leva uma mulher a uma paixão

dessas que chamam de "avassaladoras"?

Logo elas, que são do amor senhoras

e dominam facilmente um coração?

Sei que a mulher é feita de emoção,

sei quais instintos são dominadores,

como se lançam facilmente a amores

e como trocam depressa de ilusão.

Mas o que leva uma delas, finalmente

a se jogar a um objeto de desejo

e se perder dentro dele integralmente?

Grande número de razões se faz presente:

não é apenas ao palpitar de um beijo

que se entrega uma alma totalmente.

AVASSALAGEM II

Dessas razões, uma é a competição:

esse homem elegante e perfumado,

que ela percebe por outras disputado

é bem capaz de mover-lhe o coração.

Quando ele assim a busca, de seu lado

fingindo timidez (pura ilusão!...),

acostumado que está à flertação,

seu espírito se rende, conquistado.

Ela se sente honrada pela escolha:

esse homem poderia ter qualquer,

mas se dirige diretamente a ela!...

Como o vento, que sopra cada folha,

vaidade e ciúme sopram a mulher,

nessa derrota que a torna ainda mais bela!...

AVASSALAGEM III

É o canalha quem inspira mais paixão,

nesse cheiro de perigo que transmite:

avassala no desprezo com que a incite

logo após sua inicial confrontação.

Ao vê-lo junto às outras, sua ilusão

desfaz-se em estilhaços, sem que evite

entregar-se, já no próximo convite

às artimanhas de tal espertalhão.

Sabe que mente, a cada vez que a abraça,

mas lhe rende, mesmo assim, toda a beleza

de seu pobre coração desenfreado.

E quem não tenha do social a graça

ou que não minta, sequer em sua defesa,

acaba sendo por elas desprezado!...

AVASSALAGEM IV

É o sabor do triunfo que conquista,

como da tribo o melhor caçador.

Inspira assim cobiça o vencedor,

para um futuro que nele se invista.

O guitarrista, o mágico, o cantor,

o rico industrial a quem se avista.

Do ator de novelas segue a pista

muita mulher com todo o seu calor.

Deixou de ser a força muscular

o sinal de poder na sociedade

e nem sequer se espera juventude.

Surge paixão por quem pode comprar

o gozo material, em saciedade,

falsos sinais com que a alma se ilude.

AVASSALAGEM V – 4 jul 22

Há um tipo de mulher mais maternal,

mais do que tudo, deseja proteger:

o fracassado busca promover,

ao vagabundo dedica seu ideal

e no controle se pode perceber

a cada vez que um vício por igual

domine ao seu amado natural,

para que firme o possa combater;

também essa paixão a avassala,

mas em grau diferente e nem percebe,

nessa ilusão se prende interiormente,

talvez até em bem maior escala

que quando igual amor também recebe:

que é por si mesma a paixão que agora sente.

AVASSALAGEM VI

E existe a espera pelo príncipe encantado:

garboso monta um branco garanhão:

Branca de Neve retira do caixão

e, com um beijo, amor é despertado...

Hoje em dia, é melhor carro importado:

ele vem libertá-la da prisão,

cobrir de amor inteiro o coração,

para ficar, eterno, do seu lado...

E no entretanto, quando surge o ensejo

e abraça este rapaz, antes tão guapo,

o desaponto muita vez é a norma...

Porque, afinal, é o gosto de seu beijo

que leva o príncipe a virar num sapo,

e não o sapo em príncipe transforma...

AVASSALAGEM VII

Para quem sente paixão assim tão dura,

não importa a rejeição: até a alimenta;

por mais que queira e libertar-se tenta,

nunca descarta essa armadilha escura;

porque paixão avassaladora cura

somente outra paixão, por amor benta:

algo que a mente e o coração contenta.

mas lá no fundo, essa emoção perdura

e mói o peito e fisga, num momento,

atinge de repente e rói a calma,

naquela ânsia fugaz de seu temor;

e então percebe, em tal pressentimento,

que amor é câncer e lhe devora a alma:

melhor seria ser chamado de tumor!

AVASSALAGEM VIII

Porém dizer: "Eu te tumoro", fica

declaração bem desapontadora...

Pois quem entenderá que quem adora

de forma doentia, assim indica

que o coração lhe sangra e a alma estica,

sob influxo de paixão dominadora;

que o coração em novo orgasmo estoura,

nesse pulsar que pelo peito quica...

Controlada pela força da paixão,

avassalada por tal desolação,

tanta gente corta o pulso ou se envenena...

Apenas externando, em tal ação,

esse veneno que percorre seu pulmão

e a hemorragia que a alma já condena...

AVASSALAGEM IX – 5 jul 2022

Por sorte há outro amor, bem mais romântico,

que se deixa revestir de igual paixão:

amor da alma que encontrou irmão,

amor do sonho a balbuciar seu cântico.

Não um ardor somente coribântico,

mas amor marchetado de ilusão,

amor que esquece de pisar no chão,

amor que brilha, fulgurando quântico...

É quando dois se encontram, sem maldade

e se entregam totalmente a tal verdade,

mesmo que o impulso venha a ser fatal,

nesse amor shakespeareano e de novela,

em que o desejo explode, sem sequela,

tremeluzindo em seu viço natural...

AVASSALAGEM X

É nesse ardor que o romantismo agita,

por mais que a flama seja transitória,

que se baseia toda a velha história

e a raça assim a se manter concita...

Mas não é de vassalagem tal incita:

quem dá esse amor, recebe a mesma glória

e quando resta apenas cinza e escória,

sempre a lembrança no coração habita.

O amor escravo se extingue ao ser vencido:

é o calor do desejo que o alimenta,

a brasa apaga como a lamparina...

Mas que vitória, quando é correspondido!

Que pena tal amor se descontenta

e sai em busca de mais outra menina!...

AVASSALAGEM XI

Só me resta dizer que amor é puro:

domina sim, porém não avassala;

conserva a chama bruta e não se cala,

por mais que o mundo lhe seja amargo e duro.

Não se limita a abraços pelo escuro:

um tal amor constrói cozinha e sala...

Passa por crises, mas firme, não se abala;

forja ao redor de si escudo e muro.

É amor de paz, que o outro leva à guerra;

mesmo que traga tédio e saciedade,

é um amor permanente e muito terno.

Amor perene, que tua vida encerra:

um sonho amortecido na verdade,

amor de apoio, sem ilusão de eterno...

AVASSALAGEM XII

Um tal amor eu sinto -- também eu,

renovado a cada vez que me enamoro,

nessas paixões contidas, em que afloro

somente em versos o sentimento meu.

Vejo a mulher com meu olhar de ateu:

é bela, é desejável, mas imploro

apenas que me inspire, não a adoro

como uma deusa, por mais que seja seu,

na sombra inútil do desapontamento,

este amor que mais aquece que os demais,

porque com tantos outros compartilho.

Ao invés dessa paixão de um só momento,

que queima bem depressa e que jamais

permite a um par seguir o mesmo trilho.