LENÇÓIS DE ESPANTO 1 -- 12
LENÇÓIS DE ESPANTO I (6/8/2009)
(Revisado a 22 mar 2022)
Vou despejar a luz no meu bornal,
como faço, ao final de cada tarde:
a sombra de minhas mãos o solo encarde:
dobro o manto de Apolo, no final.
Enrolo o dia, com fim proposital,
como lã branca que a memória carde:
a fúria do calor nos dedos arde,
revoltada em tal descanso vesperal.
Retiro então do alforje a meiga sombra,
que espalho pelos prados como um véu:
doce mortalha para meu descanso.
E a sola de meus pés sobre essa alfombra
ondulará, sob os reflexos do céu,
nesses espinhos de luz que agora alcanço.
LENÇÓIS DE ESPANTO II
Eu dançarei sobre a noite, lentamente,
evitando pisar sobre as estrelas,
que são rosetas essas luzes belas,
de tocaia em cada poça indiferente.
Guardo na bolsa a luz alvinitente,
enquanto, no veludo dessas velas
eu deslizo, cantando mil balelas,
até chegar à banda azul do Oriente.
Lá eu me agacho e consulto o coração,
medindo, com cuidado, esse frescor,
até da hora completar-se o rol...
Retiro a luz mantida em comunhão,
levanto a fímbria da saia do negror
e, a pouco e pouco, vou soltando o Sol.
LENÇÓIS DE ESPANTO III
Pois esse é meu afã, nada divino,
não sou mais que um titã escravizado,
cada um de nós em um ponto colocado,
para que os deuses nos governem o destino.
Não tenho esse emprego renomado
de minha irmã Thetis, com o sino
que anuncia dos decretos o mais fino
para que o mundo seja governado.
Nem qual Mnemósine, minha irmã Lembrança,
que traz à luz as mil coisas esquecidas,
embora o próprio nome já esqueceu.
Mas sou ainda o arauto da esperança:
não trago o céu em meus ombros doloridos,
mas vivo ainda bem melhor que Prometeu...
LENÇÓIS DE ESPANTO IV
E se me queixo, será por pura fantasia,
que eu mesmo fui quem escolheu a minha tarefa,
pois diariamente eu varro esta sanefa,
recolhendo toda a luz que se perdia.
Chispa que em cada buraquinho se escondia
e contra os ramos emprego espremedor;
cada luzeiro que caia em meu favor:
quero o bornal a reluzir na noite fria.
Busco depois escolher com mais ardor,
quando a noite já pretende despedir-se,
esses restinhos de sombra nas colinas,
quando o trabalho já me exige mais vigor,
porque se oculta a sombra antes de ir-se
nos azulados das olheiras das meninas...
LENÇÓIS DE ESPANTO V
(Completado a 23 mar 22)
Vou buscar luz nas órbitas vazias
dos que já faleceram, mas guardaram
lembranças puras do que testemunharam,
raios selvagens em sepulturas frias.
Em cada crânio há silvestres melodias,
cada ruído agreste que escutaram,
cada cor indiferente que espelharam,
cada detalhe de suas mansas agonias.
E nos dedos que se foram e deixaram
os seus berloques, jóias e alianças,
irei buscar cada faísca dos anéis,
restos dos votos que um dia balbuciaram,
os mil tristes remanescentes de esperanças,
tão sedutoras quanto foram infiéis.
LENÇÓIS DE ESPANTO VI
Vou buscar sombras nos livros dos antigos,
amortalhados em longas prateleiras,
suas capas sobrancelhas, velhas poeiras,
bem entranhadas no sonho dos perigos.
De cada página os projetos inimigos
que iludiram os autores dessas jeiras,
as lombadas em grudentas cabeleiras,
restos de dedos nos canteiros dos jazigos...
Em vã mistura com os restos de saliva
dos que lamberam as folhas, mau costume,
de cada alma fragmentos relegados.
Cada trecho a esconder mentira esquiva,
cada parágrafo uma lenda de azedume,
em textos mortos sem querer ser acordados.
LENÇÓIS DE ESPANTO VII
Vou buscar sons em clarins enferrujados,
embutidos nas gargantas dos fantasmas,
acionados por enfizemas ou por asmas,
assoprados por pulmões já ressecados.
Vou buscar vozes no silêncio com que pasmas,
os lamentos falecidos de soldados,
restos de sangue de pescoços degolados,
os fogos-fátuos de gélidos marasmas.
Cada pistão, flautim ou saxofone
em que se encolhe um velho instrumentista,
ali sugando uns poucos restos de calor.
Nas volutas retorcidas do trombone
dançam casais em solitária pista,
bebendo ainda os resíduos de um amor.
LENÇÓIS DE ESPANTO VIII
Eu vou buscar as sombras nas capelas,
erguidas desafiantes ante os altares,
esguias silhuetas de círios milenares,
riscas escuras nos caixilhos das janelas.
Dos antepêndios os avessos das nigelas,
o sangue coagulado dos cantares,
borras de vozes em vinhos singulares,
manchas de mágoas e de aflições singelas.
Todas as máculas que resguarda o pavimento,
envergonhado das coisas que espiou,
o lustro fosco de diagonais joelheiras.
Cada oratório um painel de sofrimento
daqueles joelhos de quem neles se expiou,
em penitência por suas faltas corriqueiras.
LENÇÓIS DE ESPANTO IX
(Completado a 24/3/2022)
Eu vou buscar a sombra nas cozinhas,
em que o fogo foi aceso com frequência,
cada fagulha um farol de independência,
halos de sombra ao redor dessas luzinhas.
Recolherei as cem fuligens comezinhas,
são outras tantas centelhas em potência
e sob a lenha encontrarei uma pendência,
achas fugindo ao lume bem quietinhas.
E as sombras se acha... no menor desvão,
cada parede a refletir a escuridão,
que plena brota dos bules e chaleiras.
Sombra de chá, silhueta de café,
talheres, pires , xícaras e até
sombra das almas das antigas cozinheiras.
LENÇÓIS DE ESPANTO X
Vou buscar luz no quarto da criança,
suas lamparinas contra o bicho-papão,
sonhos alegres de impecável comunhão,
e ainda sonhos esverdeados de esperança.
Vou buscar luz onde não mais alcança
o pesadelo que dissemina a escuridão,
todo remorso provocado sem razão
pela quebra inesperada da confiança.
Vou buscar luz nas caixas de brinquedos,
de cambulhada com restos de alegria,
protegida em timidez de todo o escuro.
Vou buscar luz nesses pequenos dedos,
em cada mancha tornada em nostalgia
dessas paredes em que o sono está seguro.
LENÇÓIS DE ESPANTO XI
Mas vou buscar a sombra nos lençóis,
que protegiam amor igual que um manto,
que acalentavam as crias desse espanto,
afugentando as réstias dos faróis.
Encontrarei a sombra em negros sóis,
nos quais gravita o masculino canto.
Recolherei toda a sombra desse pranto,
quando aos amantes espantavam arrebóis.
E irei buscar a sombra na lembrança
dessa mescla de tristezas e prazer
que retempera qualquer caso de amor.
E encontrarei nos pratos da balança
a luz que gera a sombra no sofrer,
no lusco-fusco crepuscular da dor.
LENÇÓIS DE ESPANTO XII
Pois toda a luz colhida do passado
despejarei nos tanques da alvorada,
combustível para carruagem perfumada,
alçando em ouro o seu caminho alado.
E toda a sombra coletada com cuidado
irei colar na capa pintalgada
do entardecer e o lençol da Lua prateada
mais espanto encontrará no rendilhado.
Coberta a colcha, sairei empós a luz,
em minhas fronhas refazendo meu farnel,
na aurora a distribuir favos de mel.
E quando em almofada o Sol reluz,
voltarei a recolher cada sombrinha,
para entregá-la quando a noite se avizinha!