ABSTRAÇÃO DESFEITA / ABSTRAÇÃO CONCRETA / JANELA ABSTRAT
ABSTRAÇÃO DESFEITA I – 2 DEZ 2021
Ao te encontrar, pensei seria possível
a companheira ideal da própria mente,
mais que no coração tê-la presente,
qual um cônjuge da alma fosse crível;
e eu te queria, como um ser miscível
ao meu corpo também, integralmente;
não te queria como orgasmo impermanente,
muito menos fogo-fátuo do intangível.
Mas fui eu mesmo a criar pedra de tropeço
nessa vereda que levasse à nossa união,
não que pensasse nela haver qualquer pecado,
mas por julgar ser um caminho sem regresso
e é por isso que hoje vivo a solidão
desse impossível por mim mesmo provocado.
ABSTRAÇÃO DESFEITA II
Não se deve esperar qualquer pessoa
tornar-se aquilo que queremos permanente;
seja quem for que se fizer presente,
seja qual voz que em teu ouvido soa,
algo no amor que te dá sempre destoa,
que não se forma de teu desejo ardente;
por mais que ame é um ser de si consciente
e é inevitável que tua ilusão o tempo roa.
Porque se esperas que esse amado par
seja o quanto aguardavas, ponto a ponto,
mais do que certo é surgir o desaponto;
bem ao contrário, só deverás buscar
a alguém diverso do que imaginavas,
talvez achando muito mais do que esperavas!
ABSTRAÇÃO DESFEITA III
Somente deves amar o concreto amado
e não esse fantasma de tua mente;
não esperar que algum vulto se apresente
tal e qual o havias sempre imaginado,
mas adequar o teu desejo ao encontrado,
que em tantas coisas te agradará frequente,
mas não em toda a abstração subjacente:
é um ser humano e não um sonho alado.
E depois... caso se mostre exatamente
o quanto havias antes desejado,
quem te diz não advirá aborrecimento?
Quando souberes o achar sempre presente,
qual projeção de teu sonho antiquado,
tão diverso de teu sonho do presente...?
ABSTRAÇÃO CONCRETA I – 3 DEZ 21
Embora o tempo, de fato, não exista,
em tua mente crias um tempo para ti,
tal qual recordo eu o tempo que vivi
e essa noção qual sentimento insista,
ainda que o tempo bem pouco resista,
por mais que tê-lo vivido sempre cri,
pois todo o tempo do presente já perdi
e o passado na memória só me assista.
Mas o futuro ainda é feito de opções
e a cada instante nova escolha vais fazer
e aos resultados dessa escolha pertencer,
suas consequências a te dar coloração
no livre-arbítrio que tangeu igual que sino
e desde então se transformou no teu destino.
ABSTRAÇÃO CONCRETA II
Mas cada escolha, à sua maneira, é holocausto:
se um tempo escolhes, a mil outros exterminas
e a multidão dos seus possíveis já destinas
ao abandono de seu destino infausto
e o próprio tempo que escolhes logo é exausto
nessa centelha breve a que assassinas:
são mil fagulhas reluzindo, pequeninas,
em breve instante de perpétuo fausto.
Pois no momento em que se fez presente
foi condenado desde já à extinção,
que o presente é uma perpétua guilhotina
e logo o impele ao passado em que se assente,
nesse progresso de tão curta duração,
que sobre o antanho o transforma em gelatina.
ABSTRAÇÃO CONCRETA III
Mas nessa escolha tão rápida e fugaz
crias do tempo uma perfeita linha,
que dentro ao peito depressa se avizinha,
mais do que Chronos sendo pai voraz
ou sendo a mãe que prestimosa traz
para a vida esse abstrato que continha,
esse possível descendente que retinha
e ao mesmo tempo teu genitor se faz.
E por mais que pareça um contrasenso,
crias o tempo que tua vida cria,
para que possas criar de novo um tempo,
cruzando a névoa do porvir mais denso,
como uma faca que ao futuro cortaria,
mas que te corta a ti mesma em contratempo.
JANELA ABSTRATA I – 4 DEZ 21
O amor é para o mundo uma janela
que se abre para uma só paisagem:
tudo depende se passar uma carruagem
com teu príncipe ou tua princesa bela;
mas em geral, só percebes a passagem
do vento esguio assoprando cada estrela,
da chuva refrescante ou que congela,
talvez um pássaro perdido na voragem.
Mas pela tela podes ter amor,
cada pixel um detalhe encantador,
nele a metade que te falta a imaginar;
caso te vejas frustado em algum pendor,
sempre em contrário podes crer assim
que brota a flor só para ti no teu jardim.
JANELA ABSTRATA II
Nem todo amor é assim indiferente:
única imagem desejas na janela,
no coração a luzir pequena vela,
que mais não seja que algum amor nascente,
mesmo não sendo tal amor assaz frequente,
que muita vez ambição somente zela
de possuir só para ti quanto te apela
em qualquer par que te ame fielmente.
Contudo, às vezes, ao longo de tua vida,
essa janela se abre para um rosto,
que reconheces de teus sonhos anteriores,
que para nova existência te convida,
desde a alvorada à beira do sol posto,
que te trará prazer ou talvez dores...
JANELA ABSTRATA III
Na verdade, é bem possível esse amor
que vá durar por toda uma existência,
que a cada ano renove sua valência,
que em cada dia retorne em seu fragor.
Mas como o tempo, é um leque de calor
e de tua escolha resultará sua imanência,
se apressurado, pode ser subserviência
ou ser desejo tão somente de sexor.
Contudo o tempo te abre nova escolha,
a cada instante, num teor de rapidez,
porém amor não se troca facilmente,
do mesmo modo que a flor que a gente colha,
logo fenece sem mais viço ou maciez
e nova escolha talvez nunca se apresente...