NÉVOA DE PRATA, O BOLERO DO SOL, A CULPA DE EVA
NÉVOA DE PRATA I – 20 JUL 21
Ao ver a Lua embaciada lá no alto,
em seu vestido de tule e de ‘guipir’,
meus olhos esfreguei. O olhar é falto
e só por isso não percebe o seu luzir.
O ser humano só crê em seu ressalto,
como se a Lua lhe cuidasse o existir
e o protegesse de um alheio assalto
ou opostamente o quisesse perseguir.
Lá ela brilha ancestral, Selene bela,
a contemplar cada qual dos ancestores,
provavelmente por igual aos descendentes;
por que apenas por mim seu arco zela,
enquanto esparze a luz de seus albores,
nos que a veneram e por igual nos insolentes?
NÉVOA DE PRATA II
Bem mais que o Sol tem equanimidade:
sobre os desertos exerce os seus queimores
e sobre os polos a palidez de dissabores,
seus bens a distribuir com igualdade,
no verão a demonstrar menor piedade
do que no inverno em gélidos fulgores,
onde foi frio a castigar em crueldade.
Selene não. Ela brilha mansamente,
por cada canto, cada rincão da Terra;
não traz calor, mas em seu frio se encerra
essa pureza que nos aquece a mente,
quando sua prata em cascatas se derrama:
magnânima, na ilusão que a humanos ama.
NÉVOA DE PRATA III
Por que então minha vista esfregaria,
qual se a visão dependera só de mim?
Se ela se esconde pundonorosa assim,
menos brejeira que a negar-me companhia;
quais sais de banho a bruma empregaria,
nuvens em rolos seu sabonete enfim;
de lá me espia, florescente em seu jardim
de estrelas mil que por igual governaria...
Lugar comum que pertença aos namorados,
apenas lenda que alimente a São Dragão
que o Capadócio mate a cada noite,
porém é mãe dos atos bons e dos pecados,
tão poderosa que, coberta por tua mão,
por carne e ossos ainda filtra seu açoite...
O BOLERO DO SOL I – 21 JUL 21
Mas cabe ao Sol um posto secundário
nesses meandros do nevoeiro coletivo?
Não me recorda algum sonho compactuário
em que o Sol enxergasse audaz e vivo.
A luz percebo, a sombra estendo no sacrário,
brilha o calor, mas não sou dele cativo,
os sonhos vivo no consuetudinário,
mas contra o anil não percebo o deus altivo.
Já a meiga Lua muitas vezes avistei,
no reflexo de vitrinas das calçadas,
tem prata o arco-íris que viceja nesse umbral.
Por que o Sol em meus sonhos não mirei?
Talvez temendo ter minhas vistas afetadas,
sem que me provocasse Selene o mesmo mal.
O BOLERO DO SOL II
Como Ravel compôs o seu Boléro?
Seria imitação do andar do Sol,
sempre presente em força de crisol,
sempre constante o seu rondar inteiro,
igual perene em perpassar ligeiro,
aos poucos a mover-se em equinocial,
mas retornando à vereda sempre igual,
o mesmo e um outro em irradiar arteiro.
Por mais que mude tão só a orquestração,
o mesmo tema se repete sem cansaço,
igual que os raios do Sol em seu abraço,
cada arrebol a dissipar a inquietação,
o dia é o mesmo, mas sempre renovado,
sempre o Boléro sem jamais ser olvidado.
O BOLERO DO SOL III
Tal harmonia escutei já por vezes mil,
sem exagero, dia e noite sem parar,
da melodia sem nunca me cansar,
do mesmo modo o outro disco varonil,
o seu carro a dirigir sem repousar,
mesmo pensando que à noite iria armar
uma tenda para si, no Poente além do anil.
Nunca entendi como o Sol retornaria
para o Nascente, na manhã seguinte,
se a Terra, nesse tempo, ainda era plana!
Passando em baixo, pouco tempo sobraria,
para alcançar a alva em que o céu pinte
nessas mil cores de sua audaz soberania!
MERECE EVA A CULPA? – I – 22 JUL 2021
Pela Doutrina do Pecado Original
nossa mãe Eva é tida por culpada,
ingênua fosse, por Lilith enganada,
comendo o fruto, introduziu o bem e o mal.
Há muita lenda envolvida em tal fanal,
maçã alguma no Testamento mencionada:
de folhas de figueira a tanga fabricada,
seria um figo ou cacho de um parreiral.
Uma outra lenda é que o fruto seja o sexo.
Afinal, qual foi o primeiro Mandamento
ao ser humano dado? “Crescei e multiplicai-vos!”
Certamente Adão e Eva um certo amplexo
tiveram, antes de haver o julgamento,
pela desobediência a que prestaram laivos!
MERECE EVA A CULPA? – II
Por que a serpente as pernas perderia
e de que modo falaria o mau conselho?
Com frequência, em vitrais do Mundo Velho,
como mulher igual a Eva aparecia.
Lenda talmúdica então descreveria
essa Lilith que tal fruto deu-lho,
a conservar ainda braço e joelho,
que só após a sua perfídia perderia.
É a Mãe dos Monstros nesse legendário,
que as crianças vem matar no berço;
porém centenas de suas próprias crias
irão morrer ao provocar esse fadário;
talvez assim, pelo temor do inverso,
ante bebês não mais suas presas acharias.
MERECE EVA A CULPA? – III
A ideia mesma é absolver-se Adão,
que apenas ali pecou por convivência,
mal feminino em toda a sua potência
os monastérios assim proclamarão!
Machismo seja em plena projeção,
com as maldades do homem conivência,
nunca a mulher a merecer leniência,
por dar ouvidos à primeira tentação!
Sem esquecer que nesse mesmo Paraíso
havia a árvore da imortalidade...
Sua expulsão fruto a ser da iniquidade
desses guardas do jardim, temendo o siso
do ser humano, que lhes traria igualdade,
se então pudessem viver na eternidade!
MERECE EVA A CULPA? – IV
Mas há um limite para o preconceito,
qaundo se via dos homens a maldade
e as mulheres a sofrer sua crueldade:
por que não lhes conferir igual direito?
E assim, entre os humanos, surge o preito
de Maria em sua Imaculariedade;
ante a Eva má ela se ergue com piedade,
acima da Trindade o seu poder aceito!
Não que se afirme ser maior, abertamente,
mas por ser mãe, se tornou a intercessora,
em cada igreja a mostrar novo avatar,
enquanto viva, ao lado de um altar
em que do Cristo nu o sangue corra,
em tantas preces adorada claramente!