DISCORDÂNCIA / AQUECIMENTO

DISCORDÂNCIA I – 9 MAIO 21

Embora alguns afirmam não existe

entre homem e mulher a verdadeira

amizade sem conotação sexual,

nessas fileiras acredito não me aliste,

tenho muitas amigas e é certeira

a verdade da amizade não-carnal.

Algumas nem conheço: são fantasmas

que vejo apenas em brilhos digitais,

não obstante, prestam-me favores,

enquanto outras conheço e até visito.

Sinto-te amiga que não vejo e não me orgasmas,

nesse vazio harém sem fins sexuais,

mas permaneço a teu lado nas tuas dores

e me consolas quando me sinto aflito.

DISCORDÂNCIA II

Fazem nas feiras seus malabarismos

esses pelotiqueiros: uma a uma

jogam bolas coloridas, virtuosismos

em apanhá-las de volta, sem que alguma

se perca em revoada nessa ruma

de argolas e frascos, equilibrismos

que a longa prática de trançar ressuma,

gastando a vida em breves cataclismos,

buscando a morte em revoadas tontas,

no malbarato não estando sós

os saltimbancos, só com mais sinceridade,

considerando que, no fim das contas,

pelotiqueiros todos somos nós,

brincando à toa com a felicidade.

DISCORDÂNCIA III

O que eu queria sequer ouso pedir:

não depende de mim – ninguém dará;

nada caiu-me ao colo e nem virá

o ideal dourado e egoísta do porvir.

Assim só quero o que posso conseguir,

que depende de mim e se fará

realidade, caso o esforço o cumprirá:

tais secundários desejos vou atingir.

Não é egoísta, mas não que eu seja bom,

quero torná-la feliz quanto puder,

porque sei que eu não terei felicidade,

mas é possível sentir esse outro dom

de fazer por quem se ama o que é mistér,

por mais amarga nossa própria realidade.

DESENTRANHO (2008?)

(Rascunho que pulou do fundo da gaveta)

Muito em breve farei sessenta e cinco

e para certa idade, ainda meus braços

da antiga força conservaram traços

daquele tempo em que os usava com afinco,

quando lenha cortava com machado

e o chão fendia com uma picareta,

com pá e enxada abrindo vala reta

e com o malho pedras havia rachado.

Há anos já não emprego as ferramentas,

passo sentado frente ao computador,

que o corpo muito mais que elas sacrifica,

mas ainda ostento formas corpulentas,

praticamente guardo todo o meu vigor,

mas só uma parte da força ainda me fica.

AQUECIMENTO 1 – 10 MAI 21

Eu me lembro que fazia antigamente

muito mais frio neste meu rincão,

acho até mesmo que falam com razão

em global aquecimento permanente;

só sei que há anos, muito certamente,

eu sofro com o calor e meu pulmão,

resfolega sob atroz sufocação,

sem que o frio me incomode realmente.

Vejo ao redor a gente encasacada,

enquanto ando só de camisa e camiseta,

sentindo apenas os arrepios do vento;

outros se queixam e eu não sinto nada,

mas no verão eu sofro e a gente quieta,

qual se o seu corpo tivesse outro complemento.

AQUECIMENTO 2

Muito mais simples era a gente antiga,

talvez mais sábia em sua ignorância,

sujeitando-se a uma fácil dominância,

sem desejar tornar-se o próprio auriga;

seguia o patrão, de quem seria amiga,

ou a igreja, criados desde a infância,

ou o partido que em qualquer instância

obedeciam sem escutar qualquer intriga.

Morriam cedo, também. É pura lenda

que os antigos eram mais fortes do que agora,

envelheciam tão só os sobreviventes;

comiam mal, vestiam mal e até a renda,

crochetada ao bastidor em tanta hora,

comia a vida dessas pobres gentes...

AQUECIMENTO 3

Hoje é fácil se achar supermercado,

com mil artigos de toda a variedade,

transporte em estradas tem facilidade

e para as roupas um crediário existe ao lado.

Raramente alguém vejo descalçado,

tem a saúde um atendimento mais cuidado,

só veio agora esse bichinho do pecado.

cobrar um dízimo de toda a humanidade.

Não obstante, em referência ao aquecimento,

salvo o motor de combustão interna,

não creio o provoque nossa civilização;

quem estuda história, tem conhecimento

que existe um vaivém um tanto eterno,

que o clima transforma quase em retaliação.