A NESGA DO SEMBLANTE
A NESGA DO SEMBLANTE I – 23 MAR 2021
Uma nesga de céu apenas, na vidraça,
totalmente estriado o firmamento,
faixas plúmbeas e rosas num momento,
a malva em creme de entremeio passa;
aos poucos, essas faixas com que abraça
o céu em roda nas nuvens sem alento,
vai-se esgotando ao fim do julgamento,
o dia morre, o negrume vem e grassa.
Não vou dizer que a vida passa igual,
quantos disseram o mesmo lá no antanho?
Apenas digo que os meus dias se alongaram
e ao invés de escurecer, esse final
ainda mostra furtacores de arreganho
qual desafio às horas que passaram.
A NESGA DO SEMBLANTE II
A mesma nesga de luz pela janela
ainda permanece. O mais estranho
é que entre o cobalto e fios de estanho,
tremula a faixa rósea em triste vela;
não é branca a nuance que traz nela,
é carmesim que em cinza toma banho,
na renitência de guardar último ganho,
antes que a cor se esfaça toda dela.
Comigo será assim. Minha esperança,
infundada que seja, eu levarei ao fim:
entre o negrume não empalidecerei,
mas guardarei rubor que a vida alcança
até o ofego derradeiro e assim
só no último suspiro apagarei.
A NESGA DO SEMBLANTE III
Nós constituímos o Povo da Mudança:
nenhum animal deste modo se transforma;
talvez sim, por sob o pelo que o adorna,
mas nada que se veja igual alcança
o rosto humano, que de mudar não cansa;
durante a infância, a alma toma forma
e se revela do rosto na bigorna
com que recebe os golpes dessa dança.
Então por certas décadas, apenas
é o mesmo rosto para a maioria,
desde que evitem o sol e muito vento;
comigo conservou-se mais dezenas,
só no último lustro me pungia
a constante expressão do sentimento.
A NESGA DO SEMBLANTE IV
Ainda é o rosto que anteriormente tinha,
os mesmos olhos, a boca, igual nariz,
a mesma barba que conservar eu quis,
mesmo aos poucos colorida de farinha;
mas há rugas onde era pequeninha
a leve marca das coisas que já fiz;
meu rosto foi da vida o almofariz,
sua expressão aos poucos se abespinha.
Aquela nesga de luz pela janela
luta teimosa até chegar a noite,
pois sabe que amanhã retornará;
enquanto a nesga que o semblante me revela
aos poucos muda em paulatino afoite
e igual à antiga jamais se mostrará.