O HERDEIRO DO ARGUEIRO

O HERDEIRO DO ARGUEIRO I – 18 MAR 21 (*)

(*) Grão de poeira.

Em único espelho refletir-me queria,

espelho de gêmeo que os cílios recobrem:

queria o licor que as pestanas desdobrem,

mostrar-me essa imagem que só neles via.

Queria rever-me nos olhos que um dia

meu rosto, meus olhos, meus lábios redobrem,

bem fundo no poço que as lágrimas cobrem,

a inteira visão que de mim permitia.

Porque hoje, se acaso me olho em espelho

ou meu vulto contemplo por entre os caixilhos

ou vejo uma sombra no copo perdida,

em vão perscruto, direto ou de esguelho,

não há outro rosto permeio a tais brilhos,

que refletem somente minha face inserida.

O HERDEIRO DO ARGUEIRO II

Em vão busco o argueiro que creio ainda exista

nos olhos de Deus. Que em tal comissura

um grão da galáxia rasgou leve fissura

e por tempo insondável travou-lhe essa vista.

Imensa esse espaço que de nós assim dista

a pupila divina insondável e obscura,

para os olhos humanos a energia mais pura

que um dia verteu e a verter ainda insista.

Foi assim que ocorrou. Caiu-lhe um argueiro

e o cenho de Deus revestiu-se de pranto,

até que uma lágrima vermelha escorreu

e em gesto casual, sacudiu tal ribeiro

e dessa impureza, sem nada de santo,

nascemos um dia e assim nasci eu.

O HERDEIRO DO ARGUEIRO III

E se olho no espelho que paira no alto,

só vejo a atmosfera azul ou enevoada;

dos olhos de Deus já não vejo mais nada

nem o argueiro de Deus se mostra em ressalto.

O espelho é um só em seu puro cobalto,

não há nada de gêmeo em que a face marcada

possa ver seu reflexo na pupila azulada

e o espelho da terra igualmente está falto.

Não há qualquer rosto a olhar-me de cima

e é bem desconexa a origem da imagem,

mesmo tendo nascido do pranto divino.

Semelhança que exista e que ainda nos mima

é tão só desse Espírito que inspira coragem

e perante esse espelho invisível me inclino.