RISCAS NA ÁGUA &+

RISCAS NA ÁGUA I – 10 OUT 20

Você já deve ter observado,

a cada vez que abre sua torneira,

ou quando água derrama desde a beira

de um balde ao recipiente desejado,

que o líquido até parece tracejado,

tal qual se o jato percorresse esteira,

demarcada vereda ou uma ladeira,

qual risco sólido ali fosse demarcado.

Do mesmo modo, se oportunidade teve

de olhar de perto a passagem de um regato,

como a água escateia entre as pedrinhas,

seguindo sempre o mesmo traço leve,

alguma coisa a encaminhando nesse trato,

a percorrer constante iguais voltinhas...

RISCAS NA ÁGUA II

Bem parecido é o que fazem as ovelhas

quando seguem ao longo de uma estrada,

exatamente na mesma trilha demarcada,

uma após outra seguem retas como telhas;

se com cuidado esse caminho espelhas,

às vezes notas que a senda acompanhada

é mais difícil que a normalmente usada,

mas o seu passo determinam as mais velhas,

sempre uma é o sincelo do rebanho

e se o risco foi escolhido pela guia,

a tropilha inteira o seguiria,

mesmo que seja ali o de menor ganho,

tal qual se corda a puxasse pela lã

e tentar desviá-la é coisa vã...

RISCAS NA ÁGUA III

Na torneira as riscas são determinadas

por pequena falha ou saliência no seu bico,

que a água obedece, mesmo em pleno pico,

como traços assim predestinados;

mas quando novos modismos são lançados

serão seguidos pelo pobre e pelo rico

e muitas vezes bem surpreso eu fico

ante os novos caminhos hoje traçados,

mas que eu mesmo não sigo, geralmente:

é bem raro influenciarem-me tendências,

até provável que eu escolha o oposto

ou prosseguir minha risca antiga simplesmente,

mais como água adotando minhas valências

do que tornar-me como ovelha a contragosto!

FAIANÇA I – 11 OUT 2020

És para mim faiança delicada,

feita de argila, igual como fui eu,

mas bem maior tua perfeição que deu

essa oleira que ao genoma deu morada

e após nove meses, sempre acompanhada,

teus pés e mãos ao mundo concedeu;

como faiança portuguesa te acolheu

até chegar a ocasião determinada

de compores comigo tua baixela

da antiga raça quase imemorial

que antes mesmo que Romanos lá chegassem

já ali fabricava a louça bela,

aperfeiçoada ao som de algum jogral,

até o momento em que a ti gerassem.

FAIANÇA II

Já com frequência encontrei comparação

da pele fina com a rica porcelana,

também argila com cuidado posta à chama,

que não rachasse durante a concocção,

muitos afirmam de chinesa criação,

mas que Mohenjo Daro na Índia mais reclama:

monges budistas para a China a flama

transportaram com intensa devoção,

que depois retomaram Japonesas,

com seus conjuntos delicados para chá,

que nas famílias antigas ainda se há

de encontrar, só raramente sobre as mesas,

mas eu prefiro as faianças coloridas,

sem ser a uma só função comprometidas...

FAIANÇA III

E assim escolho te chamar faiança,

mais resistente e de longa duração,

delicada e conservando sua função,

a que minha boca mais fácil alcança;

eu te percebo à frente sem tardança

a cada vez que tenha precisão;

estás comigo em plena devoção,

mesmo que às vezes não de todo mansa...

Não que a utensílio te pretenda comparar,

bem ao contrário, sempre busco te servir,

com meus limites e possibilidades

e com cuidado sempre pude te aparar,

que não pudesses pelo chão cair,

fazendo em cacos tua feminilidade!...

PRODIGALIDADE I – 12 OUT 2020

Ela dirige os seus passos para o quase,

indecisa a atender tanto chamado;

ouve um apelo e já outro é abandonado,

depois se esquece e já enceta nova fase,

sem passar muito tempo em tal descase,

surge outro impulso e novo ideal alado

lhe agita as penas até ver-se começado

um novo voo em farfalhar de gaze...

É como o vento, que tudo beija e passa,

seu manso ideal em breve deixa mudo

e para a próxima ilusão é desviada...

Nada resulta assim de quanto faça,

porque na vida qualquer que busque tudo,

mais cedo ou tarde encontrará o nada...

PRODIGALIDADE II

Confesso realmente desconheço

essa mulher que agora descrevi;

junto de mim vezes sem conta a vi

e no entretanto, de me espantar não cesso

dessas mudanças de que também padeço,

sem saber hoje qual sobrevive aqui

ou o que jamais reencontrarei ali

e de tratá-la com carinho não me esqueço;

em geral, não me nega o que lhe peço,

mas considero seu impulso do momento

e muitas vezes evito o desalento:

meus próprios lábios com cuidado engesso,

sem lhe querer dar oportunidade

de algo negar-me por pura veleidade...

PRODIGALIDADE III

De ter mil almas esta mulher já descrevi,

tamanha seja a sua ondulação

e não apenas dos quadris que estão

ainda atraentes, igual que a conheci;

porém ondula muito mais em si,

em veraz e constante mutação

de seu humor e igual de sua intenção,

tal qual se Verdi a descrevê-la compreendi;

porém embora antes cantasse Questa o Quella,

eu nunca fui do mesmo parecer,

com La Donna è Mobile é que fiz comparação

de minha variabilíssima donzela,

que me protege e tem minha proteção,

sem que deseje qualquer outra senão ela!