DESGASTE &+
DESGASTE I – 21 AGO 20
QUANDO A PILHA DO RELÓGIO ESTÁ CANSADA,
ELE FAZ SEU TIQUETAQUE, MAS NÃO ANDA
E ASSIM TRANSMITE INFORMÇÃO NEFANDA
PARA QUEM BUSCA OBTER HORA ACURADA.
AO SE TROCAR A VELHA PILHA DESOLADA,
SERÁ PRECISO ABRIR A SUA LOCANDA,
MAS COM CUIDADO, SENÃO A HORA DESANDA
E A TROCADORA FICARÁ DESAPONTADA!
TROCADO ESTEJA O CILINDRO TÃO BRILHANTE,
DE NOVO SE RENOVA O TIQUETAQUE
E O RELÓGIO ANUNCIA AS NOVAS HORAS,
DESDE QUE ACERTO CORRETO E ELEGANTE
LHE SEJA FEITO, SENÃO EM PERIPAQUE,
CONTINUA A PROPALAR TÃO SÓ DESORAS...
DESGASTE II
TAMBÉM A PILHA DAS PESSOAS SE DESGASTA
QUANDO FALHA EM TIQUETAQUE O CORAÇÃO,
ÀS VEZES SENDO NECESSÁRIA INTERVENÇÃO,
DOUTRAS VEZES SEQUER ISSO NÃO MAIS BASTA.
MUITO PIOR, PORÉM, É QUANDO EM PASTA
TORNA-SE AOS POUCOS A CEREBRAÇÃO;
É BEM DIFÍCIL NESSE PONTO ARRUMAÇÃO,
DA MOLÉSTIA A DEPENDER QUAL SEJA A CASTA.
SEMPRE UMA PILHA VELHA SE DESCARTA,
MESMO POR FORA MOSTRANDO-SE BRILHANTE,
MAS NÃO SE PODE FAZER COM QUALQUER MENTE;
ATÉ UM CORAÇÃO, QUANDO SE FARTA,
PODERÁ TROCADO SER POR UM IMPLANTE,
MAS DE QUE MODO TROCAR CÉREBRO DOENTE?
DESGASTE III
SEMPRE ME OLHEI COM UMA CERTA DESCONFIANÇA
OU ANTES FORAM OUTROS QUE INCUTIAM
QUE PARA LINDOS MEUS TRAÇOS NÃO SERVIAM
E QUE DE LADO DISPUSESSE ESSA ESPERANÇA
DE UM DIA REVELAR MELHOR PUJANÇA;
TAL ILUSÃO SEMPRE AO REDOR ME DEVOLVIAM
E SEM O REFLEXO CUIDAR QUE OS OLHOS VIAM,
CALMO ACEITEI DO VEREDICTO A DANÇA...
ASSIM JULGUEI-ME FEIO E CORPO E ROSTO
DESCUREI TOTALMENTE EM TAL DESGOSTO
E REFUGIEI-ME DA CULTURA NO CASTELO;
E SÓ ÀS VEZES ME PERPASSA DE RELANCE
QUE ESTEJA ASSIM ALGUM DIA A MEU ALCANCE
ME OLHAR NO ESPELHO E ENFIM, ACHAR-ME BELO!
DESGASTE IV
MAS BEM PIOR SERIA, CASO UM DIA,
O MEU ESPÍRITO SE CONTEMPLASSE NO ESPELHO
DA MENTE, A PERCEBER-SE ALI SER FEIO E VELHO,
JÁ SEM MAIS SENTIR RANCOR OU NOSTALGIA.
A MELHOR OBRA SEMPRE SE REALIZARIA,
SEGUNDO DIZEM, ENQUANTO O ÉLAN DÁ RELHO
E IMPULSIONA À CORRIDA CADA ARTELHO,
QUE NA VELHICE LOGO SE ABRANDARIA.
MAS ATÉ HOJE CONSERVO O TIQUETAQUE...
E AINDA PRODUZO O MESMO OU MAIS QUE DANTES
E ATÉ SUSPEITO QUE SEJA BELO O RESULTADO
DESSES SONETOS A CORRER EM ATABAQUE,
NA MINHA VÃ ESPERANÇA QUE ALGUM CANTES
OU QUE, IGUAL PILHA, NÃO SEJA DESCARTADO...
ALMA LEVE I – 22 AGO 20
O SÁTRAPA SE ERGUE EM GESTO ALBÍGERO
E A FÊNIX CONTEMPLA NO SEU NINHO
CÁLIDO E LUMINOSO E ESTÁ VIZINHO
DE SOLAR CONFLAGRAÇÃO EM GESTO ALÍGERO
ALI ELE REFLETE EM PRANTO LACRIMÍGERO
O SALTITAR DAS CHAMAS DE MANSINHO
A PERCORRER-LHE O ROSTO, COM CARINHO
LARANJA E NEGRO EM PALPITAR FUMÍGERO
ENTÃO LAMBE OS REFLEXOS E ENGOLE
PARTE DA LUZ QUE BRUXULEIA DESSA PIRA
ALI A FÊNIX RENASCE E A OUTRA MORRE
ELE SE VESTE DE FOGO, ESTRANHO FOLE
QUE LHE ENCHE OS PULMÕES AO SOM DA LIRA
QUE EM SUAS ARTÉRIAS LENTAMENTE ESCORRE
ALMA LEVE II
SÓ EU PERCEBO NA RAIZ DE MEUS CABELOS
AMARFANHADOS EM RITMO ASSOMBROSO
NA PERCUSSÃO DE CUNHO TENEBROSO
EM SACRIFÍCIOS PERCUTIDOS, CEREBELOS
OS HOLOCAUSTOS DE UM VERÃO VENTOSO
EM QUE ME QUEIMA A BRISA DE UM MORMAÇO
E DE MINHA TEIMA DESAPARECE O TRAÇO
SOU COMO JÓIA EM ESTERCO PAVOROSO
O SOL QUE PULSA NO ÚLTIMO HARPEJAR
UMA CASCATA DE SANGUE SOBRE O TÁLAMO
ENFARDADA À LUZ EXTINTA DO FAROL
QUE SÓ DISTINGO NO RUGIDO DO HIPOTÁLAMO
É O VATE EM PIPILAR DE ROUXINOL
COM O DERRADEIRO AEDO A DISPUTAR
ALMA LEVE III
TAL QUAL SÁTRAPA E FÊNIX SOU MIRAGEM
UM TURBILHÃO DE FASTIDIOSOS JULGAMENTOS
EM UMA ARENA DIGLADIANDO PENSAMENTOS
SEMPRE INDISPOSTO COM MINHA PRÓPRIA IMAGEM
E A ALMA LEVE ONDULA APENAS NA PAISAGEM
EMOLDURADA POR TEUS FRÁGEIS SENTIMENTOS
QUE CONSTRUÍSTE PARA TI EM MIL MOMENTOS
NA QUAL APENAS ME ACEITAS DE PASSAGEM
E A ALMA PESADA DE TANTOS DESENGANOS
EM CONSEQUÊNCIA DE TANTOS MALQUERERES
SOMENTE EM TI SE DESVESTE DO ENVOLVENTE
TEU SORRISO A CURAR-ME TANTOS DANOS
O LEVE TOQUE DE TUA MÃO IGUAL BENZERES
PARA O RANCOR A SERVIR-ME DE EMOLIENTE.
FEIRANTE I – 23 AGO 2020
Escuto em mim mil versos em tambor,
cada nuance a revelar da humanidade,
suas tristezas de milenar perenidade,
as cento e vinte facetas do rancor,
as mil e cem migalhas desse amor
distribuído em descuidada liberdade
e retirado sem a menor bondade,
qualquer que seja seu distribuidor.
Teu próprio peito desvendo com luneta:
tanta beleza mesquinha se acha ali!
Tanta certeza falha e morta percebi:
tem cada alma tanta paixão secreta
que nunca realizou e nem o irá,
se for possível, que do mundo ocultará.
FEIRANTE II
Sei o que ha em ti, porque havia no passado,
nesses poetas que ergueram-se do pó,
fênices pobres em ninhos de cipó, (*)
cujos desgostos têm-me confessado,
cujos amores têm-me declarado:
melhor a entrega que continuar-se só;
nem sei se hoje me alegro ou tenho dó,
apenas sei ser assim aquinhoado
por bênção/maldição, a receber
tantas agruras para atiçar as minhas,
mil alegrias de que não compartilho,
mas que peneiro com senso de dever,
as minhas mesmo percebendo tão mesquinhas,
tão mais sofridas sendo essas que perfilho!
(*) Plural correto para “fênix”.
FEIRANTE III
E no entretanto, percebo que houve um dia
em que sofreres meus ao mundo oferecia,
como destrincho nos rascunhos que fazia,
não os recentes, mas de décadas passadas,
antes chegassem tais almas assombradas,
em suas tristonhas e certeiras revoadas,
minha alma a perfurar com suas bicadas,
que amor revele e a dor que algum sentia.
E vendo isso, me percebo tão pequeno!
Envolvido num manto de humildade,
o que sofri só conformou minha empatia
e fico aqui, em gentileza de veneno...
Eclusa aberta para tanta humanidade,
que já sofreu tanta desdita e desvalia!...
FEIRANTE IV
Será que então não tinha mais pudor?
Que os sentimentos apregoasse pela praça
e lançasse aos quatro ventos toda a jaça
que pela alma angustiava o meu candor?
Que desta forma me expusesse sem temor,
à lingua alheia expondo minha desgraça,
na liturgia incauta de uma traça,
chaga medonha mas de mínimo valor?
Para nós mesmos as tristezas são fatais,
mas a quem importavam amores e perjuras,
fatos apenas corriqueiros e banais,
a comparar com as alheias amarguras?...
Hoje me basto a transmitir falacidades
que me venderam nesta feira das vaidades!