DOIS SONETOS DE CAMÕES

DOCE CONTENTAMENTO JÁ PASSADO

Doce contentamento já passado,

em que todo o meu bem já consistia,

quem vos levou de minha companhia

e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado

naquelas breves horas de alegria,

quando minha ventura consentia

que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi cruel e dura

aquela, que causou meu perdimento,

com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhuma criatura,

que não pode nenhum impedimento

fugir do que ordena sua estrela.

DOCES ÁGUAS E CLARAS DO MONDEGO

Doces águas e claras do Mondego,

doce repouso de minha lembrança,

onde a comprida e pérfida esperança

longo tempo após si me trouxe cego:

de vós me aparto; mas, porém, não nego

Que inda a memória longa, que me alcança,

me não deixa de vós fazer mudança;

mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento

d' alma levar por terra nova e estranha,

oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,

nas asas do ligeiro pensamento,

para vós, águas, voa, e em vós se banha.