DOCE É O REGALO (E MAIS)

DOCE É O REGALO I

William lagos, 2-11/6/2018

Doce é o regalo i – 2 jun 18

Te despes para mim, tal qual se fosses

Um presente num invólucro lacrado,

Dentro do fólio, teu corpo mais dourado

A se tornar a mais cara de minhas posses.

Eu te acarinho então, tal qual se roces

Na epiderme o prêmio desejado,

Por tanto tempo na mente só aguardado,

Correm papilas dos dedos sonhos doces.

Mimo macio, ante a palma curvatura,

Sua suave superfície respondendo

Ao gentil toque incrédulo das mãos.

Como guardar tal estatueta pura,

Livre de poeira, sutil permanecendo,

Contradição dos duvidares vãos?

Doce é o regalo ii

Por tantos anos o desejo reprimido,

Sem esperar que se realizasse,

Sem investir, descrente me encantasse

E agora antes meus olhos seduzido.

E quem diria que tal sonho perdido

Minha realidade caótica estampasse,

Sofreguidão incrédula alcançasse

A opalescência de meu viver sofrido!

E contudo está aqui, desembrulhada,

Sem qualquer pressa, voluntariamente,

Doce surpresa que se faz presente,

Pousada estrela de chispa sideral.

Por nem pensa-la jamais reencontrada,

Em Reverbero cintilante de cristal,

Doce é o regalo iii

Mas a que ponto posso conceber,

Passados anos desta quarentena,

A espera mastigando que envenena,

Que esse presente me pudesse pertencer?

E até que ponto para ela posso ser,

Nesse momento triunfal de pena,

Mais do que a mão egoísta que condena

Sua independência a se desfazer?

Porque o presente, em dádiva de amor,

Ansiar precisa por quem o abrirá:

Tal criatura grosseira de paixão.

E quando se abre para mim como uma flor

Nenhum orgulho em mim resistirá,

Senão mostrar-lhe a mais intensa gratidão.

Via Saliváctea 1 – 3 junho 2018

Contemplo o teto de mil bocas divinas

Que se dobra sobre mim, intensamente,

Em fragrância cada imagem descendente

A provocar-me feridas pequeninas,

Na ânsia arcana por sendas peregrinas,

Entre umidades, perfurantemente,

Que em tal nublado, com o olhar da mente,

Percebo nítidas em cem difusas sinas.

Meu coração de saudade se amargura,

Não pelo tido, mas que nunca pude ter,

Até meus braços deixo abrir em cruz,

Meu sangue inútil em hemorragia pura,

Desdém perpétuo da vida a receber,

Enquanto estrelas sobre mim babam sua luz.

Via Saliváctea 2

O mundo é feito de esperanças mortas

Que a gente esqueceu de amamentar,

Tão fraca a linfa do cérebro a jorrar,

Alambicada das veias nas retortas.

Após abrirmos e fecharmos portas,

Tantos salões deixados a murchar,

Farpas de sonho que jamais se vê medrar,

Dedos de alma que tu mesma cortas!

Tantas feridas a ser autoinflingidas,

Cem hematomas sem bálsamos dolentes,

Já não bastam os que nos causam outras gentes?

Somente os sulcos estelares incontidos,

Descendo sobre nós como elixir,

Nas noctívagas noites sem dormir.

Via Saliváctea 3

Mas cada estrela da esfera indiferente

Destila sobre nós, itinerante,

Esse Fogo de Santelmo impactante,

Qual faz o Sol abnegadamente,

Na noite de cobalto complacente

Num irradiar de íris palpitante,

Ou que cromado seja apenas, inconstante,

Obtusa bênção sem intenção subjacente.

Dessas tranças de luz feitas saliva,

A testa a nos lamber com complacência,

Que em vez de nos sugarem, fortalecem!

Nunca a tristeza a se tornar tão viva

Que na total compreensão dessa impotência

De retribuir, enquanto as luzes desfalecem!

UIVARES I - 4 JUN 2018

Teus gritos são poemas. Tantas noites

Os teus desejos percorrem ventanias

Que arrastam os meus nervos. Tantos dias

Sem um silêncio seguro em que me acoite.

Tua solidão me corta como açoites,

Faz dos postigos das janelas vias,

Torna as paredes em amplas senhorias

E me atinge feroz todo o pernoite.

Não sei de onde me gemes, de onde os gritos

Que me atoleimam todas madrugadas,

Gritos de vivos e solidão de mortos.

Só sei que se desfazem não escritos

E os registro diariamente entre meus nadas.

Eu sou Caronte a remá-los em seus portos.

UIVARES II

Apenas eu escuto o som dessa alcateia,

Mergulhada em seu mar de desespero,

O próprio Estígio está afogado inteiro

Em cada uivo que emite essa assembleia.

Mas sobrenadam nessa talasseia,

Por entre as ondas de marulhar ligeiro,

Nunca sofrendo afogamento mero

No crepitar constante da epopeia.

Não os percebo jamais fora de mim

E nem de dentro. Estão todos trancados

No multifário oceano individual.

Mas os escuto perfeitamente assim,

Sou carcereiro que injuria os seus passados

Para transpor em versos cada mal.

UIVARES III

Ah, teus gritos, onde quer que tu estejas!

Meus nervos percorrendo em madrugada,

Em que plano da realidade itinerada,

Lastimam sonhos que em tortura beijas?

Que não são meus gemidos que me ensejas,

Pura Parvati, minha avatar dourada,

Coma fulgente na noite despenteada,

Dessa tua cela é possível que me vejas?

Mas sou egoísta. E ao invés de consolar,

Ponho teus prantos na betoneira da poesia

E a cada dia os transformo em argamassa!

E ainda às vezes me atrevo a imaginar

Que essa mistura de quimera e de elegia,

Nada mais seja que uma dor que me trespassa!

RETORNOS I – 5 JUNHO 2018

O engraçado é que me vem premonição

De algo que haverá. Imaginei

Que água escaldante nas costas derramei

Com bolhas e inchaços em minha mão.

O fato é que uma dupla proteção

Me concedi. A chaleira eu enrolei

E ao encher as duas térmicas, evitei

Que uma só gota pingasse sobre o chão.

Lembrando o gato, afinal, besta maligna

Que veio um dia morder-me com paixão,

Estufando-me a mão qual queimadura.

Que essa intuição que a mente minha persigna

Já tanta vez imaginou outra invasão

Dos asseclas do diabo e da amargura.

RETORNOS II

Não foi uma só vez. Já com frequência

Escutei esse aviso de “Não Vai!”,

Qual adriça bem firmada num estai,

Para evitar da borrasca atroz potência!

Sempre que a voz desafio com indolência,

Certo perigo sobre mim recai,

Certo inimigo rebel das sombras sai,

Alguma coisa me assalta em sua demência.

Algum diria ser o meu Anjo da Guarda

Ou meu espírito seria tão somente,

Minha própria alma protegendo do perigo,

Quem sabe um protetor de rubra farda

Que desde o cérebro, em prontidão frequente,

Sobre meu rosto lança escudo amigo.

RETORNOS III

Entenda bem. Não se trata de remorso,

A não ser que possa ser antecipado,

Quando não pude cometer algum pecado,

Carga pesada sobre o frágil dorso

Ou o organismo a reclamar do esforço

De algum mister por exaustão pejado...

Mas pode o corpo ser da mente separado,

Controla a mente o coração no torso?

Não obstante, certa é a premonição,

Que infelizmente, não me orienta para o bem,

Só contra o mal me intenta proteger,

Nesses muitos percalços que aqui estão

E bem queria que a ouvisses também,

Calada voz que mal podes perceber!

indolência 1 – 6 jun 18

quero esquecer de ti, mas sempre adio

porque esquecer de um amor é trabalhoso

uma ferida a apalpar sendo gostoso

em sua perversa intromissão sem brio

como os dedos apertar em dia de frio

cortar as unhas um processo tenebroso

a algum incômodo apego até acintoso

ou de qualquer premonição de que me rio

mas eu tenho este dever e me angustio

para poder-te enrolar no esquecimento

é necessário um especial talento

para cortar um amor fio após fio

um filamento tal qual teia de aranha

que em tanto ponto da mente apoio apanha

indolência 2

quando se julga amor ter esquecido

é como algum casulo em resistência

tantas linhas de rubra consistência

qual setcrísea ao arrancar rompido

um vegetal que foi por mim até querido,

ingenuamente o plantei com insistência

mas foi crescendo na maior potência

a outro amor impedindo toda a entrada

idêntica resiliência tem amor

que a gente plante no jardim do coração

cresce demais e a alma nos domina

sem dar espaço a qualquer outro calor

mesmo em desdém perdida a aceitação,

transplantado feliz para outra sina

indolência 3

pois sou forçado assim a confessar

que ainda me agrada a permanente flor

por mais que seja alheio o seu pendor

sem interesse que me possa relembrar

talvez num traço de vaidade singular,

algum muxoxo de desprezo sem calor

ao perceber-me ainda regador

da flor obscura que não posso arraigar

mas a questão não é se me deseja

mas se eu desejo deste amor me desfazer

a intenção sobre minhalma adeja

perfeitamente, sabendo esta mulher

devia cortar em sua luz que não me beija

mas é tão árduo me animar sequer!

Íris facial 1 – 7 junho 2018

um arco-íris enxerguei à meia-noite

brilhava nele um rosto de mulher

quem sabe um anjo ou avatar qualquer

que de algum modo na estampa teve acoite

configurado num estelar aboite

suas sete cores afigurando que me quer

parte da luz nesse esguio bem-me-quer

raios tangentes em inocente açoite

ambos os olhos percebo claramente

está o nariz somente delineado

a boca rubra como beijos de romã

a mim mesmo acoimando de inocente

por imprimir algum gestalt nesse afã

em que de fato nada existe combinado

íris facial 2

talvez me indagues por que não de homem

toda mulher é maternal concepção

os olhos baços do berço nela estão

mais concentrados que em braços que os tomem

quando os maternos por instantes somem

e é nesse instante que se faz concepção

dos arquétipos arcanos que nos são

comunicados pelos gens que a mente domem

por que haveria então algo de estranho

só porque agora nesse ardente lesbianismo

tanta intenção masculina é perseguida

salvo se for manifestada sem acanho

em declarado gaymossexualismo

patriarcados derrocados de vencida

íris facial 3

não chego ao ponto de afirmar ser suicídio

racial esta mística tendência

possui o útero a sua real potência

e pouca lésbica comete genocídio

na verdade foi atroz socialicídio

que tanta jovem encadeou, falsa inocência

em um convento qualquer em que a aparência

de qualquer filho foi sofreada em filicídio

e quem afirma progênie não querer

mais comumente sofreu certa circunstância

da economia ou religiosa manigância

que a impediu de um nenê desejar ter

eu creio ainda na força da mulher

que mesmo só, a mãe deseja ser

íris facial 4

assim o rosto desta imaginação

foi certamente para mim um de mulher

talvez a virgo do zodíaco mister

ou a própria ursa maior em gestação

no simbolismo da arcaica produção

que nos orienta na senda que escolher

e não permite nosso norte se perder

do mesmo modo que a mãe na criação

o filho orienta, mesmo tendo escassa luz

mas também vejo na estrela alguma amante,

alguma filha ou irmã, deusa constante

que na wicca à antiga senda nos conduz

ou a grande mãe, sincretizada instante

nessa judia que concebeu jesus

PERIFERIA I – 8 JUN 18

Muito fantasma a periférica visão

já derramou por sobre a humanidade,

mal definido em momento de saudade

entre as grades das pestanas em prisão.

Quanto vidente em mediúnica ilusão,

quais profecias de espiritualidade,

quanta enxaqueca em súbita ansiedade,

os abantesmas que de teus olhos são!

As gentes sóbrias raptadas nesse olhar

sendo suspeitas até de embriaguez,

fantasmagórico ser de um só piscar,

almas penadas sem ter um cemitério,

dez lobisomens de extrema palidez

nessa nítida visão de despauterio!

PERIFERIA II

Algumas vezes, nem há fantasmagoria,

por um momento tem-se uma suspeita

que junto a nós, tal como em tanta feita,

alguém amado nos visita em alegria!

Mas que em outra peça da casa ficaria,

nossa fugaz visão tão imperfeita!

Conformação desejada que se ajeita,

passa uma nuvem, depois o sol espia

e nessa leve variação que havia

nós ideamos a perfeita formosura

ou ao invés, aberração mais dura.

Como é ansioso em buscar significado

nosso inconsciente, na solidão mais pura,

cria um duende ou então ser bem-amado!

PERIFERIA III

Não obstante, os afetados de glaucoma,

comprometida a periférica visão,

nem deveriam divisar tal ilusão,

alguns casos, porém, ainda se soma,

que em certa vez o olhar memória toma,

mostra as pestanas em tranquilização

ou o inconsciente apresenta a sua moção,

silfos ou elfos sutilmente nos embroma!

Se for um ser amado, é desaponto,

mas em geral, mais recorda um diabinho

ou um ogro mau de aspecto feroz,

besta surgida de primitivo conto,

quando se esvai, deixa alívio pequeninho,

que acalma o coração de todos nós!

PERIFERIA IV

Mas os Romanos tinham Deuses Lares

e seus Penates, estatuetas na verdade,

os Teraphim da hebraica antiguidade,

que deveriam protegê-los dos pesares.

E quando das pestanas tais azares

pareciam mostrar qualquer deidade,

triste surpresa da transitoriedade:

foi um aviso que trouxeram nosso pares!

Suas Duas Sombras buscavam propiciar

e em nossos tempos de tanto ceticismo

só concebemos uma insólita figura;

talvez até nos ergamos a buscar,

folhando as páginas de um ímpio catecismo,

qual a mensagem que a visão nos assegura!

SOMBRAL I – 9 JUN 18

Também na rua há sombras que passeiam,

insólitas, é certo, enevoadas,

piscas os olhos e tais pequenos nadas

nas frestas se recostam, pois receiam

que um passante, por quem eles permeiam,

possa notar essas brumas deslocadas

e de novo querê-las invocadas

e depois em sambenito as incendeiam!

São essas sombras totalmente inofensivas,

sem nem sequer demonstrar curiosidade,

apenas tornam de novo a seu passado

e outras brotam, das calçadas redivivas,

só desejando beber a claridade

de um sol poente e já quase apagado.

SOMBRAL II

Só as enxergo através de minha vidraça,

por qualquer imperfeição nesses caixilhos,

talvez arco-íris indolentes, peralvinhos,

em refração que derrama e se perpassa

ou fruto impuro da solária graça,

de um cérebro febril pequenos filhos,

a escorregar quais lágrimas em trilhos,

mas intangíveis quando a gente as caça!

E quem deseja uma nova inspiração,

em clara troça, mas com benevolência,

bem que procura as finas linhas encontrar,

mais esguias que um amor sem provisão,

mais falhas que uma prece sem decência,

onipresentes como a dor mais singular.

SOMBRAL III

Vejo outras sombras, porém bem mais concretas,

elas se movem no volver do Sol,

horizontais no momento do arrebol,

pequenas chispas nas canículas completas,

mil exercícios para geômetras estetas,

na perspectiva ondulações de escol,

nas invertidas projeções anzol

que a vista atrai no momento em que a projetas.

Só retornam no outro dia, realmente,

agrimensura não se faz com precisão,

alguns milímetros se aqui diferenciam

e as abstratas que aqui projeta a mente,

quem nos diz se igual matéria alcançarão

do que estas sombras que só da luz espiam?

FRACTAIS DE PASSOS I – 10 JUN 18

Nessa infinita variância dos fractais

o mesmo esquema de uma anterior repete,

um capilar para a frente se intromete,

mas para os lados permanecem laterais.

E mesmo quando não escolhas mais,

existe escolha que na tua se intersecte,

que na tua linha de vida se intercepte,

os dias forçando em esmerís fatais.

O desenho é realmente incompreensível,

tanta coisa se retorce e se corrige,

causa teu bem ou sobremodo aflige,

nesse tear que por ser imperceptível,

nem por isso é menos dominante:

se não escolhes, a te levar por diante!

FRACTAIS DE PASSOS II

Se percorres certas ruas muitas vezes,

corres o risco de tropeçar sobre ti mesma

e ao te mirares, pensarás em abantesma,

mas é tua imagem especular dos velhos meses.

Mesmo que o antanho de forma alguma prezes

e anos encares quais passos de lesma,

um dia com outros se acumula numa resma,

sem que os reflexos projetados peses.

Sendo infinita a variabilidade

da vida do possível e do impossível,

em cada ponto se encontra encruzilhada

e ao escolher sem inevitabilidade,

teu lado oposto se faz mais invisível,

mas nem por isso se reduz a nada.

FRACTAIS DE PASSOS III

Quando criança, em inocente travessura,

carregava entre meus braços um espelho,

que refletia tão só o teto velho,

cada passo a abranger nova aventura.

E caso aberta a porta se descura,

o céu surgia a meus pés, embora o artelho

encoberto estivesse e algum conselho

se desprezasse por adrenalina pura.

De certo não caí, mesmo se a escada

percorresse nos meus passos siderais,

enquanto o céu em nada se afastava

e sobre o vidro revoava passarada,

sem ao horizonte me puxarem por demais,

só até o pomar em que o solo se esgalhava.

FRACTAIS EM PASSOS IV

Na vida encontras uma idêntica visão,

no teu caminho especular visagem,

que refletiste ao longo da paisagem,

jamais pensando em recuperação.

E se no espelho do passado pões a mão,

não é a calçada dessa atual paragem,

mas o recorte esquecido de uma imagem:

antigas coisas teu olhar percorrerão.

Se for cidade estranha, é irrelevante,

mesmo que encontres antiga encarnação,

dificilmente te reconhecerás,

mas se for rua de teu marchar constante,

quem sabe vês criança ou mesmo ancião

de algum futuro que algum dia cruzarás?

TEXTIBILIDADE I – 11 JUN 18

As agulhas da chuva costuraram

o Céu à Terra, cada vez mais perto,

o intermediário espaço ainda aberto,

mas horizontes já se misturaram,

nas vastidões se igual precipitaram

e a relva cresce no solo do deserto,

até mesmo algum djinn se faz desperto

e se oculta dos pingos que o molharam,

pois então busca a escuridão em desacato:

quem estragou o seu jantar de areia,

quem apagou a flama que permeia,

quem se achegou de si intimorato?

E a chuva desce por cada capilar

e até no fundo ao djinn vai empapar...

TEXTIBILIDADE II

A chuva desce nesses fios frementes,

habilidosa e veloz em lançadeira,

não um chuvisco apenas de terceira,

como o alfaiate com joelhos já dormentes

que se assenta na mesa, junto aos crentes

judeus na sinagoga, arcana jeira

em que o Talmude se lê a tarde inteira,

nesse balanço ante a memória impenitente.

Esse chuvisco é costurado ponto a ponto,

já estão míopes as vistas do alfaiate,

a quem o corte de pano as mãos aquece,

no movimento contínuo e quase tonto

e nas veias dessas mãos o frio se abate,

cada laçada em primorosa prece.

TEXTIBILIDADE III

A chuva desce como adaga em madrugada,

mas ao invés de cortar o capim, prende,

tapeçarias de verdigris estende,

cada raiz outra vez entrelaçada;

a chuva desce no verão toda encadeada,

um cajado quase sólido o chão fende,

mas nova gota cada greta atende,

feroz a chuva na manhã acinzentada;

sombras apaga e costura contra o solo,

o Sol inerme só espia, ensimesmado,

porém o vento vai ficando enciumado

e sopra os mil filetes do seu colo,

até empalidecer cada bulcão,

chuva esquecida pelo rés do chão.