AMOR ATO TRÊS

O estraçalhar da noite não são estrelas,

são sorrisos e pagam em outra moeda,

embora não haja alivio diante da perda,

o amor se expande perto da queda.

E amados são teu suor e esmalte tão intensos

eles combinam com as sensações dos rastros,

entranhas deixadas na língua das estradas,

logo no limite serás meu e puxaremos astros.

Perdoo a noite que esqueci

Não vejo uma lua, apenas a acesa testemunha.

Eu te mereço e sei disto pela seiva de ti.

Não devo chorar na junção incrível,

devo agradecer ao gênio imperdível

aceitar teu amor na simultaneidade da lesão.

Marília ainda era estagiária em enfermagem quando um rapaz esfaqueado e inconsciente entrou na emergência do Hospital Santa Luzia em Fortaleza. O médico examinou a vítima, o corte fora aberto na altura do estômago; tomou alguns cuidados e pediu à Marília as seguintes providências: colocar a luva cirúrgica e introduzir lentamente a sua mão direita dentro da cavidade formada pelo ferimento do rapaz. Marília, julgando iniciar algum tratamento, obedeceu ao homem, introduziu lentamente a sua mão no estômago da vítima, mas quando estava no caminho, depois do corte, ela sentiu, devagar, as últimas batidas do coração daquele paciente. Marília puxou a mão e gritou. Soltou um grito enorme e ouviu a risada do médico titular, por coincidência também o seu professor na Faculdade de Enfermagem.

O mestre ordenara a providência da introdução da mão no abdômen do rapaz esfaqueado, não como uma tentativa de salvação do paciente, já condenado, mas para Marília sair do estágio, tornar-se uma profissional enfermeira que conhece e sabe relativizar a hora da morte. Enfermeiras devem adquirir a noção do efêmero.

Marília também começou a chorar. Chorou muito, junto com os familiares do rapaz, que morreu logo depois. Marília chorou porque percebeu também: sua mão dentro daqueles restos mortais não tinha sido apenas uma aula prática. Marília se sentiu unida ao corpo do jovem e tudo - o ferimento, a luva cirúrgica, o coração do paciente, o coração de Marília - pareceu uma fileira de dominós em queda, retida ali entre seus dedos.

Marília lembrou deste fato como a ocorrência mais marcante de uma carreira de cinquenta anos. Tão marcante para confessar a sua única irmã:

- Eu nunca me casei, mas algo em mim continua tão ligado ao tal rapaz quanto naquele dia.

Grandes são as coincidências neste mundo. Sábado, dia 23, Marília faleceu por causa de uma úlcera.

Marília tinha setenta anos. Deixa uma irmã, também enfermeira e um sobrinho.

Apenas a irmã entendeu o pretexto amoroso da úlcera de Marília.

Do meu livro: "AMOR ATO ZERO"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 20/08/2018
Reeditado em 31/10/2024
Código do texto: T6424312
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