O COVEIRO E O MORTO

-Coveiro, boa noite. Posso entrar?

"A casa é sua, tome já seu leito...

o que estavas aí fora procurar,

mundo a vagar perdido, putrefeito?"

-Então sabes quem sou pra assim falar,

o que conheces mais a meu respeito?

" Nada além do que se pode esperar,

sei dos vermes, da morte e seu efeito"

-Vermes, que vermes, do que está falando?

Sinto-me vivo como nunca estive...

olhe para mim, cá estou andando.

" Mas em nada isso é prova que se vive,

defuntos perambulam, inclusive,

vivos, sem perceber mortos estando."

-Engana-se coveiro, com certeza,

não estou morto, sinto ter pulsante

nesse meu peito a humana natureza,

nas veias sangue o fluxo constante.

"Que fazes então nesta redondeza,

em minha porta vem pra tão distante,

teu peito que não bate de rijeza,

o sangue de correr coagulante"?

-Vim visitar um ente meu querido,

ele se encontra neste cemitério.

"Vejo que estavas mesmo, tu, perdido...

voltaste apenas ao leito funéreo,

onde antes foste em túmulo metido,

por mim mesmo no meu ministério".

-Ministério? Assim chamas teu ofício

macabro de enterrar sonhos e vida?

"Enterro apenas carne apodrecida,

sonhos a vida enterra desde o início."

"Só faço a condução ao precipício,

a morte posta, ponho na medida

de sete palmos de terra vertida,

o corpo dentro em féretro propício"

-Não tens coração, posso perceber,

trata como qualquer coisa a pessoa.

"Toda gente que dentro aqui povoa

conformada é, mas vivo queres ser,

o seu proceder por demais destoa,

ages errado, és péssimo em morrer."

-E por que me deixaste então sair,

se tu dizes que aqui tenho morada,

não devias, portanto, me impedir,

ou a porta manter sempre fechada?

“Meu mister não consiste em coibir

saída, muito menos a entrada,

o meu tempo dedico a prosseguir

ocupado, resguardo-lhes a estada”

“Cavo covas, ajeito sepultura,

não me tomes por uma sentinela”.

-Mas não estás na porta, por ventura?

“Guio vivos a partir dessa cancela,

com mortos coabito e não censuro,

nem contesto as ações da clientela”.

"Façamos o seguinte como trato,

tu sais nas incursões que tanto gosta

explora o mundo, vaga no abstrato,

procura noite a dentro por resposta,

mas quero do tratado anonimato,

não andes a assuntar minha proposta,

antes que nasça a luz do dia no ato,

a sepultura tenha recomposta...

na contagem do número de covas,

uma a mais porei à noite na soma,

não alocarei a sua pra novas.

Entre e saia até que o mundo o convença

que esse estado não trata-se dum coma,

nem a morte à viagens é propensa"

-Ora, perdeste a vossa humanidade,

desprovido da mínima empatia,

já não sabe o valor duma amizade.

“Amigos nunca fomos nem seria

sensato para minha sanidade

compartilhar dos mortos fantasia,

embaraçar a minha soledade

com arroubos de sonho e agonia"

-Como podes falar dessa maneira,

não seria melhor dá-me um auxílio,

se essa é final estrada que, ora trilho.

“A muito passou a hora derradeira,

logo não passarás de uma caveira,

estalante esqueleto maltrapilho”

Renan Ivanildo
Enviado por Renan Ivanildo em 22/09/2017
Reeditado em 15/04/2019
Código do texto: T6122065
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.