SONHOS VAGABUNDOS & MAIS

SONHOS VAGABUNDOS & MAIS

NOVAS SÉRIES DE WILLIAM lAGOS

SONHOS VAGABUNDOS I – 11 FEV 2017

O AMOR EXPANDE A VIDA, ASSIM AFIRMAM,

E SEM AMOR, TUDO EM POEIRA SE REDUZ,

MAS ESSAS CINZAS, QUE RECOBREM LUZ,

SÓ MAIOR TRANQUILIDADE REAFIRMAM.

É MELANCÓLICO, TALVEZ, O QUE NOS FIRMAM,

MAS O COÁGULO QUE REVESTE A CRUZ

E A DOR QUE SE REVELA EM VERDE PUS

SOMENTE ALÍVIO AO CORAÇÃO CONFIRMAM,

PORQUE ESSA CALMA FOSCA, ESSA AGONIA,

SÃO AUSÊNCIAS DE ESPANTO, TÃO SOMENTE,

ANESTESIA, NÃO MAIS QUE DECORRENTE

DESSA AUSÊNCIA, CAPTORA DE ENERGIA,

UM CORAÇÃO, VAZIO DE IMPOTENTE,

QUE AINDA PROSSEGUE, ISENTO DE ALEGRIA.

SONHOS VAGABUNDOS II

A VIDA NOS ATACA, AOS NACOS E À MORDIDA;

DURANTE A MOCIDADE, MAL SE SENTE,

MAS À MEDIDA EM QUE O TEMPO SE PRESSENTE,

VEEM-SE AS CILADAS QUE NOS LEVAM DE VENCIDA.

A GENTE AS SENTE, NO LIMIAR DA VIDA,

MAS RECUPERA-SE FÁCIL NO PRESENTE,

ATÉ A ACOSTUMAR-SE, DIARIAMENTE,

COM MAIS TOCAIAS, EM SUA FRAGOSA LIDA.

PORÉM NOS LEVAM A CANSAR, DEVAGARINHO:

FORAM NACOS DEMAIS QUE JÁ ARRANCARAM

E AS MORDIDAS AGORA SE INFECCIONAM,

SÃO BACTÉRIAS ESSAS FALTAS DE CARINHO,

QUE TANTO AMOR NA VIDA NOS NEGARAM,

MAIS A SAUDADE DOS PEDAÇOS QUE NOS TOMAM!

SONHOS VAGABUNDOS III

NA VERDADE, NÃO ME IMPORTO, REALMENTE:

FAÇO O QUE FAÇO POR IMPULSO INSANO

E SEI DEMAIS ACERCA DO QUE É HUMANO,

ENCAIXO APENAS EM TAL PADRÃO FREQUENTE.

JÁ TRANSCORREU O TEMPO SURPREENDENTE

EM QUE EU MESMO ADMIRAVA ESTE PROFANO

FLUXO MÚLTIPLO DE ESPLENDOR ARCANO

A QUE HOJE AINDA REAJO, INDIFERENTE.

O MÉRITO QUE HÁ EM MIM, UNICAMENTE,

É O DE PERMITIR PLENA VAZÃO

À MULTIDÃO DOS SONHOS ESQUECIDOS,

POIS PERMANEÇO ESCRIBA, CLARAMENTE,

SEM TER QUALQUER CONTROLE DA PAIXÃO

QUE ME COUBE DE DIAMANTES REPARTIDOS.

SONHOS VAGABUNDOS Iv

POIS TE DAREI TAIS DIAMANTES REPARTIDOS

EM FONTE ESCASSA E CINTILANTE DE ILUSÕES;

BEM NO FUNDO, SABERÁS QUE SÃO CANÇÕES

ESSES BRILHANTES SONHOS REPRIMIDOS.

CARBONO APENAS OS DIAMANTES TÃO QUERIDOS,

NÃO MENOS QUE O CARVÃO CHAMA E PAIXÕES

QUE NOS AQUECEM FUNDO OS CORAÇÕES,

MAS LOGO SE CONSOMEM, RESSEQUIDOS.

MAS IGUALMENTE O GRAFITE É TAL CARBONO,

SÃO OS DIAMANTES NEGROS DO ABANDONO

QUE TE DERRAMO EM VERSOS, DIARIAMENTE.

CARVÃO, DIAMANTES, LÁPIS, LONGO SONO,

TEU CORPO REDE TÃO SÓ DE HIDROCARBONO

QUE MESMO ASSIM HEI DE AMAR INTEGRALMENTE.

CRER PARA AMAR I – 12 FEV 2017

Meu coração ainda se aperta, se te vejo

num encontro casual, manso, aleatório;

mais surpresa talvez, nesse envoltório

de sonho e de quimera em tal ensejo.

Eu te espantei, quem sabe, em meu almejo,

nunca te disse quão dourado esse cibório (*)

que meu olhar espelhou, sem peditório,

amor silente, amor de velho andejo...

(*) Cálice da Comunhão.

Contudo, cheio está meu coração,

vazio de ti, mas de memória e esquecimento,

que se tivesse o teu beijo, enfartaria...

Prefiro assim, só ter tua sombra pelo chão,

que enrolo e guardo no meu pensamento,

que um transitório amor que passaria...

CRER PARA AMAR II

O amor é a lei da vida; e toda lei

provoca a reação do proibido;

e por isso confundimos o perdido

amor com simples sexo. Eu andei

por caminhos poeirentos e hoje sei

que tenho aquilo por que tenho vivido,

quer seja vero amor, quer tenha sido

não mais que a ilusão com que sonhei.

Posso afirmar que nunca recusei

as opções de amor oferecido,

por mais que se antolhassem passageiras;

fui na choupana e na casa fui do rei

e cada face que pensei ter esquecido

permanece em meus meandros seresteiros.

CRER PARA AMAR III

Já te falei de amor vezes demais,

sem que bem percebesses que o dizia,

que entrevista fosse apenas fantasia

e que esse amor inútil fosse, quais

esses barcos sem adriças nem estais, (*)

desarvorados no porto e sem valia,

âncoras mortas sob cascos em agonia,

apodrecendo sem se afastar do cais.

(*) Cordas e suportes para as velas.

Mas ao falar de amor, calafetava

todas as fendas do casco e aprestava

para longa viagem meu convés;

velas erguidas, já comprada nova lona,

substituídas a mezena e a bujarrona,

sem desencanto por perdidas fés.

CRER PARA AMAR IV

Nada mais haverá que amor se chame,

que amor foi só palavra que inventaram

certas mulheres; e assim escravizaram

seus homens, pela força do reclame.

Marionetes que somos, nosso arame

manipulado por aquelas que o puxaram,

pelas mil artimanhas que criaram,

guerra de flores em pistilo e estame.

Mas essas tolas ainda pedem igualdade,

depois de tal domínio e privilégios

(com menos cinco anos se aposentam!)

e dessa forma, após perder fertilidade,

sexuais amores tornam em sacrilégios,

perdido o zelo com que aos homens alimentam.

CASAS DE TORRÃO I – 13 FEV 2017

Antigamente, conheci negras casinhas,

que vez ou outra, no verão caiavam;

tantas havia em um local vizinhas

que Vila do Torrão mesmo o chamavam.

Os ricos contemplavam as mesquinhas

moradias em que os pobres habitavam

e pensavam nessas gentes pobrezinhas

com certo alívio (porém nunca as ajudavam).

Já os “remediados”, como antes se dizia,

a classe média, com menor padecimento,

religião e donativos lhes trazia;

da estrada nua traziam pó de sofrimento,

mas apreciavam, após a ventania,

aquela pesca milagrosa do momento!

CASAS DE TORRÃO II

Algumas vezes, admiravam o frescor,

quando pisavam dentro das casinhas,

nos turbulentos dias de calor:

poucos móveis nas peças pequeninhas,

mas que enfrentavam, com certo destemor,

os dias de inverno, gelo a pender das linhas

desses arames estendidos sem amor,

sempre assobiando do vento as ladainhas.

Grande surpresa que nas casas de torrão,

nas quais se via, mal e mal, um fogareiro,

o frio do campo não pudesse penetrar;

e ao repassar os cobertores que lhes dão,

um certo espanto as perpassasse, derradeiro:

desnecessário era o que vinham presentear?

CASAS DE TORRÃO III

E ao retornarem às suas casas de cidade,

em que (razão que nunca se entendia),

nem ao menos lareira se acendia,

calefação não mais que raridade,

muito embora no Uruguay, na realidade,

calefação em toda parte se possuía

e nas lareiras fogo sempre se “prendia”,

até nos barrios mais pobres, na verdade.

Calor provinha tão somente dos fogões,

das roupas grossas e da sopa quente;

e quando os velhos e as crianças tiritavam,

surgia a inveja das casinhas de torrões,

sem confessarem uns aos outros, realmente,

como suas casas de tijolos lastimavam!

CASAS DE TORRÃO IV

Quando tais casas pretendiam construir,

todo o barro retiravam, junto ao chão,

cada tijolo improvisado a pôr, então,

sob o sol de verão, para frigir!...

Seu cozimento não era de iludir,

quando movidos com uma certa precaução;

mas um buraco quadrado de feição

era deixado, mais de metro a introduzir

dentro do solo que cedera o material;

sem alicerces, erguiam-se as paredes,

contra as beiradas, em apoio natural;

e sobre a terra, erguia-se, afinal,

parede baixa e grossa, da qual vedes

só meia altura a ressaltar do capinzal...

CASAS DE TORRÃO V

O artifício era esse, justamente,

que atacava o calor e todo o frio,

santa-fé a se cortar perto do rio,

a quincha atada sobre a casa, firmemente;

e sendo rasa sobre o solo, facilmente

ao vendo resistia em simples brio,

tourinhos negros de bramir bravio,

que nem a chuva perfurava, realmente...

Nas atuais casas populares, gente ativa

consegue aos poucos melhorar o ambiente,

mas nem em todos há tal iniciativa,

a maioria a queixar-se, simplesmente,

desses casebres de alvenaria esquiva

que um governo paternal lhes apresente.

CASAS DE TORRÃO VI

Hoje, sem dúvida, há veraz transformação,

muitas casas da cidade têm lareiras,

umas que outras calefações maneiras,

ventiladores a ligar-se em ocasião,

outras com ar condicionado no verão,

mornas as casas nas noites das frieiras,

as classes médias com splits altaneiras,

só não existem mais casinhas de torrão!

Mas apesar de iniciativas solidárias,

a gente pobre ainda sua no calor,

devido ao preço da eletricidade,

sendo furados os tijolos dessas várias

“Minha Casa, Minha Vida”, com valor

menor que o barro das casinhas, na verdade!

EXÍLIO I – 14 FEV 17

O sono é coisa por demais valorizada;

O importante, realmente, é se sonhar,

Sem oito horas por dia se gastar.

“Terça Metade” assim desperdiçada

De nossa vida, essa andorinha alada,

Que as penas perde de tanto revoar,

Por entre as penas por que deve passar,

Até se achar totalmente desnudada.

Então recebe certas penas de madeira,

Ao invés de crista, uma tampa envernizada,

Sem que hoje em dia lhe deem sequer mortalha

Para esse sono de coma derradeira,

Com suas penas de festa conservada,

Dependuradas em cabide que espantalha!

EXÍLIO II

E dentro desse invólucro vazio

Que um dia soube albergar o pensamento,

Será que existe, por um só momento.

Algum sonho, fugaz mesmo ou arredio?

Sem as redes neurais a lhe dar fio,

Sofrendo o encéfalo inicial desmanchamento,

Como de um sonho gozar qualquer portento,

Como da vida recordar seu brio?

E quantos há que falam em sono eterno,

Como se os ossos de fato descansassem,

Para depois espreguiçar-se num bocejo!

Tal qual se fosse ainda possível sonho terno

A experimentar-se, enquanto esfarelassem

Mesmo esses ossos, na poeira de um adejo!...

EXÍLIO III

Por isso eu digo: para que dormir

De nossa vida um terço, diariamente?

Rezar um Terço seria, claramente,

Mais proveitoso para a alma se nutrir!

Nos monastérios, não há como iludir:

Cada três horas há uma prece diferente;

Só duas horas no intervalo, realmente,

Pesado sono sem jamais lhes permitir!...

Porém os frades têm, nesse alternar,

Sonhos variados com sonhos de rezar:

Sempre há descanso no entoar da litania!

Sem oito horas jamais se completar,

Sonhos de arcanjos trombetas a assoprar,

Sonhos de freiras em casta salmodia...

EXÍLIO IV

Destarte evito o exílio desse sono;

Apenas durmo até o final de um sonho,

Que esses da noite, mesmo o mais tristonho,

Completo sempre e desse ideal sou dono;

Enquanto os sonhos do dia, em abandono

Sou forçado a perceber ideal bisonho;

Um desaponto em seu lugar reponho,

Enquanto versos perdidos ainda entono...

Se mais dormisse, não sonharia mais,

Nem em minha vida real, nem em devaneio,

Busco esse terço da vida assim poupar,

Somente um quarto para sonhos eventuais,

Pois quando eu for ao astral, ali receio

Nova vida receber, sem mais sonhar!...

ESPECLORAMA I – 27 DEZ 2007

[Luneta de Espelhos]

Eu te contemplo, mulher caleidoscópica,

em mil rosáceas reveladas pela luz...

Quando sacodes, mudas... Hipnótica

de cores abstratas... Que seduz

ainda mais na doçura irrefletida,

como modelo de mil fotografias

que não são tuas; ou na fala repetida

a voz que escorre ao ritmo dos dias...

Cometa e estrela, pura de inconstante,

só permanente na fixidez escusa

com que alteras os reflexos de enlaces.

Nesse cambiar de panóplia delirante,

foste vampiro e anjo, lâmia e musa

no projetar perpétuo de mil faces...

ESPECLORAMA II – 15 FEV 2017

Quando criança, chamavam de “Teteia”

caleidoscópios comprados no Uruguay;

não sei por que motivo não se vai

encontrar no Brasil tal assembleia

de três espelhos, duplicando como teia

essas pedrinhas coloridas. A luz recai

pelo vidro do cilindro e então sai,

mediante o mínimo movimento que se ateia

uma simétrica e brilhante imagem,

na transparência de sutis mandalas,

horas a fio os meus olhos de criança

a encantar, na infinitez de tal paisagem,

os traços mágicos e trípticos de salas,

quais fogos-fátuos que jamais se alcança.

ESPECLORAMA III

Assim gerava as figuras pelos dedos,

sem que jamais construísse duas iguais,

mil esplendores quânticos virtuais,

a despertar-me a noção de sonhos ledos,

nessa feérica negação dos medos,

bijuterias incrustadas nas neurais

redes, visões formando conceituais,

de jóias verdadeiras mil segredos...

De Iracy Garrastazu eram presentes,

a quem tratava de “Vovó Cici”;

em longos dias tais desenhos me encantavam,

das magias televisivas precedentes,

que hoje as crianças dominam por aqui...

Até que, um dia, as lunetas se estragavam...

ESPECLORAMA IV

O especlorama vem do século dezenove,

como acessório aos telescópios de então;

de William Herschel seria a criação, (*)

que por Urano descobrir ainda se louve.

(*) Astrônomo Inglês, 1738-1822.

Na medida em que tal cilindro move,

vai refletindo das estrelas multidão,

muito mais nítidas que na contemplação

do olhar apenas, que muita luz estorve.

E acoplada ao telescópio, tal luneta

facilitou-lhe muitas descobertas,

por seu reflexo mais claro e concentrado,

sua luz espectral bem mais concreta,

que as transmitidas por lentes só abertas,

fotografando após ter tudo triplicado.

ESPECLORAMA V

Caleidoscópico igualmente é meu olhar,

na captura de mil imagens por minuto

e tendo o dom ainda mais arguto

de visão estereoscópica me brindar;

e assim amplio, qual visão sem par,

pelas pupilas, em seu duplo conduto;

mas tais imagens no mental reduto

são verdadeiras ou só do imaginar...?

Talvez tivera tão somente a completar

mil fragmentos de partido espelho,

na formação de meiga musa singular,

frankensteiniano esse meu comportar,

vivas e mortas abrangidas no conselho

de quem só deusa perfeita quis amar.

ESPECLORAMA VI

Não obstante, quando tudo considero,

no percutir das mil imagens numa só,

cacos de espelho triturados sob mó,

que rejuntar nesse entretanto espero.

Do justapor de mil cacos eu me abeiro,

desenfreado imaginar de causar dó;

não são mulheres enleadas em cipó,

mas uma apenas que contemplo bem sincero.

Por mais buscasse apresentar outra feitura

são só dela essas mil faces, realmente,

talvez em torno a colher outros reflexos;

mas essa mescla de sua alma ela conjura,

em cem lamentos e alegrias permanente,

seu corpo apenas no ansiar de meus amplexos.

McNADA I – 27 DEZ 07

Procurei ver o Cometa McNaught, (*)

sem nada conseguir. Mas não afirmo

ter ido em busca dele, em convescote, (+)

lá no alto de um morro. Nem confirmo

(*) Robert H. McNaught, astrônomo escocês, nascido em 1956.

(+) Piquenique.

.

ter viajado a qualquer ponto distante

das luzes da cidade, de onde o visse,

quando sua longa cauda de brilhante,

destruindo a si própria, refulgisse...

Fiz diferente. Só olhei de minha janela:

busquei felicidade em meu jardim,

como o Pássaro Azul de Maeterlinck.(*)

(*) Maurice Maeterlinck, 1862-1949, escritor belga.

Mas com busca de cometas não se brinque:

crepuscular sorriu-me a lua bela,

depois que a luz do sol fugiu de mim...

McNADA II – 16 FEV 17

Quantos afirmam terem procurado,

ao longo de suas vidas, um cometa,

sem confessar a indolência mais secreta,

só das janelas tendo o cosmos perlustrado!

Tantos afirmam perseguir sonho dourado,

sem ter jamais alcançado a doce meta,

talvez mesmo a despedir rápida seta,

mas sem ao alvo certo ter mirado!...

E quantos buscam essa estrela que Gepetto

convocou para dar vida a seu boneco,

Carlo Collodi a descrever esse fantoche, (*)

(*) Carlo Lorenzini Collodi, 1826-1890, escritor italiano, autor de Pinocchio.

mas sem ter ido mesmo atrás desse objeto,

sua Fada Azul não mais que um galho seco,

condão de estrela diluído em tal deboche!

McNADA III

A maioria, realmente, só deseja

ter essa estrela ardente no seu colo,

sem meteoro ir buscar em qualquer solo,

reza vazia de quem só o rosário beija,

sem nem pensar, caso o desejo seja

atendido pela fada, sem ter dolo,

que quente pedra provocasse, em golo,

vasta cratera, que em seu corpo enseja!

Pois se no solo tombar meteorito,

será detido por terra ou rocha dura,

em fragmentos a veloz se espatifar,

porém seu colo será por ele aflito,

sua carne assada em fenda de loucura,

tão lastimada que nem possa se curar!

McNADA IV

Eis é o perigo dos desejos atendidos:

quem sabe um santo te escute nessa hora,

ou qualquer lágrima derrame a boa Senhora,

que assim se apiada dos rogos mais sofridos,

e se disponha a atender os tais pedidos,

igual que o faz, nos dizem, desde o outrora,

ao suplicante sem correr jamais embora,

por sua alma e coração compadecidos...

Desde os Romanos são avisos proferidos:

“Tem cuidado com o que pedes! Pode haver

qualquer deus na vizinhança a espairecer

e a teus rogos então abrir ouvidos,

para o que pedes, exatamente, conceder.”

Leve malícia nesses sonhos deferidos...

McNADA V

Mas se preferes pouco ou nada suplicar

perante as velas coruscantes do cometa,

sem que qualquer imanência se intrometa

em teu destino – e prefiras te esforçar,

sem com propina qualquer santo perturbar,

ou fogo-fátuo que num pântano projeta

ou nesse arco-íris que inundação completa,

para o tal pote de ouro então caçar,

é mais provável que consigas obter

aquilo que buscavas, cedo ou tarde,

ou semelhante ao que querias ter;

e se teu máximo de esforço der em nada,

será Teu Nada, que tal esforço carde,

não a fumaça do sorriso de uma fada!

McNADA VI

Ou se acreditas no acaso ou pura sorte,

sempre há moeda no meio do caminho

(ou ao contrário, na mão crava-se espinho),

ao te abaixares por fulgor de estranho porte.

São tuas escolhas as mães de todo aporte:

se remexeres sem cuidado em escaninho,

sempre te pode picar algum bichinho

ou de uma farpa de madeira sofrer corte...

Mas acredito ainda forjar o meu destino

e se forem minhas escolhas imperfeitas,

nunca em estrelas confiei quaisquer instantes,

pois todas elas falecem em desatino,

abandonando imensidões mais rarefeitas,

num suicídio de brilhos fulgurantes!

VIGIA I -- 27 dez 07

Esquadrinhei os céus, não vi cometa,

embora outros me dissessem tê-lo visto;

e, em várias noites, ao firmamento insisto,

sem nada ver, senão essa completa

teia de estrelas, que abriga meu destino...

Esquadrinhei a vida por carinho

e nada vi; e embora esse vizinho

povo ao redor, mostrasse o cristalino,

assanhado borbulhar, felicidade

quase fácil de achar, mesmo transiente,

o bimbalhar alegre desse sino

que apenas escutei bem raramente,

vendo o carinho, somente peregrino,

passar por mim depressa e sem saudade.

VIGIA II – 17 FEV 17

Os céus esquadrinhei nessa ilusão

de que talvez dito cometa me abençoasse

ou, pelo menos, seu fulgor mostrasse,

qual certo dia, em milênios que lá vão,

entre pastores causou agitação

e cada mago fez que terras abalasse,

que a maravilha nas faces estampasse,

ante o portento da antiga tradição,

ainda que, na capital, Jerusalém,

ninguém pareça, de fato, tê-lo visto:

sobre tal coisa os Evangelhos silenciam

e nem tão longe localizava-se Belém,

em que nascera o aguardado Cristo

e ao Rei Herodes, facilmente, ludibriaram...

VIGIA III

Na realidade, nos fala a narrativa

de um estrela, nunca de um cometa;

foi só Giotto que a impressão completa, (*)

dando a essa estrela certa cauda viva.

(*) Giotto di Bondoni, 1266-1337, pintor italiano.

Segundo dizem, é o de Halley que se ativa, (*)

segundo cálculo fornecido ao exegeta;

destarte a estrela ele deixa mais dileta

com essa coma aérea mais esquiva.

(*) Edmond Halley, 1656-1742, astrônomo inglês.

A supernova já se localizou,

hoje não mais do que uma estrela anã,

que há dois mil anos teria sido refulgente;

mas por que sobre o presépio ela pousou,

já perguntei em meu passado, com afã,

após velar seu brilho inteiramente?

VIGIA IV

Essa questão, de fato, é irrelevante.

de McNaught o cometa é bem real,

diagnosticar não veio outro Natal,

tampouco a Terra incinerou-se nesse instante.

Nem sequer Halley se mostrou brilhante

em Oitenta e Seis – não foi nada triunfal;

em Mil Novecentos e Dez além do natural,

o Apocalipse anunciando expectante.

Só irá voltar em Dois Mil Sessenta e Dois,

embora afirmem que periodicamente

nos traga chuvas de pequenos meteoros.

Trinta anos esperei... para depois

só com desdém mostrar-se, realmente,

sem quaisquer anjos exultando em coros.

VIGIA V

São mensageiros só de gelo e gás,

sem nos mostrarem qualquer profecia,

indiferente esta chama que se via,

quando, em parte, na atmosfera se desfaz.

É tão somente o orgulho humano que perfaz

essa quimera de fervente romaria;

não vem por nós tal estrela de magia,

sem trazer mal ou bem, tampouco a paz.

Embora corra por aí certa teoria

que por sua cauda atravessou a Terra,

gentes tomando de histeria coletiva,

que a Primeira Guerra Mundial provocaria,

século inteiro em sua maldade encerra

e Armageddon, contudo, em nada ativa...

VIGIA VI

Também a Terra, um dia, esquadrinhei,

convites a buscar em mil olhares,

que imaginei como sedosos pares;

com algumas delas, é fato, me encontrei.

Cadentes beijos no antanho então gozei,

mesmo podendo causar-me ressabiares,

cálidos foram em seus instantes singulares

e nada importa se hoje deles me apartei.

Mas quantos foram meus, eu requestei:

nenhuns amores lançaram-se em meu colo,

cada um deles no seu tempo pequenino;

frágeis cometas de sonhos que aceitei,

por breves tempos a me dar consolo,

sem se incrustarem totalmente em meu destino.

MUTAÇÃO I – 27 dez 2007

Portanto, vou esperar que me retorne

esse risco trepidante pelos céus;

em cem mil anos, erguerei os véus,

até que a luz, enfim, meu rosto adorne.

Por agora, seja a tela que me informe

do espectro de luz que nunca vi,

ou, quem sabe, há cem mil anos conheci

e a memória do passado me transtorne.

Terei sido pouco mais que um troglodita,

catador de raízes ou de frutas,

que ergueu os olhos, de assombro marejados.

Ou talvez, um morador de palafita,

junto a meu clã, de cócoras e às escutas

da voz dos deuses, em coros extasiados...

MUTAÇÃO II – 18 FEV 2017

Ainda hoje, cometas nos encantam,

embora, no geral, sejam distantes,

a inspirar profetas e hierofantes

e os povos primitivos ainda assombram.

Mesmo cristãos e muçulmanos louvam

essas riscas de giz nos céus vibrantes;

para estudiosos, também são interessantes,

nos contidos entusiasmos que a alguns movam,

suas estatísticas sempre atualizando

ou seu nome anexando a descobertas,

depois que outros as vejam, confirmando,

na antiga ânsia por sua afirmação,

as suas vistas mantendo sempre alertas,

mesmo sem verem nos cometas religião.

MUTAÇÃO III

Desde o tempo dos mais antigos calendários,

inexplicáveis em seus doze meses,

astrólogos assentavam-se em arneses,

os céus mirando por motivos bem contrários;

certamente garantiam seus salários,

com profecias para seus fregueses,

os eclipses acertando muitas vezes,

as estrelas perseguindo nos seus páreos.

Assim criaram certas constelações,

oito mil anos atrás mais claras,

doze animais afirmando lá formados,

que o Sol cruzava em peregrinações,

sem sofrer ferimentos nem escaras

ao deparar-se com tais feras aladas!...

MUTAÇÃO IV

Esses sumérios a inventar duodecimal

sistema em peculiar aritmética,

cada um deles em abordagem menos cética

que a dos astrônomos neste mundo atual.

Mas por que doze? É pouco natural,

ao contarmos nossos dedos... Mais estética

e melhor coadunado à dialética

o nosso simples sistema decimal.

Aos doze deuses visitantes atribuíam

esse sistema assim caleidoscópico,

o seu olhar de então mais telescópico

que os descendentes de hoje recebiam

ou talvez mais favorecesse o nervo ótico

um céu mais límpido que os antigos olhos viam.

MUTAÇÃO V

Embora hoje se persigam os cometas

mais através de programas digitais,

catalogados sendo muitos mais

que os mostrados em revistas, neoprofetas,

em seus sistemas bombásticos de metas,

para atrair, com manchetes triunfais,

os seus leitores, ganhando mais Reais

em sua influência sobre tais almas inquietas,

seus objetivos sofreram mutações.

Há uma nova religião proposta:

vida no cosmos a buscar algures,

muitos planetas demarcando em vastidões,

até alguns em que colônia seja posta,

caso essa vida acharem em nenhures...

MUTAÇÃO VI

Como em toda religião, o orgulho humano,

talvez por ambição da hierarquia,

ânsia de lucro, quiçá, da oligarquia,

assim desventram o espaço soberano.

Na Idade Média, era tido por profano

disputar quanto Tomás de Aquino nos dizia, (*)

que um falso interpretar então possuía

das Escrituras, com seu poder arcano,

(*) Frei Tommaso d’Aquino, 1225-1274.

tal qual se Deus apenas nos criasse

à sua imagem e perfeita semelhança,

mas nos quisesses negar conhecimento

e assim do Paraíso o expulsasse,

por ter confiado na Serpente, em comilança,

para depois ir caçar Deus no firmamento!

DECLARAÇÃO I – 28 dez 07

Se alguém me tem amor, terá de me buscar:

terá de vir a mim, porque não a buscarei;

minhas regras são bem claras: não mais procurarei,

quem antes procurei, sem conseguir achar.

Se alguém me tem amor, terá de vir a mim:

demonstrar seu desejo, até mesmo insistir;

a vida ressabiou-me: não quero mais sentir

o que antes sentia. Não buscarei, assim,

por mais que ainda anseie, por mais que o coração

se expanda e se contraia, na comum humilhação

de alguém depender que de mim não dependa;

de atender alguém que a mim já não atenda;

de esperar por alguém que por mim não espera:

assim considerando quem mal me considera.

DECLARAÇÃO II – 19 FEV 17

O fato surpreendente é que houve quem buscasse,

nenhum orgulho há aqui, somente espanto:

de quem se arrependeu soube lamber o pranto

e retribuí o apego de quem quer me abraçasse,

sem embargo entender que então se abalançasse

a vir buscar em mim um simultâneo canto,

calor a compartir em aconchegado manto,

que amor ou gentileza no rosto me mostrasse.

E deste modo, então, com a mesma gentileza,

tomei nos braços àquelas que me tomem,

nesse orvalho sutil de gotas de incerteza,

pois quem sou eu, enfim, que alguém procure,

de fato, muita vez, a dizer não ser o homem,

mas só o poeta que outra alma assim segure.

DECLARAÇÃO III

Pois tanta vez amor é apenas letra morta,

na busca de carinho, no anseio por apego,

satisfação, assim, de algum desassossego,

que lá no fundo dalma é a solidão que importa

e se a perversidade do peito então a entorta

e faz pingar desdém em trescalante rego,

ao ver de outro amor o alvo do deus cego

que pelas nuvens róseas, brejeiro, ali cavorta,

não há razão, portanto, no pensar em amor eterno,

tampouco em zelo tolo ou ódio perdulário,

que o coração sem dono só busca um peito terno

em que consiga, breve que isto seja, repousar,

talvez a se iludir possuir um dom superno

que sempre há de acabar no mais leve calvário.

DECLARAÇÃO IV

Que seja amor, então, de curta duração,

muito mais longo sendo tão só gentil carinho,

que aceita o dia a dia de cunho comezinho...

Somente ao desencanto dando plena aceitação!

Assim receberei, sem qualquer trepidação,

a qualquer que me procure quando estiver sozinho;

dar-lhe-ei pão e sal, servindo o branco vinho

pelo ventre derramado, mas que vem do coração!

Por que pensar eterno seja o aroma desse adejo,

se cada flor brilhante projeta-se no solo,

no suicídio final do amargurado pejo?

Porém não buscarei o aroma do desejo:

que a musa se desnude e assente no meu colo,

invisível que seja e mesmo frio seu beijo!

AMOR DE CÂMARA XXIX-A (10 JAN 2008)

Quando a tomo em meus braços, cada dia

e sinto o seu perfume e o som da pele

e a luz do coração quanto me apele,

sou envolvido na cor dessa elegia...

Quando a mim nos braços toma, nessa fria

cordialidade dos tempos de calor,

a tal ponto me refresca, em seu amor,

que a pele acalma e a mente me esvazia.

A cada vez, me sinto mais surpreso,

que retome o anseio de seu beijo,

em tal orgasmo, refletido em intermezzo.

Que assim retome a força do desejo,

cálido e leve, sol em seus afélios,

amor fazendo aos acordes de Sibelius.

IMAGEM AOS BORRIFOS I – 10 JAN 2008

Bem a conheço, tantas vezes que a vi nua,

não há segredos que seu corpo esconda,

por mais que o amor carnal que assim me ronda,

mais vezes tenha visto que a própria luz da lua...

E quando ela se banha, um gentil aroma estua,

em gotas peroladas, trescala em pura onda,

que escorre, que respinga e fundamente sonda

o coração e a alma a perfurar-me em pua...

Mas então corre a cortina, em capricho de pudor

deixado fora e só, por ódio ou por amor,

da íntima umidade que não posso partilhar...

E sua nudez evoco qual jamais a tendo visto:

para as gotas de tal sombra ainda olhar insisto,

mistério inconsequente da cortina a farfalhar...

IMAGEM AOS BORRIFOS II – 20 FEV 17

Então apago a luz da peça ao lado,

para melhor contemplar a sua silhueta,

que a luz do box, em traição secreta,

facilmente me dedura em seu pecado.

Talvez ela nem sequer tenha notado

cada borrifo de mornura que a completa

ou pretender que não nota assim afeta,

falso pudor com o qual faz-me encantado...

Deito de lado sobre a cama larga

e fico de tocaia nessa espia

(nunca a escuto cantar quando se banha),

mas de tal sexualidade sinto a carga

que do outro lado da cortina me avalia,

sabendo bem quanto a visão me assanha...

IMAGEM AOS BORRIFOS III

Embora tantas vezes fosse minha

e mesmo tendo já gerado descendência,

ainda a desejo com igual luminescência

e apenas nela meu coração se aninha...

Apenas nela o cérebro se alinha

e sempre a quero, quiçá com mais potência.

Como saber se só me aceita com paciência

de cada vez que bem perto se avizinha?

Mas por maior que seja a aceitação,

não é visível na mulher transformação;

talvez mamilos tornados mais eretos,

mas muito menos que a máscula ereção;

rubor nas faces, o respirar trocando afetos,

em cada pulso o palpitar do coração.

IMAGEM AOS BORRIFOS IV

Mas pouco a pouco, cada borrifo escorre,

em seu lento serpentear de sedução,

cada gotícula a espelhar outra emoção,

enquanto o rito do adiamento corre

e os ladrilhos do chão penso que forre

com tantas células largadas sem paixão,

de sua epiderme a total renovação,

em vago rumo que o imaginar percorre.

E embora saiba que, em breve, sairá,

fresca do banho, surpresa a pretender

que ali a esperá-la me encontrasse,

essa parte de si se perderá,

que entre os dedos gostaria de reter

cada gotinha desse sonho que escapasse...

IMAGEM AOS BORRIFOS V

De certo modo, retenho e fotografo

contínuas vezes sua silhueta bela,

amortecido o mundo diante dela,

meus pulmões a aspirar cálido bafo;

quando da ducha percebo enfim abafo,

acendo a luz, fingindo nunca tê-la

apagado, para a sombra que encastela

melhor reter, meu olhar um batiscafo

que assim mergulha nesse mar leitoso

de silhuetas repetidas, uma a uma,

que já pertencem à minha visão de esposo;

corre a cortina... e o ambiente se perfuma,

na contundência de seu passo vagaroso,

qual um arco-íris reluzindo em cada espuma.

IMAGEM AOS BORRIFOS VI

Como seria, caso seu corpo se perdesse

nesses borrifos que escorrem pelo ralo

e nunca mais pudesse acompanhá-lo

nesses meandros de saponácea messe?

E se em cilindros de canos me esquecesse?

Se de algum modo pudesse ate alcançá-lo

na agitação imoderada desse embalo,

mas meu abraço jamais reconhecesse?

Assim quisera os mil borrifos recolher,

para com eles recompor-lhe toda a imagem

de uma forma perpétua e permanente,

sem que jamais fossem ao oceano pertencer

nesses recônditos fortuitos da paisagem,

mas tudo dela conservasse inteiramente!...

William Lagos

Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com

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