SONETOS AO MAR
Glosa ao soneto O MAR, de Zélio Benevides.
(publicado no livro – Sonetos de Amor e Passatempo)
MAR
Zélio Benevides
Ó velho mar que impressionas tanto,
- titã de mil pelejas nas procelas -
que, rebelado, vocifera e brada,
na voz dos formidandos vagalhões!
Mas, quando o sol redoira as tuas águas,
a refletir, sereno, o elísio azul,
e a praia beijas com ternura e amor,
meus olhos deslumbrados te contemplam.
Do teu sofrer comunga meu sofrer,
igual nas mágoas que conduzo na alma,
e que a ninguém, jamais... Jamais direi!
Ó mar misterioso e milenário,
no búzio eu ouço o teu rugir no eco,
e o teu pulsar, ó coração da terra!.
SONETOS AO MAR
“Ó velho mar que impressionas tanto”,
no teu rugir sem termo e exasperado!
As tuas águas devem ser o pranto
de um deus que a terra pôs acorrentado.
De barbas brancas nas espumas, quanto
tu tens de monge, manso, consolado,
nas calmarias, para nosso espanto,
baixinho orando e abençoando o fado...
Imortal como os deuses, mar eterno,
às vezes violento, às vezes terno
na violência e na paz és quase humano!
Pensas galgar os céus, subir à terra,
e sentindo a cadeia que te encerra,
brames e tremes num furor de insano...
II
“Titã de mil pelejas nas procelas”,
não te rebente a fúria, ó mar, agora,
que o pescador saindo barra em fora,
à brisa matinal estende as velas.
Vão as jangadas... Vão brancas e belas,
enquanto o pescador, cantando, implora
que sejas bom e amigo nesta hora,
não te rebele não... Não te rebelas!
Pois tens no pescador o teu cordeiro,
o amigo que conversa o dia inteiro,
dizendo a sua mágoa e ouvindo a tua...
E conversais os dois, e comungais,
longe a procela, longe os vendavais
- olhando e rindo a vós a branca lua...
III
“Que, rebelado, vocifera e brada”
o mar, quando se agita a tempestade,
ruge e sacode-o, louca, estremunhada,
a revolver-lhe a entranha sem piedade!
As ondas sobem, descem de arrancada.
Crescendo alto, o mar a tudo invade,
tudo destrui, que encontra na escalada,
a rebramir na voz da tempestade...
O vento cessa, o mar se acalma e volta
chorando arrependido e contrafeito
desse furor que a ventania solta...
Ó mar, não és culpado do malfeito
a que te arrasta em fúria e viravolta,
a ventania no seu bruto efeito.
IV
“Na voz dos formidandos vagalhões”
quando rebentas, mar, eu não te acuso.
Sinto que o vendaval muda-te o uso
de paz, em instrumento de paixões.
Nem mais é o teu furor, do que o abuso
dos ventos soltos, brutos furacões,
soma de ódio e horror, revoluções
eternas que te põem louco e confuso.
E tanto assim, que és bom, e mais se adentre,
o pescador encontra no teu ventre
o alimento que o Cristo multiplica.
Basta ver que te vem da entranha, o peixe
que o Cristo abençoou, a que me deixe
pensar que o vento a tua fúria explica.
V
“Mas, quando o sol redoira as tuas águas”,
e tu és sereno, manso, bonançoso,
aí revelas, mar, as tuas mágoas,
descantas como eu canto, marulhoso.
Es então, o poeta que não ouso
nunca igualar na melodia – as fráguas,
nunca imitar no canto mavioso,
na quente mansidão das tuas águas...
O sol reflete em teu espelho aberto,
inspirando poemas, que, decerto,
inscreves no infinito e eu não escrevo.
Ó mar poeta – o coração de Deus,
registram, inteirinho, os versos teus,
que a ler, só de joelhos eu me atrevo...
VI
“A refletir, sereno, o elísio azul”
do céu, ó mar, ficaste azul também.
A refletir-te na alma, ó mar do Sul,
o contraste e o marulho, eu fui além:
Colhi, no teu sonoro vai e vem,
o pranto que pranteia o céu azul
e a voz dolente que a Sereia tem,
dos mares do Brasil aos de Stambul.
E vim, de empréstimo, entoando o canto
que tu cantas ao céu azul distante
e te repete o céu num acalanto.
No fim, é ver que iguala-se ao teu pranto,
o que eu elevo ao céu a todo instante
e o céu repete para meu espanto...
VII
“E a praia beijas com ternura e amor”
pelos dias e noites, mar constante...
E quedas-te, suave e doce amante,
num gemido de gozo e de estertor...
Eu te imagino sensual, vibrante,
voluptuoso e quente em teu furor,
beijando a praia, amando-a com o ardor
de quem sacia a carne em raro instante...
Amas! Amas no sexo violento,
a subir e descer ao som do vento,
à música informal do amor em núpcias...
Tremido, sacudido, desregrado,
bruto no amor como o animal no prado,
revelas-te bramindo em mil volúpias!
VIII
“Meus olhos deslumbrados te contemplam”
toda a beleza azul, ó mar de outono,
quando lento soluças, no abandono
das ondas claras que na paz se exemplam.
Entendo-te a sonhar na paz do sono
com folguedos antigos de criança.
Meu pensamento, então, vive e descasa
na memória do sonho que eu entono.
Ao contemplar-te assim, sigo-te o exemplo
de íntima paz – e mais eu te contemplo,
mais me vejo criança noutras eras...
Mas, se ao longe te vejo, a alma sem dono,
fulgindo e refulgindo ao sol de outono,
tomo-te o exemplo das feições austeras...
IX
“Do teu sofrer, comunga o meu sofrer”,
mar que fundos soluços patenteias.
Num grande balde, vens, talvez, a ser
o pranto permanente das sereias.
Eterno prisioneiro nas cadeias
que te prendem no esforço de conter,
espumas a piedade nas areias
que embebes desse pranto, sem saber.
O pranto, de crescer, muda-se em mar,
que hoje, também se põe a soluçar
embebido na areia ou evaporado.
Eu sou o pranto milenar da terra
que me tranca e encadeia, que me encerra,
impedindo do vôo imaginado...
X
“Igual nas mágoas que conduzo na alma”,
igual ao mar em fúria ou calmaria,
eu sinto tédio às vezes, nostalgia,
rugir de fera que só Deus acalma...
Horas de rir e de chorar, horas de palma,
horas de opróbrio, horas de agonia,
de gritos d´alma. Horas de alegria,
horas de angústia que só Deus acalma.
Vento e céu, terra, ignotos mundos – Deus
feito em frações de nada, as mais diversas,
ruínas e monumentos, corifeus,
tudo geme e soluça, canta e ri,
tudo, imortal, me fala nas reversas
reviravoltas, mar, que eu vejo em ti...
XI
“E que a ninguém jamais, jamais direi”,
ó mar, sabes de certo, os meus tormentos
e as tuas mágoas, nossos maus momentos
de tédio e angústia... Não os revelarei!
Meu cérebro avoluma-se em violentos
turbilhões e requeima – isto eu direi -,
quando penso nos mundos que sonhei
e não alcanço... – Os céus, o firmamento -.
Tu sonhas, mar, a fuga e a liberdade,
o vôo aos céus. Idade sobre na idade,
brames por não os ter, desesperado...
A tua mente e a minha, nossos peitos,
sentem-se eternamente insatisfeitos
na busca, sem parar, do idealizado...
XII
“Ó mar misterioso e milenário”,
quanto segredo guardas em teu seio...
Das tuas águas, certamente veio
a evolução da vida, o ser primário...
A concha foi o lar, o relicário
de um ancestral molusco, que em volteio,
de milênio em milênio à terra veio
feito em homem, em fera, em dromedário...
Eu penso, eu sinto, eu vejo evoluído
este molusco em mim, no meu sentido,
na alma e na carne, na conformação...
E hora pressinto, ele volteia e entroncha,
para verter ao pó, ao mar, à concha,
principiando nova mutação.
XIII
“No búzio eu ouço o teu rugir no eco”,
mar de soberba, de real grandeza,
como em flauta soprado, em reco-reco,
para a enorme audição da natureza.
Como num sonho azul de aventureiro,
eu tenho o pensamento na riqueza
que escondem tuas águas – um viveiro
de alimento e mistério ainda em rudeza.
Enfrentando tormentas, remoinhos,
ardente sol, mormaço, calmaria,
gerações imagino em teus caminhos.
Lá vão seguindo, em rústica porfia,
como os antigos nos sertões maninhos,
em busca de metal e de energia...
XIV
“E o teu pulsar, ó coração da terra”,
ó milenário mar do antepassado,
eu ouço e entendo, eu sinto, hoje igualado
às pulsações que o peito me descerra...
A dor atormentada, a compaixão
que existe no teu ser é igual à minha.
Quando gemes e choras, se avizinha
do meu tormento a tua convulsão.
Ó se eu pudesse ser ressuscitado,
e em águas renascer, sem ter cuidado,
ao vento misturar-me, à maresia.
Os milênios sem rumo, lá um dia,
lançado sobre a bruta penedia,
voltar á espécie humana renovado...