A LIRA E A FLAUTA - XIV alexandrinos
A LIRA E A FLAUTA - XIV alexandrinos
I prólogo
Enquanto caminhava, a ideia me veio andando.
Era uma melodia ainda longe, vaga,
Ou alguma fantasia onde a verdade eu traga
Do mito que ninguém sabe exacto onde ou quando.
Ouço -- dentro de mim -- lira e flauta ressoando...
E vejo um deus dourado enquanto a lira afaga;
E um artista que beijando a flauta se embriaga.
Vejo, n’esse caminho, à medida que eu o ando.
Apolo e Mársias vêm... Disputam à minha frente!
Se imaginário o real, talvez consiga vê-lo,
E ainda ao imaginar, recriar poeticamente.
Pelos vãos da Memória, os recordo em duelo:
A lira e a flauta soam... Ocidente contra Oriente!
Por da música o ideal: Nada menos que o Belo.
* * *
II invocação às musaS
--"Saúdo-vos, oh musas! Pela vossa glória
Todo talento tenha, humildemente, herdade.
Invoco-vos ao canto e além da soledade,
Oh filhas imortais da grã Mneme, a Memória."
"Clio, em sabedoria, haja-me toda a História.
Polímnia, Eloquência à minha vã verdade.
Melpômena, à Tragédia, a dramaticidade.
Tália, pela Comédia a alegria ilusória."
"Urânia, iluminai onde a Astronomia.
Calíope, escrevei o Épico por meus hinos.
Terpsícore, inspirai o Lírico à poesia."
"Erato -- à lira ter os Amores divinos;
Euterpe -- à flauta ser a Música harmonia.
Vossa graça perpasse os meus alexandrinos! "
* * *
III origens da lira
Contam da História, Clio, à Hélade antiga lenda,
-- Que pela vossa graça evade ao esquecimento... --
De Hermes, o astuto deus, em seu só nascimento,
Pela invenção da lira, hoje admirada prenda.
Hermes mal nasce e já -- da furna à senda --
Acha uma tartaruga, indo dar corpo a invento:
Das tripas cordas faz para o novo instrumento,
E logo após as tange a que som se desprenda.
Voou com asas nos pés e fez de Apolo furtos:
Mais de cinquenta bois... Leva esse deus ladrão!
Até Febo o prender para voos mais curtos.
Soube Hermes, todavia, aclarar a questão:
Da lira tira os sons, que em sete notas surtos,
Para a glória de Apolo, eles soam desde então.
* * *
IV origens da flauta
Souberam-me, contudo, alta Clio, outro conto:
Quão irrefreável é, deverasmente, Amor!
Por -- do grande deus Pã! -- ousar-se vencedor,
Fê-lo inventor da flauta e a impôs ao contraponto.
Embora de Hermes filho, era Pã velho e tonto...
E se vê justo então de Siringe amador.
Declarando, porém, à bela ninfa amor,
Ela, por não o amar, nega-se já de pronto.
Siringe, a caçadora, avança agora caça.
Para diante do rio e roga ajuda às manas
A escapar do feio Pã, que à pressa logo passa.
E Pã tenta a abraçar, mas só abraça canas...
D'elas ouve um queixume, achando alguma graça.
E sopra a flauta Pã, para as paixões humanas...
* * *
V desafio musical
Canto-vos, oh Polímnia, à Eloquência ora ingente!
Canto um canto que há muito é mais que uma canção.
Canto um artista audaz contra o deus da criação.
Canto em meu canto -- oh musa! -- a verdade somente.
Elevai-me, inobstante, a voz mais eloquente.
Com palavras falai à mente e ao coração,
Para que mais que ideias, tragam-nos emoção,
E alguém só de as ouvir, não fique indiferente.
À lira, sete cordas... Perfeito tocava
Apolo, deus heleno -- O que a todos inspira,
E, ao dedilhar a lira, às pedras encantava!
À flauta, sete tubos. Maviosos sons tira
Mársias, mito sileno -- O que águas transbordava...
E, com tamanho feito, eis flauta contra lira!
* * *
VI Mársias trágico
Foi, Melpômena, triste... É Tragédia essa vida
Vivida a ter tão-só p'la música prazer.
Ele, tão talentoso, intenta até vencer
O próprio deus Apolo em musical partida.
Vós, Melpômena -- sendo ao júri escolhida
Junto a vossas irmãs -- lograstes conceder
Vitória a quem melhor músico parecer
E submissão de quem a obra se ver vencida.
Mársias vence co'a flauta esse primeiro embate.
Apolo após, porém, cantando é persuasivo...
Sua voz acompanha a lira e obtém o empate.
Vence, por fim, Apolo e a Mársias faz cativo.
Indignado d'haver ousado tal combate,
Febo, impiedosamente, o esfola ainda vivo.
* * *
VII Mársias burlesco
Cesse a tristeza, Tália; à Comédia se cante!
Que rir é para a dor excelente remédio.
Que cantar tão-somente há-de vencer o tédio.
Que a vida, absurdamente, é muito interessante.
Inspirai, Tália, em Baco, onde o vinho inebriante!
Embriagado e co'a voz muito acima do médio,
Eu -- por cômico e vão -- acorde todo o prédio
Ou -- por lírico e só -- tristezas longe espante...
Satíricos cantando este Mársias burlesco,
Encenavam-no tonto, andando em bacanais...
Transforma o carnaval trágico em grotesco.
Afogados em vinho, os desejos carnais
À festa ávidos vêm: mito carnavalesco!
Máscara popular, mas de outros carnavais...
* * *
VIII Febo-Apolo
Pelo astro rei, Urânia, ardente a Astronomia.
Estrela a luzir sobre a abóboda celeste...
De todo o firmamento o senhor inconteste
E à Natura regendo ainda em harmonia.
O sol, desde a criação, os dias definia,
Navegando nos céus um curso de leste a oeste.
Se irradia a saúde -- e às vezes a peste...--
Oráculo ao porvir, porque primeiro o via.
Febo-Apolo, o esplendente, atravessa dest'arte
Os céus e empunha a lira onde notas difusas
Espalha em melodia ampla por toda parte.
Ei-lo enfim musageta ao cortejo das musas:
--"Sigo a vos conduzir, musas, pela obra de arte,
Iluminando além, sem pejos nem escusas!"
* * *
IX a guerra dos músicos
Recordo, grã Calíope, em músicas grande Épico
Onde Mársias e Apolo apostam o mor efeito
Quem obtém... Ou quem toca ainda mais perfeito.
Qual melhor compõe e até o senso estético
Apolo executara uma ária em tom profético,
Mas Mársias com um trote alegre pôs afeito
Todo aquele júri, em cujo alto conceito,
Fora elevado enfim por seu olhar magnético.
Após, cantando, Apolo a todos arrebata.
Visto que une a poesia à música no encanto,
Enquanto soma a voz e a lira na tocata.
Mársias contesta então: não usava ele o canto!
Apolo diz que igual com boca e dedos trata...
Vencedor, suplicia o outro por ousar tanto.
* * *
X o suplício de Mársias
Eis, Terpsícore, todo o Lírico sentido
Que a alma d'um mito tem quando de sua morte.
Seja a música tudo e nada mais importe
Além de morrer na arte em que havia vivido.
Mársias sujeito a Apolo ao se ver vencido,
É estirado a um pinho alto e de grande porte.
Após, o escravo amola a faca para o corte,
E, ainda vivo, o imola ante Apolo ofendido.
Ninfa e sátiro veem, lastimosos, tal crueza.
Chorando, avidamente, um rio derramado
Leva as canas da flauta em sua correnteza.
Da pele d'ele ao chão, fez-se o odre enfeitiçado
Que se tocam a flauta, agita-se à beleza;
Mas se tocam a lira, ouve terrificado.
* * *
XI o cantar de Apolo
— "Eu canto, amiga Erato, o amor em desventura.
Eu -- que então do Amor ri no uso que dava às setas --
Fui ferido d'amor, tal-e-qual vossos poetas.
Encantado por Dafne, uma ninfa tão pura..."
"Eu me achego atraído a sua formosura,
E lhe apresento à lira obras minhas diletas.
Mas Amor quer vingança e desgraça completas:
Avessa Dafne a mim, foge pela mata escura..."
"... E não alcanço a ninfa a correr longe embora.
Ela se transmutou n'uma árvore de louro
Às margens do Pereu, que invocou àquela hora..."
"Coroo-me em louros triste ao dia já vindouro,
Pois eu sou o deus-Sol, que anseia tocar a Aurora,
Sem alcançar, no entanto, o seu coche alvilouro..."
* * *
XII A música de Mársias
—"Música, arte das musas! Eis, Euterpe, a flauta
Desafiando o deus-Sol a executar mais belo.
Mesmo que se perder vá perder o meu pelo,
Lanço-me temerário em uma aposta incauta."
"Salto à sombra seguindo o invisível à pauta.
Enquanto encanto, entanto, ao tocar com tal zelo
A minha flauta, mas -- ainda ouso dizê-lo! --
Ressoa em harmonia à aura que d'ela salta"
"Volta a harmonia, enfim, d'onde ela fora obtida,
Visto que a Natura é perfeita sinfonia,
Cujas rígidas leis, seguem compondo a vida."
"Volta a alegria vã que então se me ouvia,
Fazendo-se, portanto, Arte p'ra ser ouvida:
Se no gorjeio d'uma ave, o sopro à melodia."
* * *
XIII versos alexandrinos
Conta, musas, ainda El Libro d'Alexandre,
Sobre Alexandro Magno, El-Rey de Macedônia,
A História fabulosa, muito embora idônea,
Co'os feitos d'armas seus, que o tornaram o Grande.
O império d'Europa à Índia ele rápido expande:
Ocidente e Oriente une ao tomar Babilônia.
Dest'arte, a flauta frígia em duo co'a lira jônia
Tocam enquanto, no ar, forte o seu gládio brande!
El Libro d'Alexandre, em versos paladinos,
Recorda a erudição toda de Alexandria,
Mas milênios após! Embora os desatinos,
Helenisticamente, entrevê a harmonia
Da lira e a flauta onde versos alexandrinos:
Doze sílabas têm como metro à poesia.
* * *
XVI epílogo
Oh musas, silenciai. Vem a noite... Está tarde.
Há pouco o sol se pôs; eis o ocaso afinal...
E desde o início quer toda história um final,
Embora a escuridão, vãmente, ora atarde.
Quietas -- a lira e a flauta -- ao triste cair da tarde,
Se o moderno se escusa ao lembrar do imortal,
Os deuses morrem sim, de morte natural...
Enquanto a Hélade havida entre fogueiras arde.
Vós, musas, repousais... Há tanto adormecidas!
O artista ousara criar, mas não mais lhe compete,
Pois, mesmo que acordeis, já não sereis ouvidas.
Há ruído demais onde o óbvio se repete!...
Enquanto as artes são ao presente esquecidas,
A Humanidade bebe as águas vãs do Lete.
Betim - 03 09 1995