ALVARRAL (Peneirinha)
ALVARRAL (SIFTLING)
(Duodecaneto de William Lagos, 27 SET 10)
ALVARRAL I (peneirinha)
Não passa a vida, afinal, de peneirinha,
por entre cujas malhas, sem maldade,
os dias escorrem da felicidade,
enquanto ela os amargores nos retinha.
Conservam seus arames toda linha
de desgostos, de tristeza, falsidade,
enquanto o bem gozado, de verdade,
para a próxima vasilha se avizinha.
O dom feliz é qualidade rara,
que não pode pertencer somente a um:
é pequeno demais para guardar-se,
mas é grande demais, ágata rara,
para prender-se nos dedos, bem comum,
para com todos, enfim, compartilhar-se.
ALVARRAL II
Só há uma forma de reter felicidade,
enquanto a vida escorre nessas malhas:
é esperar que as mágoas e suas falhas
sejam retidas em grande quantidade.
Mesmo assim, com mais frequência espalhas
pelas beiras da peneira, na verdade,
o dom feliz que nela sobrenade,
arrastado pelas mais pequenas palhas.
Mas quem consegue, a peso de tristezas,
conservar para si um feliz véu,
descobrirá qual o peso que elas têm:
que essa tela romperão com suas vilezas
e ao invés de penetrares nesse céu,
acabarás por não ter nada também.
ALVARRAL III
Também a vida peneira as amizades,
se bem que ocorra de modo diferente:
as falsas vão-se e ficam, tão somente,
as revestidas de mais sinceridades;
porque é tão fácil se encontrar nas sociedades
todo tipo de povo, tanta gente
que só nos acompanha no presente,
enquanto a festa flui em suas vaidades;
mas na hora do teste ou na tristeza,
quando se mostra verdadeiro sentimento,
chegado o instante maior de precisão,
apenas poucos ficam, com certeza,
a grande parte é de egoísta julgamento,
os quais escorrem pelas malhas e se vão.
ALVARRAL IV
Somente quem é sólido na vida
escapa firme do teste dessa malha:
mesmo quando a colher espreme e talha
permanecem grudados e a saída
nunca buscam, por pior que seja a lida,
porque se firmam na esperança falha,
sem escorrer como a água que se espalha:
ficam contigo até a despedida;
mas grande parte não passa de mingau
que desce lentamente, infame massa
a acumular-se na vasilha ou prato;
não te acompanha no momento mau,
por entre as malhas facilmente passa,
nesse abandono sem qualquer recato.
ALVARRAL V
Mas quando ficas rico ou tens sucesso,
são muito poucos os que passam pela tela:
eles se grudam, famintos, nessa bela
esperança de ganhar melhor acesso
à glória de teus bens... Eu não esqueço
que a amizade dessa gente é como vela,
derrete bem depressa e logo gela:
escolhe bem os teus amigos, eu te peço;
dá preferência àqueles que, contigo,
sabem chorar, sem falso desaponto
e que repartem contigo a água e o pão;
apenas nesses acharás final abrigo
quando ao triunfo vem o contraponto
e se afastam os demais, sem compaixão.
ALVARRAL VI
A compaixão, realmente, é fato estranho!
Não corresponde ao natural egoísmo,
já que o mundo é para nós solipsismo;
só o nosso eito merece o nosso amanho.
É compreensível que seu próprio ganho
cada um busque no seu narcisismo;
foi por isso que falhou o comunismo:
sonho vazio em seu ideal tacanho!...
Porque ter compaixão é a dor sentir
que não é nossa, mas no ar se evola
e a reforçá-la com a própria substância
dada a quem nos procurar para pedir
e não se refugiar na ideia tola
de recriar o mundo em nova instância...
ALVARRAL VII
Vou peneirar as palavras com cuidado,
para reter apenas as mais belas;
palavras curtas como a luz de estrelas,
palavras longas como o meu pecado!
Por entre as malhas escorrem com agrado
essas palavras em que o amor congelas;
essas palavras que preferias tê-las
para escutar da voz do ser amado!
São retidas pelas malhas as compridas,
quantas expressam melhor o encantamento,
as que transformam em som cada emoção,
essas palavras que concretam vidas,
completando cada amor com seu cimento
e induzindo a própria lama à compaixão!
ALVARRAL VIII
Disse um filósofo que o melhor castigo (*)
seria dar ao povo exatamente
o que afirmam desejar frequentemente:
cada desejo novo e cada antigo!...
(*) Philipp Mainländer.
Aos mais compridos desejos dar abrigo,
roupas bonitas e a bebida ardcnte,
as boas comidas e o sexo frequente,
aparelhos e automóveis ter consigo,
que um dia descobrem serem tais vontades
bem o oposto do almejado dom de Midas:
o ouro virado em palha por Sadim!...
E só então perceberiam as ansiedades
reais, bem lá no fundo de suas vidas,
para ao presente dar mais valor assim!...
ALVARRAL IX
Hoje de novo, essa questão social
retoma nova voga, tal qual foi
nos tempos de Mainländer, como sói
estar em moda sempre esse fanal.
Que se demonstre compaixão é natural,
mas o moinho da vida o tempo rói
vem a velhice cedo ou tarde – e dói!
Não se pode querer ser sempre igual.
Assim sempre persistem as diferenças;
algum nasceu já no berço em deficiência,
outros dotados de todos os favores
e é inútil contrariar as velhas crenças:
sempre haverá alguém com impotência
e sempre alguém alcançará novos amores!
ALVARRAL X
Onde quer que se implantou o comunismo,
logo a seguir, surgiu um alvarral:
foi peneirando assaz depressa o ideal
que permitira a imposição do populismo,
que uma rápida nobreza, em puro egoísmo,
se foi formando, em processo natural,
o povo a continuar no estado igual
ou pior mesmo, por mais paternalismo
que fosse oferecido pelo Estado,
que bem depressa se tornou em tirania
e suas benesses se foram corroendo,
nessa penúria (que foi o mingau passado),
cada vez menos riqueza do que havia...
E o desigual seguiu prevalecendo!...
ALVARRAL XI
Pois se metade recebe assim, de graça
aquilo que extraíram da metade,
será a tendência normal da humanidade
não querer mais trabalhar, só por pirraça!
Não que o elogio do atual mundo se faça:
toda riqueza acumulada, na verdade,
sempre foi recolhida, sem bondade,
pelo esforço de muitos em desgraça...
Sinceramente, em nossa sociedade,
bem pouco adianta ao pobre se esforçar,
se for honesto, o operário não é rico,
por mais que ele trabalhe à saciedade,
mas só quando consegue retirar
o alpiste alheio para o próprio bico!
ALVARRAL XII
E assim sempre será: essa peneira
irá durar enquanto o mundo é mundo;
quem alega professar ideal profundo
não passa de um hipócrita sem beira,
que almeja para si riqueza inteira,
empanturrar-se até ficar rotundo,
trazer a si todo o gozo rubicundo,
usando o povo somente como esteira!
Meu alvarral, assim, é carta aberta:
que a leia quem quiser; pouco me dá,
porque esse mundo não mudará em nada.
E só descrevo a minha carreira incerta.
E a ti ajudarei, irmão, enquanto há,
em minha peneira, uma esperança alada!