SILHUETAS BRANCAS

SILHUETAS BRANCAS – William Lagos

SILHUETAS BRANCAS I (25 fev 11)

Que sabor tem uma alma quando chora?

Será salgada, doce, amarga ou azeda?

Será irritada, furiosa, meiga ou leda,

quando escorre feito plâncton em tal hora?

Ou as lágrimas da alma, quando implora,

são como nécton, que em movimento queda

e vão para onde querem? Que a dor ceda

passagem à matéria e vá-se embora?

Não sei se a minha alma já chorou:

meus olhos choram se fico comovido,

mas nunca de tristeza. Sou movido

mais é por coisas que me trazem entusiasmo

e assim indago se minhalma já pranteou,

quando sofreu algum sublime orgasmo...

SILHUETAS BRANCAS II

Que sabor tem a alma quando beija?

Será que isto depende do lugar

em que se aplicará o seu beijar

ou depende da ocasião que assim se enseja?

E quando a alma, por rancor, se aleija,

qual será o gosto que tem seu oscular?

Tem gosto verde a alma a enciumar

ou é amarelo o gosto de sua inveja?

E como beija a alma, sem ter boca?

Essa silhueta branca nos abraça

E na testa nos aplica um tom de graça?

Ou é na nuca essa esperança louca

que nos assalta em plena madrugada,

quando já não esperamos por mais nada?

SILHUETAS BRANCAS III

Que sabor terá a alma quando canta

e vibra inteira, em saudação de luz?

Qual salmodia em verdadeira cruz,

quando a culpa se lhe prende na garganta?

Que sabor tem a alma quando é santa

e já purgou de si o menor pus?

Que sabor tem, depois que assim fez jus

quando te atrai e para si te imanta?

E como escutas essa canção da alma,

quando te vibra fundo ao paladar

e te sobe pelas coanas, inquietante,

a perturbar-te toda a humana calma,

nessa canção que só te pode perturbar

pela malícia que ainda nutres, fervilhante?

SILHUETAS BRANCAS IV

E se ela canta no aceite que também

bem lá no fundo, tua própria alma entoa

essa canção ideal, sublime loa,

sem sobra de malícia e sem porém?

Qual a canção que duas almas têm

nesse dueto de emoção tão boa

quanto uma barca que fende o mar à proa,

marchando firme para o destino além?

Que tipo de canção, que salmodia

que almas expande e enche de alegria,

se tal momento perfeito é partilhado?

Que ode de prazer expectante

compartilham no momento delirante

dessa canção em harmonia do sagrado?

SILHUETAS BRANCAS V

Que sabor tem uma alma quando ri?

Quando argentina lhe soa a campainha

por todo o céu da boca em ladainha,

que mal consegues apreciar por ti?

E de que forma a vibração ali

de tua própria úvula se avizinha

e faz tinir as amígdalas em linha,

bem mais um rouxinol que um bem-te-vi?

Como percorre a língua esse sorriso

em luz de prata cada gota de saliva,

entre as gengivas e a sombra que te toca

os dentes um a um, até o siso

e tremeluz, nas mil pontadas que te criva,

enquanto o gosto por toda a boca emboca!...

SILHUETAS BRANCAS VI

Mas como poderá a branca silhueta

ter um sabor, um som, ter um sorriso?

Com teus ouvidos, apenas de improviso

poderás percorrer sua luz secreta...

Não é com a língua, em seu covil inquieta,

nem com o olhar de candelabro esquivo,

nem com o ouvido mais agudo em seu aviso,

nem com a coriza que tua narina excreta.

Só a podes enxergar quando não olhas

e só a podes ouvir se não escutas

e só a podes cheirar, se não farejas;

só a podes degustar quando te molhas

com tua saliva ou lágrimas das grutas,

quanto a ti mesmo insensatez ensejas...

SILHUETAS BRANCAS VII

A alma branca não se degusta assim

pela vontade pura e dirigida;

tens de deixar levar-te de vencida

pelo toque silencioso de um clarim;

nem é nada que busques, outrossim;

deixando a alma então desprevenida

num devaneio, semiadormecida,

é que a silhueta branca chega, enfim

e se apodera de ti, sem causar dano;

mui gentilmente se entranha na tua mente

e faz vibrar dentro em ti a sensação;

pois saberás então, sem mais engano,

qual sabor tem a alma descontente

com o teu ritmo a latejar no coração...

SILHUETAS BRANCAS VIII

Talvez ocorra que, quando adormeças

essa alma irmã a quem em vida amaste

e que tão inutilmente procuraste,

por tantos anos, que talvez esqueças,

algures te procure, quando desças

ao interno de ti mesma, em que guardaste

a chave do portal que entesouraste,

na insegurança dos anos em que cresças

e no teu sonho, quando o corpo deixas,

após cruzar esse portal dentro de ti,

nesse rastro de prata que projetas,

em outro sonho quiçá o teu enfeixas,

trança na trança, no esplendor que ali

duas almas funde em intenções secretas...

SILHUETAS BRANCAS IX

Serão silhuetas brancas, lado a lado,

durante os sonhos ocultos da memória,

de teu consciente cortadas pela escória

das emoções que têm-te atribulado;

nesses momentos da mais prístina glória,

de toda inquietação tranquilizado,

vives num mundo isento de pecado,

desconhecido totalmente pela história.

Provavelmente, ela tampouco lembrará

esse lugar que partilhou contigo:

fecham-se os sonhos com pesadas trancas;

senão a vida se desorganizará,

ao cada um acordar no lar antigo,

que só nas trevas podes ver silhuetas brancas...

SILHUETAS BRANCAS X

Assim, quanto maior for a amargura

ou se não sabes de que sentes saudade,

lembra de um mundo de igual veracidade

em que tua alma por outra alma procura;

e quando a depressão, luz de negrura,

te disser que a vida inteira é vacuidade,

pensa no instante de vivacidade

que alhures para ti ainda perdura...

Cumprida a pena, seguirás, enfim,

o fio de prata interrompido assim

para esse mundo que o corpo não aborda,

deixando para trás ressentimento,

na escala cinza do desapontamento,

por esse sonho de que não se acorda...

SILHUETAS BRANCAS XI

E então dirás: “Mas isso é religião!

Eu só acredito no que vejo ou toco;

e neste mundo real é que me enfoco,

pois tudo o mais não passa de ilusão...”

Contudo, explica essa insatisfação

que deixa o teu olhar fora de foco;

para estes breves momentos eu te invoco,

de perplexa e descontente confusão,

quando te acordas mais subitamente,

por um ruído qualquer ou então por medo,

na impressão de um tombo repentino;

não é por religião que esconde a mente,

num frenesi, essas instâncias de segredo,

ainda presente ao despertares de inopino.

SILHUETAS BRANCAS XII

Também eu tenho cidades a que vou

e a que regresso, do sonho no desvelo;

quando as encontro, reconheço o selo

das visitas anteriores onde estou;

não sou somente uma silhueta que voou,

branca e pura, para o mar do sonho belo;

eu me transporto inteiro, fogo e gelo,

perfume e cor percebo, igual que sou

capaz de perceber quando acordado;

e lá encontro pessoas que me amam,

como eu as amo em puro sentimento;

e quando volto ao leito sossegado,

até na luz as silhuetas me proclamam

o quão real foi a vida em tal momento!

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com