EMBARAÇO & MAIS

EMBARAÇO I – 22 DEZ 14

Crepita a língua contra a amora morna,

ao silêncio açoitando brandamente,

um manifesto acoitando ferozmente,

enquanto a língua em nova chama torna;

crepita a língua contra amor que adorna,

a flor vermelha sugando lentamente,

as pétalas acariciando gentilmente,

em salva pura que o faminto lábio entorna;

crepita o amor contra essa língua doce,

na formosura morna do desejo,

ai quem me dera! – que mais doce fosse

o meu frêmito dolente nesse ensejo,

enquanto do sonho da amora tomo posse

e a acaricio no mais perfeito beijo!

EMBARAÇO II

Então tudo se resume ao calafrio

que nos domina as costas no momento,

nessa busca com que todo me impaciento,

não mais que o sopro final de um arrepio;

e pela pele se eriça cada fio,

nessa brisa interior do sentimento,

mais apressado no arrebatamento,

nesse estridor silencioso de meu brio,

que inteiro se resume na carícia,

que acarinha outra pele como brasa

e seu prazer tem esgares de sevícia,

quando o botão se prende em toda a casa,

na alegoria final desta malícia,

qual ferimento desvestido de sua gaza.

EMBARAÇO III

Do amor final, como foice em sedução,

a percorrer cada orla de seu manto,

a murmurar o mais melífluo canto,

os dedos a brunir seu coração,

do amor final, como brasa de emoção,

na ebulição de cada sopro do portento,

no aspirar do ar de seu alento,

os véus a percutir dessa ilusão;

do amor final a carne perseguida,

carne com carne em barganha temporal,

sangue com sangue na vitória compartida,

do amor semente pela terra umedecida,

corpo no corpo, no encanto primordial

do amor final, como espada na ferida.

BANHO DE FOGO I – 23 DEZ 14

Crepita a alma como um fogo ardente,

enquanto dorme o corpo no degredo;

em cada escama cintila o meu segredo,

na madrepérola do ardor circunjacente;

crepita a alma em gesto complacente,

quando o corpo desperta em seu albedo

e para o amor já apresta dedo a dedo,

na madrépora do vigor inconsequente;

a alma e o corpo um só fogo a partilhar,

na cremação diária do momento,

cada segundo a língua de uma flama,

o corpo e a alma no mesmo crepitar,

enquanto a chispa se destrói em seguimento

da mesma combustão de que foi chama.

BANHO DE FOGO II

Quando a alma se cala, o corpo treme,

sem saber se ainda vigia a sua loucura,

no temor que se desfaça a tessitura;

quando o corpo se cala, a alma geme...

Se teu corpo se calar, que tua alma dê-me

cada quimera concebida em formosura;

que todo o denegrir seja brancura:

entrega a mim o quanto tua alma teme!

E o lavarei no brilhante fogo azul

com que o fogão consagra o alimento:

serão chispas elétricas de vento

a percorrer-te o corpo, norte a sul,

na cremação de tua doença e inquietude

e outro mal qualquer que inda te ilude!

BANHO DE FOGO III

Crepita a alma contra o combustível

de outra alma a crepitar amor;

crepita o corpo no instante do calor

de corpo alheio brando no aquiescível...

Crepita a alma ante o incognoscível,

qual um carvão ante fósforo, em pavor,

e quando o fósforo demonstra seu vigor,

crepita o corpo no momento perceptível...

Pois te preencho assim, parte de mim,

como essa chama que me consumirá,

qual no passado já me consumiu,

ansiando por queimar contigo, enfim,

na mesma pira que aos dois aceitará,

cada um vibrando no igual fogo que sentiu!

OBRIGOR I – 4/12/02

inocente

Toda mulher é indecisa, até o instante

calculista

das raízes

em que, brotado das fontes de seu peito,

dos abismos

da alma

sem o saber do cérebro, um vibrante

do sangue

se enoja

impulso de intuição se arroja, num perfeito

desaloja

do que nega

vislumbrar do que deve, por direito,

do que esconde

na entrega

executar, no momento delirante

no triunfo

não quer

em que adiar não mais pode, por despeito,

não procura

de agonia

ou na ameaça de perigo expectante.

de orgasmo

descuidada

Lança de si, então, toda a prudência,

deliberadamente

senhora do

sem planejar e sem sequer saber

ansiosa por

se calcula

porque se entrega assim a tal pendor.

se expõe

sempre era

Mas comigo não foi. Em continência,

jamais fora

muito mal

calculou muito bem o meu sofrer

de si segura

desperdiçar-se

até se assenhorear do meu amor...

perder de todo

OBRIGOR II – 24 DEZ 14

descrevem

Do raciocínio existem espécies três:

mencionam

a contar

o indutivo, a partir do resultado;

a retornar

cada etapa

busca o processo que o tem causado

o planear

reclama

e do inicial desvenda seus porquês.

calcula

revela

O dedutivo apresenta inversa grês:

demonstra

a contar

concatena a partir de um certo dado;

sob a luz

atinge assim

na matemática chega ao ponto asado

do teorema

com fervor

que demandava desde a primeira vez.

equipolente

ademais

Porém existe ainda o intuitivo,

lado a lado

desenho

queimando cada etapa do processo,

regra

depressa

para chegar direto à conclusão;

sem demora

desdém

é o que chamamos, com desprezo bem altivo

descaso

sem base

de “lógica feminina”, sem regresso,

imotivada

transmitir-nos

por não poder explicar-nos sua razão.

partilhar-nos

OBRIGOR III

esquivo

Em geral, por mais exato o resultado,

Incerto

evidenciar

não conseguem explicar como o alcançaram,

concluir

os degraus

quais as etapas que ao final levaram

as bases

fundamento

e muito menos qual o ponto do iniciado,

tectônico

obste

sem que isto impeça que o final buscado

ampare

outros membros

dê a resposta que todos procuraram;

os homens

em digital

não é “científico”, pois não o duplicaram

em analógico

responsório

os que idêntica solução tenham tentado.

salvação

quotidiana

Porém na vida real, do dia a dia,

potencial

indecisa

isto permite a mais pronta decisão

abalizada

acidentes

e atende instâncias da maior premência,

exigências

periculoso

nesse enfrentar do que mais pressão teria,

demandante

procede

quando se age sem pesar a situação,

ataca

final

mas atingindo o alívio da emergência.

resolução

OBRIGOR IV

a musa

Destarte foi que ela agiu comigo,

a ninfa

motivos

num impulso em que causas não pesava,

lucros

consequências

nem futuros resultados avaliava,

antecedências

por certo

buscando apenas de um calor o abrigo

sem saber

encarcerou

e no seu seio me conservou consigo,

libertou

ambição

manso poeta que a riqueza não buscava,

progresso

gasto

a quem o sustento diário lhe bastava,

emergência

descuidar

querendo amor sem temer qualquer castigo.

prever

imprudente

Foi deste jeito que ela me intuiu,

Irracional

manejasse

sem que usasse de outro raciocínio;

descuidasse

maneira

de forma alguma desta forma deduziu

receita

imprevidente

minha atitude futura ou induziu

temerária

antanho

os resultados do passado em meu declínio:

desgaste

por completo

tomou-me inteiro e assim me seduziu.

em seu prejuízo.

ADMOESTAÇÃO I – 4/12/02

Como se atreve você, que não me lê,

afirmar que não gosta de poesia...?

Essa aversão que tem e que sentia

é porque nunca eu encontrei você...

Como se atreve você, que não publica

livros de versos, porque poesia não vende...?

Tal aversão, a que ainda se prende.

meus versos não ter lido claro indica.

Porque um poema belo invade a alma.

Desassossega, inquieta: ele assedia

as muralhas que lhe cercam a emoção.

Não há como afastá-lo, uma vez nalma...

Ele é insistente; e o asco que nutria

fará esvair-se total do coração...

ADMOESTAÇÃO II – 25 DEZ 14

Busco em cada poema dar resposta

não para ti, mas para o que te indagas,

as incertezas com que o coração alagas,

solução a cada mágoa que hoje aporta

inquietação em teu peito; que te entorta

convicções e certezas, como adagas,

para as brisas vazias com que te afagas,

para a agnosticismo que te imposta;

cada poema com endereço certo,

embora eu nunca saiba aonde é que vai,

nem a quem realmente se destina;

somente os mando pelo céu deserto

até o olhar sequioso que os atrai

para afastar qualquer tristeza pequenina.

ADMOESTAÇÃO III

Como se atreve você, que não me conta

do coração as tristezas e alegrias,

afirmar que não vê graça nas poesias

que em qualquer livreto acha e reponta?

Como se atreve você, que não aponta

seus próprios sentimentos e folias

em quaisquer versos de mofo e nostalgias,

por achar suas emoções de pouca monta?

O que eu escrevo não é apenas meu:

quem sabe se, de noite, nos seus sonhos.

eu não penetro, a trajar de vagalume

e capturo esse verso que era seu

para gravar, riscos alegres ou tristonhos,

igual que beija-flor de mau costume?

ADMOESTAÇÃO IV

Isso que escrevo de fonte alheia brota;

eu sou Papai Noel que se inverteu;

ao invés de lhe levar, você me deu,

em sua modorra que pouco ou nada nota

do que ao redor se passa ou se denota;

Rei Mago em roubo que nunca percebeu;

pastor do sono em que a dona se escondeu,

carregando em minha mochila vasta quota;

e se uma linha qualquer a sua atenção

chamar é que bem sabe de sua origem;

é a resposta final de sua vertigem,

que atraiu em inesperada imantação,

procurando entre o fulgor e a vã fuligem

o que faltava a completar seu coração.

BOCA DE FUMO 1 – 04/12/02

Não se pode abraçar uma lembrança,

por mais que se deseje, por mais viva

que seja essa memória, em sua esquivança,

por menos que se mostre assim furtiva.

É coisa insólita: teu peito transparente,

esses olhos esgarços, essa intocável

boca... E esse teu ventre, tão frequente,

somente no meu sonho imponderável...

E, contudo, sigo em busca desse amplexo:

de sombra e de neblina eu faço sexo,

mesmo que esqueça a memória de teus traços...

E o tempo passa, esvai-se a abstração.

E me surpreende que, dentro ao coração,

Inda persista tua lembrança nos meus braços...

BOCA DE FUMO 2 – 26 DEZ 14

No cachimbo do ópio te encontrei,

Sobre a fumaça, ardente de desejos

E não mais que vapor foram teus beijos,

Não mais que um raio de lua que abracei;

Na decadência da ausência te aspirei,

Todo o meu sangue agindo em tais ensejos,

Toda a minha linfa amorfa nesses pejos:

Só de olhar para mim mesmo te alcancei,

Pela lembrança de ti hipnotizado,

Diante dos olhos a girar, como medalha,

Na ponta de corrente, em vaivém;

Fiquei somente de luz mesmerizado,

Recordação fugaz que não me falha,

Certeza tola de que me queres bem...

BOCA DE FUMO 3

Teu vulto ondula nessa azul fumaça

Que de teus lábios sobe num gorjeio;

O amor de ti me oprime e dá receio:

Tão só um esboço de sombra é que me abraça;

Mas nessa insuficiência de tua graça,

Sem substância, falha a seiva desse veio,

Sobre meu próprio imaginar me hasteio

E assim flutuo na brisa que me caça,

Igual que fosse algum retalho de papel,

Correndo a esmo, sem ter pernas ou patas,

Assoprado pelos cantos em desdém,

Saltitando por canteiros qual corcel,

Indiferente a lugares ou a datas,

Folha furtiva envolvida em seu porém...

BOCA DE FUMO 4

Não há maconha neste meu barato

E não aspiro, de fato, qualquer pó,

Do sonho da papoula sinto dó

E os barbitúricos encaro com recato;

Com depressão jamais tenho contato,

O meu êxtase pessoal alcanço só,

As minhas mágoas cepilho com enxó,

Pinto e esculpo a meu prazer cada boato.

Mas no momento em que entro em devaneio

E minhas unhas esculpem o papel,

Sobre mim desce essa luz controladora

Que a sombra esparge como o leite de teu seio

E ao desejo tremulante dou quartel,

Doce quimera que da vida é portadora.

IMPEDÂNCIA I – 04/12/02

Pressinto agora um esbater funesto

contra meu peito – cem coisas que se agitam:

obrigações que me comem e concitam

a abdicar dos bens a que me apresto.

eu faço o que não quero e o que mais queira

ponho de lado, permeio à interrupção

dos contratempos, imposto e espoliação

de meus direitos, dessa vileza inteira

que me força outra coisa a realizar,

que aquela que eu queria sublimar,

sempre a teu lado, ao me sentir aceito.

e vejo assim como é inútil planejar,

que quanto eu busco e tenho por direito

corre entre os dedos e o vejo evaporar...

IMPEDÂNCIA II – 27 DEZ 14

Não era então razão para o Natal

eu celebrar em versos de magia,

esse mesmo Noel que em nostalgia

já me levou a crer no divinal;

mas era só outro motivo para o mal,

antes traçar a senda que eu corria

em marcos milhares da pura melodia

dessas velhas canções em seu fanal.

Mas não me acode tal inspiração

nesta data de tantos suicídios,

provocados pelo odor da solidão,

seres adultos a vivenciar desolação

de um verdadeiro Papainoelicídio

que confundiram com o Senhor da criação!

IMPEDÂNCIA III

Sei muito bem que outra coisa é a impedância,

mas aqui penso naquilo que me impede

de amar a quem queria e assim sucede,

no canto amargo da eterna redundância.

É um quociente, afinal, uma distância

entre a corrente alternada e a que recede

em um circuito a que energia cede,

numa entrada de magnética alternância.

E assim é essa corrente em que me alterno

para animar a corrente de seu peito:

não é igual jamais ao que eu queria

e fica assim a girar, tão só no externo,

sem alcançar o que pensava ser direito

e sem lhe dar o que mais desejaria...

IMPEDÂNCIA IV

Em alguns outros momentos também vejo

como é diverso o que ontem planejei

e quanto hoje, afinal, realizei,

pela força quotidiana de um ensejo;

o sentimento do Natal ainda eu beijo,

mas do verdadeiro Natal me descartei;

não foi Papai Noel que desprezei,

mas a esperança das benesses, em cortejo,

que me deviam trazer expectativa

para o Ano Novo que já se avizinha,

que deveria esperar com mais assédio,

mas não pertenço à multidão cativa

a suplicar pelos bens que ainda não tinha

e este período só me traz um leve tédio...

CAFUNDÓS DO CORAÇÃO I – 28 DEZ 14

Feroz que seja a fera da paixão,

que permaneça enjaulado o coração;

e quanto mais feroz tal fera é,

tanto mais forte a cadeia no seu pé;

pois que a paixão em jaula permaneça,

por mais que seu efeito nos aqueça,

já que só pode nos causar maior ardor,

sem permitir assim que cresça o amor.

Porque a paixão contida se conserva

e quando satisfeita, o mais que ferva,

termina por gastar-se em ebulição;

melhor assim mantê-la na corrente:

que cresça o amor sereno e independente

em seu domínio total do coração.

CAFUNDÓS DO CORAÇÃO II

O coração possui mil escaninhos

e as emoções ali ocupam buraquinhos

comunicados entre si por sentimentos,

pouco sujeitos à razão ou julgamentos.

O coração possui seus biricuetes,

algumas vezes entupidos de confetes,

outras vezes interligados em serpentina:

cada quimera outra ilusão fascina.

E se revelam em cantos vasculares,

na magnífica transmissão dos capilares,

os leucócitos a carregar alguns cartazes

que lhes entregas, sem bem saber o que fazes,

enquanto hemácias se enchem de entusiasmo

e se congregam no estridor do espasmo...

CAFUNDÓS DO CORAÇÃO III

Há lugares em que jamais um pensamento

teve entrada ou encontrou alojamento;

seu bilhete de acesso é a adrenalina

e sua saída permitirá a serotonina...

Os pensamentos são demasiado racionais

e se encolhem antes os hormônios naturais;

são emoções que ali residem sós,

a percorrer os cardíacos cafundós...

Então se criam essas grades de plaquetas,

capturando tuas paixões secretas,

que haviam deixado soltas em suas férias,

para entupir uma a uma as tuas artérias,

atacadas sendo então pelos fagócitos,

que as devoram com a força dos macrófagos!...

CAFUNDÓS DO CORAÇÃO IV

Restam assim as veias paralelas,

a prender a paixão entre as costelas;

uma é a Cava, com desgosto pela Aorta;

a Pulmonar ciúmes sente pela Porta

e as ilusões percorrem as Safenas

em cada válvula escondida apenas

pelo diálogo entre Tricúspide e Mitral,

no turbilhão do minuano e do mistral...

E ficam as ilusões nessas Aurículas,

os raciocínios dominados por Ventrículos,

nesse discurso entre Carótida e Jugular,

a dedução envolta em mil partículas,

a indução relegada a conventículos

no coração, que ainda bate sem parar!...

ROSAS DO SOL I – 29 DEZ 14

Ela era cintilante e sua alegria

me puxava para a fúria da surpresa

de ver turbada toda a minha defesa

e me envolver na teia que fazia...

Toda mulher é perita em tal magia;

não se furta o coração dela ser presa;

ante a mulher, a razão se funde lesa;

ela penetra e provoca o que queria...

E a gente fica alegre e cintilante,

enleado em casular cintilação,

de olhos abertos a mergulhar no lago

de tal olhar aberto e coriscante,

por mais que o fado previna o dia vago

que nos conduz à final desilusão...

ROSAS DO SOL II

Ela possuía duas rosas nas pupilas

e apaixonei-me por sua doce trescalância;

duas rosas na face, em redundância,

mais duas rosas dos lábios nas papilas;

e meus dedos se atreveram a senti-las,

rosas do sol em pura transcendência,

rosas de lua a pratear-me a impotência,

rosas de luz impelindo-me a servi-las...

E meus dedos as roçaram, impacientes,

sem ferimentos em suas calosidades,

no atrevimento de mais e mais carinhos

e então meus lábios ficaram mais valentes,

em suas pestanas a buscar opacidades,

sangrando assim das rosas nos espinhos.

ROSAS DO SOL III

Já tentei dela furtar cintilação,

mas eram mais elétricas suas chispas;

queimei meus lábios contra tais faíscas,

gastei meus dedos na luz dessa explosão;

cílios escuros em vasta brotação,

demonstrando, afinal, serem só iscas,

para a pesca a luzir, em pisca-piscas,

firme fisgando um incauto coração.

Será que o peixe sente algum orgasmo

nesse momento em que se prende ao anzol?

Somente sei do momento de meu pasmo,

quando me vi totalmente consumido

por essas rosas em jardim de sol,

no voluntário sufocar do convertido...

TECTÔNICA I – 20/7/2006

Teu jogo foi apenas coquetismo,

Prazer em sedução, sem compromisso,

Mentir um falso amor, não mais que isso,

Tão só pela conquista e um vago egoísmo

De uma mulher, afinal, tão insegura,

Incerta de si mesma e desvalida,

Pelos maus-tratos da vida ressentida,

A própria mágoa esparzindo de loucura...

Tivesses tido um pouco de bondade,

Poderias até dar felicidade

A quem não sabe sequer o que isso seja...

Parece, apenas, que é feita de confiança,

Um pouco de paixão, mais esperança

De ter amor enquanto amor se enseja...

TECTÔNICA II – 30 DEZ 14

Toda palavra surge já adulterada

Na serpentina língua dessa dor;

Algo te impede de confessar amor;

Talvez não queiras, de fato, ser amada;

Toda emoção já brota controlada

De mim e retorcida em seu vigor;

Somente é livre a passagem do rancor

Ao te sentires, só de leve, desprezada;

Essa loucura que nos outros vês

É em ti perceptível como espelho;

Porque haveria tantos doidos neste mundo?

É a lava do vulcão da mesma grês

Que te faz repetir o esquema velho,

Em rebelião contra um laço mais profundo.

TECTÔNICA III

A esperança sob a nuvem piroplástica

É sufocada no mais breve sofrimento,

No terremoto e tsunami de um momento,

Quando o ar mesmo espalha-se em suástica;

Toda a confiança em veniaga plástica,

Toda mágoa sob prévio julgamento,

O preconceito a controlar o sentimento,

Até o corte e a negação mais drástica;

E quanto ao mais, é tão só desodorante

Esse sorriso em dentes de cetim,

Que tantas vezes me negaste assim,

Decerto sendo mais sincero esse vibrante

Esgar de raiva que voltas para mim,

Qual um grito de socorro expectante...

TECTÔNICA IV

A terra treme em seu desdobramento

E eu tremo de teu corpo na tremura;

Teu maremoto contém a formosura

De cada onda de meu afogamento;

Cada maré a comunicar contentamento,

A preamar dos instantes de loucura,

A baixamar que em demasiado dura,

A maresia tranquila de um momento...

Como é tectônico o teu arrebatamento!

E contudo, não conseguiu, nem mesmo hoje

Separar as minhas praias de teu peito,

Pois permaneço em continental escudamento,

Lançando arpões à costa que me foge,

Na esperança de diluir o seu despeito...

NEPOTISMO I – 31 DEZ 14

Que cor possuem os olhos do ano velho?

Como a terra, terá olhar castanho,

algumas vezes, porém, em verde ganho

sobre a risca alveolar de antigo espelho.

Será que tem nos cantos esse relho

branco-azulado de um glaucoma amanho,

a visão periférica em azul-antanho,

perdido o olhar no metal do contraespelho?

Mas o que causa a cegueira desse ano,

esse excesso de maldade que já viu,

o estridor fumígero da guerra?

Foi infectado pelo miópico do humano,

ou já encontrou um instante em que sorriu,

fitando a bruma que a janeiro encerra?

NEPOTISMO II

Que cor possuem os olhos do ano novo,

em suas fraldas a sorrir, todo impudente,

feliz em sua certeza imprevidente,

sem segurança a pinicar o seu renovo?

Será azul o olhar com que a esse povo

cumprimenta, em seu berço inconcludente?

castanhos olhos talvez veja à sua frente,

na maior parte dos casais de que foi ovo!...

Nos eurodescendentes há esperança

de que o nenê os espie de olhos claros,

esquecido do avelã dos próprios olhos;

contudo o ano que surge, qual criança,

contempla a vida com olhares bem preclaros,

já desconfiados do negror de seus refolhos...

NEPOTISMO III

Será que os olhos dos meses já se escolhem

conforme os olhos que vê na enfermaria?

Olhos sem rosto, que máscara ocultaria,

olhos distantes, que após vidro se encolhem...

Será que os dias que tais meses acolhem

são filhos ou parentes dos que via?

Restos de sangue para as guerras que previa,

cheiros de éter e iodo que recolhem?

Pobre ano novo! No canto, encarquilhado,

o ano velho que os dias já deixaram,

quais ilusões a nutrir desde criança,

olha o rostinho de esplendor corado,

já ressentido de tudo o que esperaram,

qual lhes trouxesse uma cesta de bonança!...

NEPOTISMO IV

O ano velho mal consegue aconselhar,

de suas vastas energias esquecido...

Será inveja do nenê que vê nutrido

ou triste pena pelo que vai atravessar?

Há tanta gente nas igrejas, a rezar,

ou nos grandes réveillons, luz e ruído,

alegres a esperar pelo vagido:

suspiro último do ano a agonizar...

E quanto pedem estes filhos e sobrinhos!

O pobre infante assim sobrecarregam,

que então lhes dê o que seu pai não deu!...

Uns a pedir não mais que creches e parquinhos,

outros os cargos públicos a que se apegam:

ninguém auxílio ao novo ano ofereceu!...

NEPOTISMO V

Porque esse coitadinho ainda é criança

e nem sequer consegue em pé andar!

Para as tarefas precisa se educar;

em vez de amor, todos pedem esperança!

Na verdade, no calendário houve mudança:

de quatro dias um desvio a se marcar,

de quatro dias o solstício a se adiantar...

Só o ano velho entende a dita andança...

Pega no colo o nenê que não nasceu

e lhe sussurra os mais tristes conselhos:

para educá-lo só dispõe de quatro dias!

Para ensinar-lhe o que quase já esqueceu,

nesses percalços por caminhos velhos,

sangue das horas pingando pelas vias!...

NEPOTISMO VI

Tem na verdade um filho hereditário;

não lega um trono, porém pesada carga;

o tempo o lanha e a cada dia larga

de si fração, qual um jovem perdulário...

Do ano o tempo é sócio comanditário

e suas percentagens sempre alarga,

enquanto sente a boca mais amarga,

pois desgastou-se na busca do contrário!

E ao ano velho só resta ter confiança

nessa criança de aspecto inocente,

porém que oculta tanta malignidade!

E a gente, já espoliada da esperança

no ano velho, ora suspira, incontinenti,

que lhe traga o ano novo mais bondade!...

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com