ELEIÇÕES

ELEIÇÕES I (2002)

Um sonho nunca é vão, pois, se sonhaste,

satisfizeste a angústia do momento

e refúgio encontraste no portento

desse castelo nas nuvens, que embasaste

diretamente; ou alicerçaste nos neurônios.

Sonhos existem em ti, nessa tua mente

cheia de dúvidas, de anseio efervescente,

na paralaxe interna dos axônios...

Pois dentro em ti também tens os solstícios

da mente; por mais que sejam equinócios,

podes fugir ao novelo em interstícios

e preenchê-los com sonhos: em teus ócios,

concretizar a abstrata precessão,

até tornar-lhes concreta a abstração...

ELEIÇÕES II (28 out 14)

Eleições, naturalmente, são escolhas

que podem ser totalmente individuais

ou realizadas por influência dos demais,

nessa pressão com que diária te tolhas;

passam as mimas como aéreas bolhas (*)

e a maioria se dobra a tais sinais,

seguindo as modas como sendo naturais,

seus próprios gostos submetendo a rolhas;

opiniões mudam sob mil repetições

nas mídia ou em especial, redes sociais; (**)

não é por nada que “formadores de opinião”

chamam aos âncoras das televisões,

que são pagos para impor como normais

os objetos de desejo da ocasião.

(*) Unidades de imitação. (**) “Mídia” é plural, anglicismo

de “media”, plural inglês e latino de “medium” (meio).

ELEIÇÕES III

Há também as periódicas eleições

a tantos cargos ardentemente cobiçados;

por “pesquisas de opinião” são empurrados,

garganta abaixo, os políticos anões,

que só desejam alcançar as ocasiões

de locupletar os pecúlios alcançados

às custas de vocês, pobres coitados,

que conseguem conquistar com ilusões.

Porém, de fato, a real democracia

é o direito de opinião da minoria,

sem que seja submetida a qualquer corte,

enquanto cada eleição demonstraria

no resultado do que quis a maioria

a imposição do direito do mais forte!...

ELEIÇÕES IV

Dentro de ti possuis outras eleições ,

pelo sistema simpático coordenadas,

a controlar os mil pequenos nadas

que do organismo coadunam mutações;

não tens controle das circulações

ou das batidas cardíacas contadas

ou na defesa das infecções achadas

pelo sistema das linfáticas ações;

porém teus sonhos podes controlar

e igualmente desenvolver a tua memória

ou até mesmo definir tuas emoções

e os maus impulsos podes dominar

e escolher, de forma peremptória,

as consequências de tuas próprias eleições...

DESAFORAR I – 2002

Um homem, lá fora, forçado a viver,

por seu amor a toda a natureza,

longe da vida urbana e sua incerteza,

gozava o sol da alba ao entardecer...

Um homem lá, fora forçado a se esconder

e a viver sob falsa identidade;

e lastimava, sempre e com saudade,

a vida a fora, o que tivera de perder...

Um fora expulso, por crimes perseguido;

o outro, por prazer, vivia lá fora.

Um fora para as grotas exilado

e o outro fora, para lá, seguido,

porque morava lá fora, sem cuidado;

lá fora o outro de sua vida posto embora...

DESAFORAR II – (29 out 14)

Um homem pôs a própria vida fora,

foi posto fora o outro pela vida,

a vida a fora levado de vencida,

porque sua vida controlar não fora;

para outro fora a vida posta fora

e fora fora na chama mais querida

sua vida fora tão só submetida,

sem que em desforra desaforar-se fora;

pôde um homem viver à tripa forra,

um outro apenas a ansiar pela alforria;

cada forâmen do cérebro se abria

na busca vã da mínima desforra:

dos desaforos não se desafora,

pois nunca firme fora nessa hora.

DESAFORAR III

Um homem levou a vida para o foro,

outro no foro despojaram de seu forro;

forrado foi um outro no reforro,

outro no foro trabalha feito um mouro;

fora do foro com furor discorro,

do forte foro o desforar percorro,

no foro fora apenas me desforro:

entro no foro sem tirar meu gorro!

Fico no foro pela magia afora,

aforo a mágica que se vai embora,

se fora fora deixada pela vida,

fora de mim neste final, agora,

se fora o agora apenas uma aurora

se fora fora a causa perseguida...

DESAFORAR IV

Perfuro o furo que me vem a furo

qual um furúnculo sofrido antigamente,

furo furtivo de meu faro ardente

e o furo eu furo no ponto mais escuro;

se fora o furo fosse apenas foro puro,

se fora fora o meu furor premente,

eu furaria o fulcro mais potente

e afuraria o ferroar mais duro!....

É fero o furo que no foro firo;

se fora fora o meu afuroar.

se farejasse fora o meu ferir,

se fora fora esse fulcro no qual giro,

se fora fosse, enfim, o desforar,

feroz o fora eu furaria a sorrir!...

INACENTUAR I (2002)

(Para Neusa Tânia Ávila Alves Branco)

De fora a fora, passo a relembrar

na vida, o fora, que me desvaliu...

Na vida a fora, nunca me cumpriu.

Da vida o fora tive de aceitar...

Porque, se esta minha vida assim não fora,

eu não teria já lançado fora

o sonho mais gentil que a vida doura,

nem ilusão jamais mandado embora...

Se fora fora então que eu me sentisse,

do amor daquela, por quem tal carinho

eu sinto agora e fora repelido;

E fora fora então, que assim me visse

e fora fora o sonho mais querido

e posto fora enfim o meu caminho...

INACENTUAR II –30 out 14

Se fora fora o fora em desaforo

e o foro fora fora da disputa

e o fora desse foro fora a gruta,

o foro fora a fora em seu desdouro,

se fora fora o foro em furo mouro

e o mouro fora fora em fera luta

e a fera fora ao foro que reputa

e assim se fira o faro e o próprio couro,

se a fera o couro fira dentro e fora,

se fora ao foro a fera no feriado,

se fora em férias o foro num pecado,

seria o foro fero em toda a hora

e a hora dessa fera fora fora,

num furibundo furor desenfreado...

INACENTUAR III

Furado o foro por fera malferida,

não fora o fora assim aferroado,

nem fora fora o furo afuroado,

nem fora o fora num foro perseguido;

não fira o fora a forja percutida,

nem forje fora o foro designado,

nem fure o foro o fora mencionado,

nem fera fira um furo desmedido;

se não furar o ferro, a fera não fará

farinha feita do fora que não fora,

nem farofa farejada em furacão;

feita a furada, o ferro ferirá,

ferrado o foro assim no bota-fora

do fora-fora em plena fruição...

INACENTUAR IV

É fero o foro se fora sem acento:

fere o ouvido o fora do momento;

fora do coração ferido o sentimento,

enquanto o ferro fere o foro fora;

o ferro fere o foro nesse agora,

o foro fere o ferro nesse embora,

o fora ferra o foro desde o outrora,

furo aferrado no meu pensamento;

se fora o acento no fora colocado,

não seria confundido com meu fora,

nem levaria um fora aferroado,

nem ferro fora do fora deslocado

e este soneto finalmente fora

fora do fora melhormente pronunciado...

(Estas duas séries constituem um exercício para demonstrar a necessidade do acento diferencial sobre a flexão verbal, mas que inexiste agora; se assim não fora, seria bem mais fácil de entender...)

SOMENTE TU I (2002)

(Embora não pareça, esta série é composta por sonetos alternativos.)

perdes

o teu destino é teu: és tu que escolhes

ganhas

antes

a cada decisão tomada agora

depois

sofres

provocas consequências, que recolhes

usufruis

adiante

e não consegues expulsar, embora

constante

estimulante

te esforces por mudar o fado ingrato

inesperado

na morte

e obter um sucesso enfim na vida

na chama

instante

mesmo que voltes atrás, ao mesmo fato

avante

ponderada.

e tomes decisão que fora preterida.

esquecida.

prometem

os caminhos diversos se apresentam

ameaçam

cristalina

porque já lá se foi a tua antiga

irrefletida

aceitáveis...

decisão, que matou tantos prováveis...

inefáveis...

escondeu

sucessos e insucessos e mostrou

balançou

traidor

que o livre-arbítrio é insensato auriga

trapaceiro

para a sorte...

que te conduz por mares insondáveis...

para a morte...

SOMENTE TU II (31 out 14)

fazes

destino não existe, és tu que o forjas

apagas

proíbes

a cada dia em que escolhes ou que deixas

insistes

escondes

que escolham por ti e que te fechas

expandes

multidões.

no mesmo espaço seguro dessas corjas.

turbamultas.

alegras

se a consequência vem e então te arrojas

amargas

prazeres

no sofrimento ou desagradáveis pechas

mágoas

ironias

cravado o coração de muitas frechas

saudades

escorres.

foi resultado em que a ti mesmo alojas.

desces.

individual

se a decisão tomaste, a culpa é tua

exclusiva

perdes

se a ela te entregaste, também o é

ganhas

castigo.

não cabe a outrem real responsabilidade.

rancor.

sobrenada

pois se em indecisão tua alma flutua

afunda

mente

não é culpa dos mentores de tua fé

ideia

sagrada.

já que a aceitaste, afinal, como verdade.

inconteste.

SOMENTE TU III

incúria

por isso, só a ti cabe a decisão

hesitação

rancor

e não te deixes levar pelo despeito

carinho

tolice,

culpar os outros é bem fatal defeito,

preguiça,

instinto.

deixa que os passos te guie o coração.

espírito.

dificuldade,

e se tua vida é pura indecisão,

tropeço,

afirmação

suas consequências tem pleno direito

insistência

ato

de exigir os resultados de teu feito

descaso

desdém.

ou, ao contrário, são reflexos de inação.

indolência.

cerebral lavagem,

por pior tenha sido a educação,

formação,

atitude,

por mais podada que te fosse a iniciativa,

revolta,

aceitação.

no fim das contas, houve assentimento.

aquiescência.

despotismo

aceita então a racha do bordão

cálice

reincidência

nele te apoia sem mais recidiva

recalcitração

escolha.

e busca teu fado refazer neste momento.

deiscência.

REGRAS DA VIDA XIX

Não vivas no passado, já se foi além

do teu alcance, embora ainda te pertença,

quer por saudade, quer por malquerença,

quer por desejo de o reviver também...

Se é por remorso que o revês, porém,

é coisa inútil: desfazer não podes

o que uma vez fizeste e que sacodes

mil vezes de tua mente, com desdém...

E torna a perseguir-te, quando a guarda

rebaixes por momentos. Compensa, se puderes,

mas desmanchar não podes... Reviver

os momentos felizes é inútil salvaguarda

igualmente. Faz o presente o alvo dos quereres,

porque ele foge e rouba-te o prazer...

ETAPAS I (2002) [para mário régis sudo]

Somente tu escolhes, não te iludas.

E não culpes a ninguém pelo destino:

nem a Deus, nem a humano desatino.

Foi a própria visão, em que te escudas,

essa mesma razão, em que te esmeras,

esse teu julgamento, em que confias,

essa visão do mundo, em que teus dias

refletes, essas bênçãos por que esperas,

que te trouxeram ao ponto em que hoje estás.

Se te fizeram mal, tu permitiste;

se mal fizeste aos outros, é tua a culpa.

Só a natureza humana te desculpa,

porque sempre encruzilhadas acharás,

para lugares bem diversos dos que viste.

ETAPAS II – 01 nov 14

Sem dúvida a vida é por etapas feita

e nunca medes as consequências de teus atos;

se não escolhes, a ti escolhem fatos

e o próprio bem se ressente da desfeita;

por bem ou mal, as sementes que se deita

vão germinar e então encher-te os pratos

ou só urtigas surgirão em matos:

tua própria escolha as aceita ou as rejeita;

mas as etapas sempre chegam, realmente,

em lenta ou rápida intercalação,

que a vida não quer sonho, porém pão

e fluem os anos de forma inclemente,

para uns e para outros, de igual sorte,

em vidas breves ou de longo porte...

ETAPAS III

Caso te encontres num emaranhado

ou num dédalo qualquer, sem ver saída,

sempre é possível fazer nova investida

contra as paredes em que estás encarcerado;

porque algum sulco já foi determinado

até o fim da melodia contida,

porém não é uma gravação tua vida,

na qual foste inserido no passado.

Bem ao contrário, é árvore de decisões:

a cada instante, nova encruzilhada,

num verdadeiro labirinto de fractais;

que há mil caminhos nessas procissões

e a cada escolha será modificada

uma outra chance, sem retornar jamais.

ETAPAS IV

Não se medem as etapas por teus anos,

mas por humores de teu pensamento;

deixas aos poucos da criança o julgamento

e adolesces como todos os humanos;

túneis de vento a insuflar arcanos,

desilusões que te moldam o sentimento

de um jovem adulto em um só momento,

influenciado por desejos soberanos...

Mas só percebes a passagem das etapas

depois de completadas as moções,

já constituídas as modificações,

já perlustrados os diferentes mapas:

não ficas velho quando velho o corpo vires,

mas tão somente quando velho te sentires...

HALLOWE’EN I – 2 NOV 14

DIZIAM OS ANTIGOS QUE UMA VEZ POR ANO

ERA POSSÍVEL COM OS MORTOS SE ENCONTRAR;

EM ALGUNS PONTOS, QUE CHEGAVAM A BROTAR

DAS SEPULTURAS PARA UM BAILE INSANO.

ATÉ OS SINOS ALI TANGIAM, SEM ENGANO,

PARA ORIENTAR OS FALECIDOS DO LUGAR:

QUE TORNASSEM SEM MALÍCIA, A REENCONTRAR

OS SEUS QUERIDOS AINDA EM CORPO HUMANO.

MAS O TEMOR DOS MORTOS É TAMANHO!

E DESSE MODO, OS BUSCAM ENCERRAR

EM CRIPTAS, CATACUMBAS, SEPULTURAS,

COM GROSSAS LÁPIDES, PARA MELHOR GANHO,

OU EM GAVETAS IMPOSSÍVEIS DE QUEBRAR:

QUE NÃO RETORNEM CHEIOS DE AMARGURA!

HALLOWE’EN II

ENTRE OS CELTAS, CELEBRAVAM O SAMHAIN,

QUE DEU ORIGEM AO HALLOWE’EN ATUAL,

CONFUNDIDO COM UM NOVO FESTIVAL,

EM QUE DUENDES E BRUXAS TAMBÉM VÊM;

E ASSIM SE FANTASIAM OS QUE CREEM

E OS QUE NÃO CREEM NA FORÇA DESSE MAL,

QUE OS MAUS ESPÍRITOS NÃO DISTINGAM, AFINAL,

QUEM ERA UM GOBLIN DE QUALQUER HUMANO QUEM...

E ATÉ OS MORTOS FICARIAM CONFUNDIDOS,

QUALQUER QUE FOSSE ENTÃO A SUA APARÊNCIA

E DESTARTE NÃO NOS PODERIAM FAZER MAL;

MAS TAMPOUCO ENCONTRAR SERES QUERIDOS,

POR MAIS QUE OS PROCURASSEM NA INSISTÊNCIA

DESSA NOITE SEM REPOUSO NATURAL...

HALLOWE’EN III

CONTUDO OS NOSSOS ANCESTRAIS ROMANOS,

IGUAL QUE OS GREGOS, PRATICAVAM CREMAÇÃO

E MESMO OS CELTAS DA VELHA RELIGIÃO

E IGUAL COSTUME MANTINHAM OS GERMANOS

OU ADOTARAM MESMO OS ANTIGOS IRANIANOS,

ANTES DE ZOROASTRO E SUA NOVA PREGAÇÃO,

TORNANDO O FOGO SAGRADO DE ANTEMÃO,

TORNADO IMUNDO POR QUAISQUER RESTOS HUMANOS.

TAMBÉM NA ÍNDIA, ATÉ HOJE SE PRATICA

E SÃO OS CORPOS SOBRE PIRAS COLOCADOS,

PARA DEPOIS NO GANGES SER LANÇADOS,

REDUZIDOS ÀS CINZAS QUE O FOGO PURIFICA

E SÃO POR ELAS OS PEIXES ALIMENTADOS,

QUE CEDO OU TARDE ACABARÃO POR SER PESCADOS...

HALLOWE’EN Iv

FOI UMA ERRÔNEA INTERPRETAÇÃO CRISTÃ

QUE LEVA OS MORTOS A LANÇAR NA SEPULTURA.

DISSE SÃO PAULO, EM SUA EPÍSTOLA PURA,

QUE CONSERVAR A CARNE É COISA VÃ.

SEMEIAM-SE CORPOS EM DIÁRIO AFÃ

E A CARNE SE DISSOLVE NESSA AGRURA,

COBERTA PELA TERRA EM CASA ESCURA,

MAS DEVORADA POR VERMES OU POR RÃ.

PORÉM NÃO SÃO ESSES CORPOS QUE RESSURGEM.

DISSE SÃO PAULO: SEMEIA-SE CORPO ANIMAL,

PORÉM RESSURGE UM CORPO ESPIRITUAL.

À DECOMPOSIÇÃO MORTE E ENTROPIA URGEM,

MAS É DISTRÓPICA A RESSURREIÇÃO FINAL,

ATÉ O CLARIM QUE SEPARE O BEM DO MAL.

HALLOWE’EN v

FORAM OS EGÍPCIOS A INVENTAR A SEPULTURA;

MADEIRA FALTAVA PARA CORPOS CREMAR;

QUANDO VIAM O VENTO OS DESENTERRAR,

ESTAVAM OS MORTOS RESSEQUIDOS EM AGRURA,

COMO MÚMIAS NATURAIS, A CARNE DURA

PELA AÇÃO DAS AREIAS, A ESGOTAR

CADA GOTA DE LÍQUIDO A LHES SUGAR

E A POUCO E POUCO O COSTUME SE CONJURA

DE ENROLÁ-LOS EM FAIXAS E OS DEPOR

NAS PRATELEIRAS DE MASTABAS COLETIVAS;

ALI ESCRAVOS QUATRO SÉCULOS OS JUDEUS

ADQUIRIRAM IDÊNTICO HÁBITO PROTETOR.

COMO CREMÁ-LOS COM ÁRVORES TÃO ESQUIVAS?

E OS ENTERRAVAM COM MORTALHA E VÉUS.

HALLOWE’EN Vi

NÃO POR ACASO, INICIALMENTE ERAM OS CRISTÃOS

NÃO MAIS DO QUE HEBREUS FILHOS DE HEBREUS;

FOI SÃO PAULO, EM INSPIRADOS TEXTOS SEUS,

QUE O CRISTIANISMO ESTENDEU PARA OS PAGÃOS;

MAS O COSTUME PERDUROU DE INUMAÇÕES,

TÃO SOMENTE POR HERDADO DOS JUDEUS,

JUSTIFICANDO ATÉ GESTOS SANDEUS,

AO CONSAGRAR OS OSSOS DOS IRMÃOS.

E EM CADA ALTAR SE INTRODUZEM FRAGMENTOS,

ESPERANDO DO INFELIZ SANTO OS PORTENTOS

DE À EUCARISTIA AJUDAR A PRESIDIR,

ESCAPULÁRIOS OSTENTANDO COM RESPEITO,

NEGANDO AOS MÁRTIRES ASSIM O DIREITO

DOS POBRES OSSOS ALGUM DIA REUNIR...

RENÚNCIA I (3 NOV 14)

Vou transformar meus dedos numa rede,

prendendo nela o tempo, sem demora;

mil filamentos brotarão na mesma hora

em que a captura junto a mim acede;

então meus dedos se refilam, numa sede

de poema e de serragem feita aurora;

não pode o dia se evadir de tal escora:

sou dele rei que liberdade não concede;

pois não darei ao tempo a liberdade

que assim suplica, porém vou retê-lo,

firme em meus dedos, triste prisioneiro

que ao invés de conduzir-me à mortandade,

será levado a envelhecer primeiro,

enquanto eterno permaneço em meu desvelo!

RENÚNCIA II

Escorre o tempo como quente gelo

entre meus dedos, mas assopro nele

e faço outra vez com que congele,

em minha perene ânsia de retê-lo;

dele retiro a força do cabelo:

que a calvície somente ao tempo sele;

meus dentes guardo e só caem os dele:

enfeia o tempo e me conservo belo.

Mas ai de mim, se confundir beleza

com o dom facundo que dá a mocidade!

E permaneço, destarte, impertinente,

que só o tempo, a lixar-me com lerdeza,

a pouco e pouco me tornará experiente

para fruir esta vida em saciedade!

RENÚNCIA III

Um tempo capturei nos capilares,

porém, ao mesmo tempo, me prendi.

Não tenho dedos. Com eles eu teci

minha arapuca para os dias singulares,

que já esmaguei em gotas ancilares,

de tal modo que meus dias expandi;

bem mais do que o aparente assim vivi,

usufruindo dias felizes e pesares;

meus dedos fervem nessa agitação

em que o tempo férvido agoniza

e se busca libertar dessa armadilha!

São mil horas a forjar em brotação,

a vida feita orvalho e calma brisa,

enquanto o tempo preso me perfilha...

RENÚNCIA IV

Aos poucos, por tal rede sou envolvido:

em meus olhos já rebrilha a luz do tempo

e se amortece, qual inerme passatempo;

o tempo guardo, sou de mim mesmo esquecido;

assim ao tempo acabo devolvido:

não sou mais do que uma rede de retempo,

um tambor a bater em contratempo,

na longa noite, pelo tempo desnutrido.

E como o tempo não passo, sou passado,

vivendo nesses dias meu pecado

de ser do tempo embaixador e templo!

Diante do espelho, vejo o tempo contemplado

e não meu rosto, qual natural exemplo:

gasto o futuro, meu presente não contemplo!

ESTREMUNHOS I (4 NOV 14)

Os minutos se escoam, em entropia;

é devorada lentamente a energia

e de minha vida se procede a autópsia:

a vida é morte que vive só no tempo.

Mais do que eu, os minutos sobrevivem;

em outras vidas seus iguais revivem;

de mil anos procede-se a biópsia:

um glockenspiel tocando em contratempo.

O tempo é que perdura, não o eu;

extinta a areia, a aurora se perdeu;

fora do tempo, perde-se a magia.

O eu apenas vai, discretamente,

para a ausência do tempo, docemente,

em que sequer uma auréola reluzia.

ESTREMUNHOS II

Será que existem minutos, realmente

e ainda menos os segundos, que discorrem?

Por que são doze as horas que nos correm,

Que em vinte e quatro transformamos, finalmente?

Porque num dia, falando francamente,

não são vinte e quatro horas que o percorrem;

adaptam-se os minutos que ali escorrem

para que a vida transcorra diariamente.

E nem sequer um mês completamente

é divisível por trinta e tantos dias;

irregulares são as datas que assim vias.

A precessão dos equinócios totalmente

desencadeou a final desconjunção:

quase seis horas sempre sobram de antemão!

ESTREMUNHOS III

Por que o ano se divide em doze meses?

Só porque os sumérios decidiram,

pois doze deuses no firmamento viram

atribuir a cada um seu mês de preces?

O ano lunar, se a seu fluir ainda prezes,

quando outras crenças o coração te inspiram,

na formação feminina a que assim giram,

não se esgota em doze meses, porém “trezes”!

Nessa balbúrdia perante o ano solar,

por que o dia em doze horas dividir:

devoção a Ishtar ou qualquer deusa lunar?

Não deveriam as horas serem dez,

conforme os dedos em que as podes aduzir,

neste sistema decimal das atuais fés?

ESTREMUNHOS iV

Desejo um dia mais longo para mim,

com quatro horas perdidas para o sono

e vinte e quatro para o desabono

dos meus trabalhos ou poetar, enfim!

Pois tantos vejo desperdiçar assim

as tantas horas de que cada um é dono,

como se fossem deuses em seu trono

e o tempo inteiro convocassem com clarim!

Ah, se eu pudesse, sairia a recolher

as pobres horas que perderam por aí

e pelas ruas transportar em sacos

cheios as horas que pudesse ver,

que se prendessem em meus dedos, qual siri,

encolhidas no abandono dos buracos!

GEMIDOS MUDOS I (5 NOV 14)

A DOR GEMIA NO MEU PEITO, MAS NINGUÉM

A ESCUTAVA OU A ESCUTAR NÃO SE ATREVIA

A ATENÇÃO DANDO A OUTREM QUE GEMIA

POR DOR MUITO MENOR DO QUE SE TEM.

NÃO A ESCUTAVA QUEM DEVIA E NEM

DAVA ATENÇÃO QUEM A ELA DEVERIA,

QUE A DOR ALHEIA ATENDER SE PREFERIA

QUEM MINHA DOR PODERIA OUVIR TAMBÉM.

TALVEZ PORQUE, ME OLHANDO, NÃO OUVIA

QUALQUER MURMÚRIO OU SUSPIRO DO GEMIDO

E ASSIM AO MUNDO MEU SUSPIRO NEGARIA.

E SÓ POR ISSO É QUE DEIXOU DE SER OUVIDO

ESSE GEMIDO QUE A DOR APENAS EMITIA,

INERME A DOR, QUAL INFANTIL VAGIDO.

GEMIDOS MUDOS II

A DOR QUE MORA DENTRO DO MEU PEITO

TEM EXISTÊNCIA QUASE INDEPENDENTE.

JÁ QUE RECUSO EXPOR-ME A TODA A GENTE

E SUPORTAR PREFIRO, EM VÃO TREJEITO.

A DOR MAIOR OU MENOR QUE TEM DIREITO

DE O MUNDO ENCARAR EM ALEGRE FRENTE,

EVITA INCLUSO SE DECLARAR DOLENTE,

POR PURO ORGULHO DE OCULTAR DEFEITO.

É SÓ A DOR QUE ENTÃO SE FORTALECE,

A CADA VEZ QUE DOR MAIOR SE SENTE

E SE RECUSA A UM SUSPIRO MAIS PROFUNDO

E NEM SEQUER AOS SANTOS ERGUE PRECE,

NA DESCONFIANÇA TOTAL QUE SE PRESSENTE

DE QUALQUER INTERESSE POR SEU MUNDO.

GEMIDOS MUDOS III

CONTUDO A DOR SOBRENADA EM AGONIA

E SÓ CONSEGUE REVELAR RESSENTIMENTO

POR QUEM DEVIA DEMONSTRAR ASSENTIMENTO

E A PRÓPRIA DOR APENAS AVALIA.

E A DOR DE OUTREM ATÉ PARTILHARIA,

POIS NÃO EMPATIZA COM O EXATO JULGAMENTO

E ENCONTRA NOUTREM MAIOR PADECIMENTO

PORQUE ESSA DOR QUE EU SINTO, OCULTARIA.

ASSIM MINHA DOR BEM FUNDO AO PEITO GEME

E SÓ BORBULHA EM CARDÍACO PALPITAR,

ENQUANTO A MINHA VAIDADE A ENLANGUESCE.

PORQUE MOSTRAR MINHA DOR É O QUE SE TEME,

A SUA TOTAL FRAGILIDADE A NEGACEAR,

ENQUANTO A DOR O SEU GEMIDO ESQUECE.

EDULCORANTES 1 (6 NOV 14)

“Nada há de novo sob o sol”, já Salomão

No seu Eclesiastes pregou e nos ensina;

Como aranhas no âmbar da resina,

Sinto-me preso ante a civilização.

“De fazer livros não há fim”, nessa ocasião

Nos disse o rei, melancólico em sua sina;

“Muito estudar é o enfado da carne” e minha crina

Se transformou em mil fios brancos de inação.

Muito estudei e já escrevi demais:

Cada verso de minha vida um pouco rói,

Nas palavras a infinidade a desfazer,

Sem ilusão de que se tornem imortais,

Pois se o melhor que havia a ser dito já o foi,

Por que razão eu ainda insisto em escrever?

EDULCORANTES 2

Eu não plagio, mas sei que já foi dito

E repetido cada humano sentimento;

Já é maduro bastante o julgamento

Para saber que a ninguém hoje concito.

O que eu escrevo de coração aflito

Só será aceito pelo consentimento

De quem já experimentou igual evento

E descrito se percebe ou até maldito.

Não o que digo, mas o que outrem sente

Que pode sacudir-lhe as profundezas,

Quando se sente com algum verso ressonar,

Pois não copio, mas na alma trago rente

O que milhares sofreram de tristezas

E que podem em si mesmo reencontrar.

EDULCORANTES 3

Nunca aceitei esse medíocre ditado

De que valha mil palavras uma imagem;

Bem ao contrário, não passa de miragem

De que não pode ser o olhar emancipado.

O quadro está ali ou está o fotografado,

Pronto a ser interpretado por visagem;

Não é essa externamente uma voragem,

Mas encadeamento em teu peito despertado.

São mil palavras que só a ti pertencem,

Bem diferentes são dessas sentenças

Com que outrem descreveria igual figura;

São teus próprios sentimentos que te vencem,

Sobrepondo à imagem o quanto pensas,

Nelas a ver o horror ou a formosura.

EDULCORANTES 4

Afirmo o oposto: que palavras valem

Para evocar bem mais de mil imagens;

A tua mente já está cheia de visagens

Que ante a palavra gritem e não calem.

Sei que há palavras que em nada te abalem:

Se eu te falar em almocreves ou estalagens,

Com dicionário talvez interpretes tais passagens,

Sem que à tua experiência real sequer te falem.

Mas há palavras de vigor e de poder

Que te permitem teu passado recorrer,

Que despertam os perfumes de tua infância,

Velhos sabores no palato a perceber,

O tato áspero ou suave da distância

Que muitas vezes pensaste já esquecer...

EDULCORANTES 5

Se, por exemplo, eu te disser “amor”,

Queres palavra de maior potência?

Quantas imagens evoca da experiência

E quantas vês, se eu te falar de “horror”?

Se eu mencionar a “sorte”, em meu pendor,

Irás lembrar do azar com suficiência,

Ou da boa chance que surgiu na tua vivência:

Quem indolente reage a tal valor?

Se eu te falar então da feroz “guerra”,

Surgem imagens vistas nos jornais,

Em profusão ou em narração que encerra

Qualquer revista, lida há tempo atrás;

E se falar de “paz” ou de “tristeza”,

De “depressão”, de “família” ou de “beleza”?

EDULCORANTES 6

Essas palavras são edulcorantes

Sobre milhares de miragens sobrepostas,

Imagens de prazer ou de desgostos,

Que o sabor quase invocam como dantes.

Porém imagens realmente interessantes

Que a teu presente se façam superpostas

Ou que possam despertar-te novos gostos,

Repetitivas são – e raras nos seus guantes!

Porém se escrevo, não te faço imposição,

Nem pretendo te expor à minha influência;

Somente deixo correr letras que se mudem

Em pensamentos, mas por pura sugestão,

Que te despertem concordância ou divergência,

Ainda que a mente para ti desnudem.

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com