VOZES SILENCIOSAS

VOZES SILENCIOSAS I (2003)

As cabeças se erguem da plateia,

tal como plantação de cogumelos:

rígidas trufas perdidas em desvelos,

atentas ao esplendor dessa epopeia.

Rigidamente se erguem as cabeças,

mal ousando aplaudir, por mais que o queiram:

sua aquiescência pelo olhar inteiram

e é esforço vão que tal plateia aqueças.

E a rigidez acaba sobre o palco:

perdem os músicos sua espontaneidade,

(que haviam ensaiado tantos dias...)

vê-se a ribalta como um catafalco,

em que defuntos, com naturalidade,

expõem ao público a mudez das ironias...

VOZES SILENCIOSAS II

Aprenda a construir seus planos hoje:

abra sua estrada enquanto dura o dia...

Quantas vezes tais conselhos eu ouvia,

sem notar até que ponto se nos foge

esse momento sutil, o breve instante

em que o futuro em passado se transmuda,

esfarelando os pés; e a trilha muda

se abre à nossa frente, em desafiante

proposta a nova escolha. Como é inútil

viver para o presente, pois desbasta

esse futuro, que rodopiante morre!...

Melhor é planejar, que não é fútil,

pois chega a chance e então logo se afasta:

vira a ampulheta e areia nova escorre...

VOZES SILENCIOSAS III – 31 jul 2010

Sentado à mesa, escuto os ecos

das vozes do outro andar, estando só;

escuto os ecos da vida que foi pó;

escuto as mágoas com meus olhos secos.

Devoro os ecos em pequeninos nacos,

a maravalha cepilhando com o enxó

destes meus dedos gastos, sem ter dó,

destes meus ossos que quebrei em cacos.

Sentado diante à mesa, os ecos ouço,

manifestando para mim a exclusão

do que a vida negou-me no passado,

que a cada dia que passa, não remoço,

porém percebo os ecos da paixão

que geme e grita no coração cansado.

VOZES SILENCIOSAS IV

Eu tenho para mim que essa promessa

não se vai cumprir jamais. É a cenoura

que se abana à alimária, a luz que doura

uma semente seca em capa espessa,

que me impede atingir o fundo dessa

fonte ilusória que meu bem agoura,

o fado azul que no meu peito estoura

a esperança solerte que não cessa...

Somente sei que vou seguir tentando,

que não desistirei, não importa a mágoa,

que vou morrer em pé e não de joelho,

mesmo que viva apenas trabalhando

nessa entropia de cada gota d’água

que ainda bebo, embora sendo velho.

VOZES SILENCIOSAS V

Na multidão de rostos desta foto

eu vejo as fêmeas que jamais terei;

pois se quisessem, o que fazer nem sei,

por mais forte que ainda seja o corpo roto...

Lentamente se revolve o maremoto

em que meu canto, aos poucos, esgotei;

por novo amor não mais eu suspirei;

por longos anos, apenas versos doto

com meus restos de fadiga e de vigor;

eu quis o mundo ter e tive poeira;

quis as bênçãos beber e bebi mágoa;

meus dons compartilhei, ganhei rancor,

no fundo de meus olhos a caveira

que ainda me espreita em cada gota d’água.

VOZES SILENCIOSAS VI

Eu sou o mito das mais estranhas plagas;

sou o Cisne de Leda, o Minotauro,

a Chuva de Ouro de Klimt, um bom centauro,

sou a Serpente do Mar furando as vagas,

eu sou Ildaba e Inanna, sou as Bagas

de Ouro que algures jazem no deserto mauro,

sou El Dorado, Cíbola, o dinossauro

de Loch Ness, a Dança das Adagas;

sou Quetzalcoatl, Heimdall, Thor,

sou Brahma e sou Djinn, eu sou dragão;

do mar o fundo habito, sou vampiro,

sou Amon-Rá e Osíris e em meu calor

renascem Manitós, Banshees, Papão;

na inconcebível luz, Dionyso viro!...

VOZES SILENCIOSAS VII

Abro a janela e o vento lambe as sombras

dos antigos habitantes desta sala;

minhas narinas se estufam do que exala

desses espectros tecidos nas alfombras...

Já estiveste aqui e assim me assombras;

o teu fantasma junto a mim se abala;

a antiga voz na mente não se cala,

com passos e suspiros inda me adumbras.

Adornada de ti está minha face,

numa tremenda orgia de lembranças,

vozes inquietas, o medo dos derrames;

mas só lembro de ti neste repasse,

em tua leve presença de esquivanças,

alma penada que à minha ainda reclames...

VOZES SILENCIOSAS VIII

A noite é calma quando chega o frio;

as almas se introduzem nas lareiras,

os fantasmas se ocultam nas caveiras

e enquanto os outros tremem, canto e rio;

tão diferente de quando chega o estio...

dançam os outros e fazem brincadeiras,

os namorados nas carícias das esteiras,

porém eu sofro e não dou sequer um pio...

Com medo do calor, fico escondido,

por que o verão não descubra onde me encontro

e venha me assolar com seu açoite;

onde os demais se alegram, sou ferido;

para quem quiser ver, sou estranho e monstro

e me atribulo quando é quente a noite...

VOZES SILENCIOSAS IX

Pouca coisa não me serve de motivo

para lançar novas linhas ao papel,

canto da guerra e do fruir do mel;

de um gosto ou doutro, assim me faço ativo;

eu vejo os outros a queixar-se do inativo

modo infeliz em que passam dias de fel;

eu apenas dou aos sonhos seu quartel

para passarem através do verso o crivo.

Pois sou assim. Mordo o ar a cada dia

e alguma coisa capturo e logo a empilho,

sem ter tempo sequer para a rever

e nem recordo mais do que escrevia

até o momento em que meus dedos de andarilho

se assombram com o rascunho que vão ler...

VOZES SILENCIOSAS X

Em cada coração mora um maldito

pendor de seduzir. O tempo passa,

em prelúdio de penúria ante a desgraça

e tal desejo se torna mais aflito.

Não se vive, afinal, senão o grito

que brota das entranhas e repassa

por maus caminhos o quanto a vida caça

e enfim aceita o desprezado por bendito...

Ainda conservo o afã de seduzir

meus contatos invisíveis e eletrônicos

para que enviem emoções que me sustentam

e assim ainda me iludo, ao construir

estes sonetos de mudos desarmônicos

que só a mim seduzem e alimentam.

VOZES SILENCIOSAS XI

Ela chegou, com um sorriso de ameaça,

silenciosa de mel, furiosa como a luz;

sua dentadura cintilante me seduz

e vejo o sangue nos lábios que arregaça.

Não que pretenda, de fato, minha desgraça;

bem ao contrário, seus belos olhos nus

refletem-me promessas. É minha cruz

temê-los sempre, evitar que algo se faça.

Passou-se o tempo da ínclita ousadia.

Eu me amansei. Somente nestes versos

sou ainda temerário... Na verdade,

passou-se o tempo que em mim mesmo cria,

limitando-me a copiar sonhos dispersos,

escoando o tempo até a mortalidade...

VOZES SILENCIOSAS XII

Ah, luz de estrela, como tua falta eu sinto!

Bem de manhã, quando renovo a vida

por um tempo de sono interrompida,

teu brilho eu vejo em pleno azul do céu!

Luz de Estrela, teu cintilar pressinto

quando se deita o Sol, por ter cumprida

essa tarefa de sua eterna lida:

teus olhos vejo no negror do véu!...

Luz de Estrela, tua falta me persegue,

risonha mágoa, triste rebuliço

que me aferventa em gélido fulgor.

Luz de Estrela, que teu brilho não me negue

a antiga seiva azulada do teu viço,

em teu silêncio da ilusão de amor!...

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com