PACO DE LUCÍA & MAIS

Com a próxima série estou quebrando a ordem quotidiana, devido a meu atraso permanente, colocando a série de hoje, 26 de fevereiro, consoante à referência da ocasião, mas a seguir será retomada a partir de 11 de fevereiro. Quebrei também a regra de não me referir aos eventos da vida diária, já que este me causou grande impacto. Boa leitura!

PACO DE LUCÍA I – 26 FEV 14

Fui informado pela televisão

do trespasse de Paco de Lucía,

o guitarrista que prazer me transmitia

e em quem pensava haver mais forte coração.

Não é de meu feitio a exaltação

de quem a morte mais recente eu assistia.

Esta notícia, contudo, me atingia,

bem mais pesada que as outras da ocasião.

Não que nele percebesse um super-homem,

pois foi apenas um virtuoso instrumentista,

combatendo em gentileza os estridores.

Somente espero que seu exemplo ainda tomem

esses medíocres por quem a mídia ainda insista,

em sua ganância, a denominar compositores.

PACO DE LUCÍA II

Pois se limita essa vasta maioria

a batucar nas cordas da guitarra

e quando, por acaso, assim se amarra

qualquer plagiada e pobre melodia

ou quando alguma letra assim gemia

sobre os compassos de qualquer antiga barra,

é nas faces exangues que ele escarra

de quem compôs inicialmente essa harmonia.

Narciso Yepes é quem escuto agora,

a tocar de Luys Milán as seis Pavanas,

a Fantasia de Madarra e, de Narváez,

as melodias espalhadas pelo outrora,

no aparelho este disco já há semanas,

as gravações a repetir que gosto mais.

PACO DE LUCÍA III

Minha própria regra quebrei, de certo modo,

de não seguir o estouro da manada:

muita homenagem certamente foi prestada;

de competir com os outros me incomodo.

Prefiro aprofundar-me nesse lodo

da história obscuramente registrada;

de Diego Pisador por quem lembrada

a Villanesca que compôs em velho nodo?

Poucos recordam também de Gaspar Sanz,

da beleza que nos traz a Suíte Espanhola;

mais conhecido será o Padre Soler,

e as cantilenas dos poetas catalães,

enquanto aqui preferem ritmos de Angola,

sem que as canções de lá saibam sequer...

PACO DE LUCÍA IV

Talvez devera, no meu remordimento,

procurar as gravações deste Lucía,

que em meu antanho tanta vez ouvia

e ainda conservo no acervo do momento.

Mas não me sinto inclinado a cumprimento

desta pesquisa que a discoteca me daria,

pois encontrar talvez sequer conseguiria:

é muito vasto o que reuni de suplemento.

Mas cada nota que Narciso ora me tange

para mim soa qual acorde de Lucía;

Em devedê de Antonio Gades poderia,

recordar fácil o seu perfil de alfanje,

que no vibrar da guitarra se assistia,

nesse flamenco que vem de Andaluzia.

POESIA DO SILÊNCIO I – 11 FEV 14

ALGUMAS VEZES ME DISSERAM

QUE APENAS QUERO SER LIDO

E SER ASSIM CONHECIDO

PELOS POUCOS QUE ME LERAM;

MAS O QUE NÃO ENTENDERAM

OU QUIÇÁ NÃO TENHAM CRIDO,

QUE SER NÃO QUEIRA ENTENDIDO

POR QUAISQUER QUE ME ESCOLHERAM,

MAS QUEIRA APENAS QUE OS VERSOS

SEJAM SEMPRE COMPREENDIDOS,

NO SENTIDO DE ASSUMIDOS;

NÃO MAIS POEMAS DISPERSOS,

MAS TOTALMENTE ENGOLIDOS

POR SEUS SONHOS INCONTIDOS.

POESIA DO SILÊNCIO II

O MEU NOME NÃO IMPORTA

POR GRANDE FAMA OU PEQUENA;

O QUE IMPORTA É A CANTILENA

QUE NAS ALMAS SE COMPORTA,

IGUAL QUE PASSE EM RETORTA,

FERVIDA NA ALHEIA PENA,

NA MORDIDA QUE ENVENENA,

NESSA DOR QUE NÃO SE ABORTA.

QUE SEJA O VERSO BEBIDO

POR OUTREM NO INTEGRALMENTE

E SÓ AOS OUTROS PERTENÇA,

TAL QUAL SEU PRÓPRIO GEMIDO,

QUANDO DA IDEIA PREMENTE

CADA QUAL SER DONO PENSE.

POESIA DO SILÊNCIO III

QUE SEJA O VERSO DESTARTE

FRAÇÃO DO SEU SENTIMENTO,

QUE SE OLVIDE O JULGAMENTO

DE QUALQUER OBRA DE ARTE;

QUE DA ALMA FAÇA PARTE,

NO DEGLUTIR DO MOMENTO,

NUM COMPLETO INTERNAMENTO

E MEU NOME SE DESCARTE;

QUE NEM SEQUER ME RECORDEM,

NEM SE LEMBREM DE TER LIDO;

QUE O VERSO SEJA DE TODOS,

AMARFANHADO EM DESORDEM,

QUAL SE NOVO TENHA SIDO

NOS MAIS DIVERSOS DOS MODOS.

POESIA DO SILÊNCIO IV

SEJA O VERSO DO INCONSCIENTE,

TAL QUAL IDEIA SECRETA,

QUE GERE ILUSÃO DILETA,

BROTADA DA PRÓPRIA MENTE,

NO PLÁGIO MAIS COMOVENTE;

QUE ALHEIA RAZÃO DISCRETA

IMAGINE SER COMPLETA,

CONCEBIDA INTERNAMENTE,

JÁ QUE O IMPORTANTE É A IDEIA,

QUE PELO MUNDO SE ESGALHE,

SEM QUE SAIBAM DE ONDE FLUI,

DANDO ORIGEM À EPOPEIA,

QUE NO MEU POVO SE ESPALHE

DEPOIS QUE A VOZ ME FUGIU.

SOMBRAS ERRANTES 1 – 12 fev 14

Sei que não sou quem poderia ter sido

e que não pude fazer quanto devia

e tanto fiz que nunca deveria,

de fariseus deveres revestido.

A minha presença na Terra é um estalido,

não mais que triz que o vidro percorria,

alma truncada pela nostalgia,

um sonho apenas que nem devia tido.

Em todo o meu trabalho revolvido,

em todos meus enganos rebolcado,

filho enjeitado da perplexidade,

que em cada iniciativa foi contido:

sem ter nobreza, foi guilhotinado,

em seu martírio sem odor de santidade.

SOMBRAS ERRANTES 2

Tentei ser luz no meio da fogueira,

porém menos que as chamas crepitava;

tentei ser sombra, mas não me espalhava

pelas paredes na escuridão caseira.

Pois só no escuro seria luz fagueira,

pequeno íris talvez, mas que espelhava;

sem haver lume, minha sombra não dançava,

escura luz na noite derradeira.

Pois quis marchar e aqui fiquei imóvel,

já que minha vela apenas bruxuleava

e tão somente consumi o meu pavio

Enquanto a cera inteira era solúvel

e em volutas caprichosas derramava

sobre o morrão que enegreceu o último fio.

SOMBRAS ERRANTES 3

Sei que também eu fui o inesperado:

não fui o que era, mas fui desconhecido;

cumpri minha pena sem ser desiludido,

vagueei oceanos sem me sentir mareado.

Não fiz o que podia em meu reinado,

porém fui rei do que não devia ter sido,

mil atributos que nem devia ter tido,

sem apanágio por que seja consagrado.

Ainda assim minha luz escura rebrilhou

e minha sombra brilhante denegriu,

fui sombra errante apesar da escuridão.

E minha luz ao próprio Sol desafiou,

rodando a lâmina brilhante que surgiu

na guilhotina de meu próprio coração.

BUSCA 1 – 13 FEV 14

Nem sempre as coisas simples procurei,

como as devia, talvez, ter procurado;

porém as frases que tenho declinado

do obscuro serem livres eu tentei...

Os dicionários nunca rebusquei,

na caça inútil de vocábulo desusado,

meu próprio vocabulário acostumado

espalhado pelos versos que deixei.

Sem um esforço por ser fácil aceitado,

nem buscando o erudito admirar,

tão somente registrei o que subia

das sepulturas de um cérebro afogado

nos mil reflexos de uma preamar

que a Lua apenas avistava e conduzia.

BUSCA 2

Também na vida não é que procurasse

somente me envolver com o complicado;

só de curioso, busquei ser informado

sobre as línguas e ciências que alcançasse.

Embora em história e geografia me enfronhasse

e ante a física me mostrasse interessado,

e meu viés na ciência química mostrado,

por matemáticas pouco amor mostrasse.

A inclinação pela arqueologia

foi por leitura de livros limitada,

o que igualmente ocorreu com a astronomia;

E em folclore, lendas e poesia,

naquela música que por clássica é chamada,

meus dedos empreguei quanto podia.

BUSCA 3

Mas não é que pretendesse ser melhor:

apenas tanta coisa me atraía!...

Pintores e escultores conhecia

bem mais até que especialista ou professor.

Para o teatro dediquei igual amor;

em seus meandros enfrentei a filatelia;

interessei-me por botânica e zoologia

e ante a cerâmica demonstrei algum vigor.

Mas sem dedicação. Não fui pintor,

meus instrumentos nunca a fundo eu estudei,

não fiz direito, igual meu pai queria.

Só versos faço, mas sem ser escritor,

porque esse tempo que tinha desgastei:

de três centenas de livros tradutor!

BUSCA 4

Não me parece que difícil seja,

por hermética ou castiça a minha leitura;

pareça embora, alguma vez, seja obscura,

se surrealista ou nefelibática se enseja.

Mas não é solipsista a sua andeja

vereda inquieta de singela agrura;

é a minha alma somente que tortura

e com pingos de tinta a vida beija.

Mais nada busco, nem a autenticidade;

sou o que sou e quanto sou, escrevo,

sem pretender qualquer mensagem transmitir.

Opino apenas, perante a humanidade,

nesse veloz redigir em que me atrevo

os labirintos da mente a diluir...

FACETAS XXVII -- A CONSOLADORA I – 15 JUL 06

Bondosa é essa mulher, que enfrenta os medos,

para acalmar os outros, que mais temem;

ela é uma fonte de força e seus segredos

conserva para si... Mas juntos tremem,

ainda mais, ao saber-se responsável

pelo andamento firme de seu lar,

com diligência enfrentado, em considerável

disposição com que o pavor quer afastar...

É como se espargisse segurança

a quantos a rodeiam, doce fada,

ilusionista da dor, em perfeição,

para manter quem ama na bonança,

por mais que sofra sua alma atribulada,

pela mentira que traz no coração...

A CONSOLADORA II – 14 fev 14

Porque ela sabe que os monstros são reais,

que pouca gente está disposta a ajudar,

seus interesses apenas a buscar,

que os generosos são pouco naturais

e que seus filhos encontrarão fatais

situações bem concretas a enfrentar;

não são fantasmas que se possam enviar,

num só piscar de olhos, ao jamais.

Porque ela sabe que, decerto, enfrentarão

muitas doenças e dores e acidentes,

por mais que deles os busque proteger

e que as tristezas constantes ali estarão,

mesmo que sejam nas relações mais previdentes,

buscando sempre o mais reto proceder.

A CONSOLADORA III

Porque ela sabe, à luz de sua experiência,

que não basta ser honesto e trabalhar,

mas que ardiloso se deve demonstrar

ante quem busque explorá-los com frequência.

Quanto mais industriosa a sua paciência,

tanto mais se buscarão locupletar

a própria bolsa, sem que prejudicar

a qualquer outro atrapalhe sua consciência.

Porque ela sabe que a dor é inevitável

e que o prazer é apenas transitório

efêmera toda a certeza na existência

e que a morte é um fator imponderável,

evitada somente pelo inglório

envelhecer e desgastar de sua potência.

A CONSOLADORA IV

Porque ela sabe, ao mesmo tempo, necessário

que se construa o vigor internamente

para enfrentar o mundo externamente,

nesse confronto que se faz diário;

que o mau caminho se apresenta perdulário,

em suas múltiplas facetas ante a gente;

que maus conselhos escutarão frequente

e que o final de muita senda é mortuário;

porque ela sabe que não basta consolar,

mas preparar para se obrar assim,

de tal modo a não cair em descaminhos,

que o bom futuro é apenas singular,

mas há mil atalhos falsos no sem-fim

que apenas leva a atoleiros e a espinhos.

A CONSOLADORA V

Porque ela sabe, mais ainda, que chorar

junto a quem chora demonstra mais amor

que estar presente ante o riso de calor

e que há esqueletos em cada festejar.

Foi já costume dos antigos colocar

qualquer cadáver enfeitado com primor

em um lugar à mesa, ao se dispor

os convidados presentes a um jantar,

como lembrança do destino mais comum,

a que ninguém consegue se escapar,

mesmo em períodos de paz e segurança,

nessa época de doenças sem nenhum

real antídoto para as pestes afastar,

nos quais a guerra fatalmente alcança.

A CONSOLADORA VI

Porque ela sabe que junto a nós há inimigo,

assassinos de sua própria sociedade;

pedofilia a pretender santa piedade;

nos rouba o fisco, de nosso imposto amigo.

De motoristas bêbados há o perigo,

dos vendedores de drogas a maldade,

de cultistas estranhos a impiedade,

sem que sequer no lar exista abrigo.

E é por isso que ela mente, ao consolar,

em seu afago apenas temporário,

nesse alívio que procura transmitir

e tanta vez sua obra vê frustrar

pelos acasos de um destino vário,

em cujo adiar ela busca se iludir...

ESPERANÇA I – 15 FEV 14

A esperança é brutal na permanência,

quando se adia de dia para dia,

quando se estica, se afina, se desfia,

mas nunca chega a romper a sua existência,

enquanto a vida permanece em subserviência,

fiel à espera que diariamente a assedia;

cada um esquece o momento em que vivia,

da própria vida real em abstinência,

tão só no aguardo do que possa acontecer

que, em geral, se espera seja bom,

como um convite ou notícia de bom-tom,

sempre no aguardo do esperado poder ver,

que então nos chega, qual bombom, doçura louca,

que pouco dura e então derrete na tua boca.

ESPERANÇA II

Porém insiste em apresentar-se essa esperança

e quem por ela espera, na verdade,

desespera de aguardar a realidade,

pois não se cumpre, mas de chegar não cansa.

A gente espera, com certeza de criança,

e a esperança, em sua futilidade,

apenas morde o cotovelo da saudade,

nessa ilusão de “quem espera, sempre alcança”.

Ah, sim, se alcança, mas não o que esperava

e muito menos por efeito da esperança:

é o nosso esforço que nós traz bonança;

pois só o trabalho toda a espera realizava,

e essa esperança sempre tira com a esquerda

o que dera com a direita... e nos deserda...

ESPERANÇA III

Quando um filho desaparece, simplesmente

os pais se prendem a um esgarço de esperança,

por um telefonema, que nunca a eles alcança,

da polícia ou raptor mais exigente...

Passam-se os dias, não há qualquer agente

que lhes repasse razão de calma mansa;

não surge a filha, mas da espera não se cansa,

não surge um corpo que à conclusão atente.

Ou é uma herança esperada que se adia,

não pela morte do finado, mas demanda

de outros herdeiros imaginários ou reais.

Ou o longo sonho de ganhar na loteria,

em que se gasta, a pouco e pouco, infanda

quantia, sem ver retorno nunca mais...

ESPERANÇA IV

Porque se espera o quanto não se tem

e quando acaso se realiza o esperado

que por tão longo fora desejado,

enferrujou-se o valor do antigo bem...

E quando o amor que se aguardou nos vem,

após décadas de espera, em vão cuidado,

algo falta ao coração atribulado,

por mais se finja ter sido igual também…

Contudo, ai de nós, sem esperança!

Igual dizia Vicente de Carvalho,

“disfarça a pena do viver, mais nada!”

Se não ficares só na espera da bonança

e não te furtes a manejar teu malho,

com o suor de tua fronte porejada!...

por um triz I – 16 fev 14

foi por um triz! falamos, sem pensar

no que possa ser um triz, de fato;

todos entendem do ditado seu boato:

qualquer perigo inesperado a se evitar

ou um bem que se obteve no pasmar

de um instante de puro desacato,

sem ao menos esperar por tal recato,

porém que veio em nosso colo repousar

enquanto um veloz triz é rachadura

que uma vidraça fende, sem piedade

e no caixilho, apenas, é que morre,

qual no teu corpo a cicatriz perdura,

embora possas ter felicidade

enquanto um triz pelo teu vidro escorre!

por um triz II

pois esse triz deixa marca permanente,

correndo rápido perante nossos olhos

e a alma inteira, esbatida nos escolhos,

também se trinca com estridor frequente;

pois no vidro, a rachadura é bem saliente,

talhando rostos e paisagens nos espólios

de uma miragem dos mais perfeitos fólios,

mas sendo adiada a quebradura finalmente.

também a alma, se rachada por um triz,

parece sólida, com somente cicatriz

que lhe atribui integridade renovada,

mas se desfaz, tal qual um chafariz,

por um novo sofrimento ou tremor gris

e se revela internamente esfacelada.

por um triz III

quando um prédio está sendo completado

lhe demarcam as vidraças com um xis,

feito com cal ou empapado giz:

que não venha esse vidro a ser trincado!

por cotovelo ou movimento descuidado

de alguém que nem sequer parti-lo quis,

mas distraído o tocou e, nesse triz,

um longo traço já correu descontrolado...

mas a alma não se vê e a proteção

que lhe dariam só dois traços cruzados

não a protege de qualquer ressentimento;

que aquele triz de veloz demarcação

já nos deixara por demais fragilizados

e em cacos feitos pelo desapontamento.

JOGO DOS REIS I – 17 FEVEREIRO 2014

Eu vou reunindo esses quadrados de papel,

formados numa pilha do meu lado,

para aguardar a hora em que, inspirado,

eu tenha gotas a pingar de mel ou fel.

Esses retângulos são moldáveis como gel,

em que posso lamentar o atribulado,

em que posso registrar ter sido amado

ou escandir-me em qualquer rima novel.

Eles ficam ali, na humilde espera,

sem nunca se queixar de frio ou poeira,

bocas famintas para o que nelas se inscreva,

enquanto a vida a contínua vida gera

e eu me contento em gravar a derradeira

frase irreal que a nada mais me leva...

JOGO DOS REIS II

Bastante simples é a palavra que eu esboço;

às vezes, é só um título que desperta

minha atenção para essa fenda aberta

sobre o quadrado que vazio me troça;

ou então, é a chave que se roça,

em conclusão de uma proposta incerta,

quando o verso anterior então se acerta,

ao invés dos iniciais, em inversa mossa.

E basta só esperar, correm as linhas,

como receando que não sejam redigidas,

como peças de xadrez nessas corridas,

unhas cortadas a serem descartadas,

ou igual pevides a serem assopradas

longe do mosto que abençoa as vinhas.

JOGO DOS REIS III

Mas por que registrar metalinguagem,

na descrição apenas de um processo,

quando um novo teor jamais em peço,

mas simplesmente me insiro na paisagem?

Por que perder-me em tal confabulagem

comigo mesmo, no instante em que me esqueço

que cada verso é simplesmente um adereço

que se apresenta pretendendo ser miragem,

para que os outros o espremam por sua água

ou nele busquem tamareiro vinho,

que só fermenta na sua imaginação?

Nele enxergando a sua alegria ou mágoa,

nele buscando qualquer resto de carinho,

ali plantado num momento de emoção.

JOGO DOS REIS IV

Pois, na verdade, o verso é tabuleiro;

vejo invisíveis quadrados no cartão

que velozmente é demarcado pela mão,

como os lances de um torneio bem ligeiro.

Há verso-bispo e há cavalo parelheiro;

mais raro é o verso-rei do que o peão;

rara a rainha que controla o coração

e dupla a torre, com seu peso de morteiro.

E cada lance admite um sacrifício.

buscando um alvo que nem sempre é alcançado,

gasta a energia quando até a mente abate,

a cada verso traçado em tal ofício,

até que a última partida do passado

seja encerrada por alheio xeque-mate...

LESMAS DE VIDRO I – 18 FEV 14

Quem diz que era feliz e não sabia

fala inverdade, pois quem era sabe,

que o dom de ser feliz é o que lhe cabe,

e não infelicidade o que sentia.

Que se sentia feliz, bem saberia,

que ser feliz é o dom que mais se gabe

e quem menciona um dom após acabe

que terminara nem sequer perceberia.

Quem é feliz não se acha satisfeito

pelo muito que lhe coube, na verdade:

sempre o acha pouco e algo mais deseja.

É a condição humana deste jeito

que nos faz desprezar felicidade,

quando a fortuna mais gentil nos beija.

LESMAS DE VIDRO II

Felicidade se arrasta lentamente

pelas volutas de vastos caracóis,

na luz difusa e distante dos faróis,

que se perde no negror, constantemente.

Só existe nela a certeza do inconsciente,

satisfação sutil que vem depois

da absorção solferino de arrebóis,

da magenta nostalgia ao sol poente.

Felicidade não nos chega de repente,

como um estrondo de vasta agitação;

do orgasmo o nome é mais exultação,

um véu de arco-íris apenas transparente,

que não possui qualquer profundidade

e se dilui inteiro em vacuidade.

LESMAS DE VIDRO III

Se a lesmas comparei felicidade

é que ela realmente não se esgota:

deixa um rastro de si, gota após gota,

luminosa como a prata da vaidade,

pegajoso como o teor da realidade,

que ao ver a sombra negra, a mente embota;

de ser veículo na tristeza a gente a dota,

nessa mentira precursora da verdade.

Mas é o rastro que se deve observar,

em demorada permanência temporária

e não a cintilante e multifária

explosão do coração a tremular,

nem na esperança e nem na incontinência,

pois ser feliz é mais um ato de paciência.

LESMAS DE VIDRO IV

E se a chamo de vidro, é a transparência

que após si nos deixa esse esferoide;

felicidade é um deslizar de celuloide,

a sobrepor-se às mil imagens da carência;

na lentidão é que acumula a sua potência,

pois vem de dentro, no fervor mais humanoide

e não dos fogos de artifício de um romboide,

sua própria luz com plena independência.

Desta forma, pouco importa o mal externo,

quando na mente de tal gama se usufrui:

só é feliz quem é feliz no interno

dom que da alma para o corpo flui,

nesse consolo quotidiano e quase eterno

que igual a lesmas de vidro se dilui.

BRINDE I – 19 FEV 14

Meu copo ergo em saudação a mim.

Tudo depende do líquido que bebo,

seja água pura ou da cerveja o sebo.

Não aprecio a champanha borbulhante,

mas sim o vinho multicor de mil parreiras

ou o conhaque guardado em algibeiras,

nos curtos frascos de estanho rebrilhante.

Que seja enfim a cachaça triunfante,

já condenada em prédicas certeiras,

alimentando a tava e mil carreiras

ou simplesmente algum refrigerante.

Meu copo ergo em saudação assim,

sem esperar o louvor de qualquer gangue,

que a mim me basta o sabor do próprio sangue.

BRINDE II

Não aguardo da borbulha o fervilhar

ou aprovação qualquer da sociedade:

conto o que vejo e que penso ser verdade.

Porém sem crer jamais que sou poeta

ou que já fui ou alguma vez serei na vida;

somente escrevo em versos longa lida,

a maioria das canções ainda secreta.

Pois quando exponho o veneno que se excreta,

a contragosto, que a palavra seja tida

nessa bebida inesperada e de vencida

se arrasta inerme a inspiração dileta.

De ser autêntico já embaçado todo o brilho,

pois mesmo sem querer, eu sou forçado

a esperar que me julguem inspirado.

BRINDE III

Talvez nunca devera ter mostrado,

na minha humilde condição de poetastro,

que algum poema rebrilhe como astro.

Sempre lembrado que já pronto nasce o verso

e nada sei do que aspiro em tal momento;

dionisíaco o fervor do pensamento,

o caldeirão a mover-se em giro inverso.

E se em qualquer antologia eu sou disperso,

amarfanhado por alheio julgamento,

submetido a qualquer consentimento

de quem se veja em inferior converso

ou, ao contrário, só me tenha criticado

por elegia de teor superficial

sobre algum verso já esquecido por banal.

BRINDE IV

Pois os lancei por aí, não por vaidade,

mas impelido pelo valor de alguns

e pela insuficiência de nenhuns,

na busca vã de ao soneto retornar

como modelo escolhido da poética

e preferência primordial da estética,

por mais que outros o busquem rejeitar

ou não consigam suas regras acertar;

não os critico, por questão de ética;

mas ante seu valor a mente é cética,

que apenas querem suas palavras registrar.

Porém das minhas sinto só piedade

e assim as exponho, sem buscar mercado:

mas que penetrem em algum peito descuidado!

MÚSICA ANTIGA I – 20 FEVEREIRO 2014

ANTES QUE TUDO MAIS, EU AMO MAIS

A ANTIGA MÚSICA DA MAIS ANTIGA VIGA;

TORNEI-ME AURIGA DESSA VELHA BIGA

E A CONDUZO PELAS SENDAS DO ADEMAIS.

MAS É ANTIGA PARA MIM E AMO DEMAIS

A MELODIA QUE MAIS SÉCULOS ABRIGA;

DE MINHA INFÂNCIA OUTRA MÚSICA CASTIGA

A MINHA MEMÓRIA SEM LANÇAR-SE NO JAMAIS.

MAS NÃO A CHAMO DE CLÁSSICA, POIS SEI

A TÊNUE LINHA QUE SEPARA O SOM BARROCO

DA GRANDE SAFRA QUE COLHERAM OS ROMÂNTICOS

POIS MUITA VEZ DA IGNORÂNCIA JÁ ESCUTEI

CHAMAR DE CLÁSSICO O ROCK E ATÉ UM POUCO

SAMBAS ANTIGOS OU DA IGREJA VELHOS CÂNTICOS.

MÚSICA ANTIGA II

ANTIGA MESMO PARA MIM É A MEDIEVAL

E NÃO SOMENTE ESSE CANTO GREGORIANO

OU O BENEDITINO, EM SEU VIGOR ARCANO,

PORÉM AS DANÇAS RECOBRADAS, AFINAL,

OU AS CANÇÕES REGISTRADAS, MAL E MAL,

VOZES DO POVO DE SABOR ATÉ MAIS PLANO

OU ACALANTOS, EM MURMURAR HUMANO,

E ATÉ CANTIGAS PRECEDENDO AO CARNAVAL.

NO FOLCLORE DE TODOS OS PAÍSES

ENCONTRO OS VELHOS RITMOS PERDIDOS,

DESDE A AMÉRICA INCA ATÉ A TURQUIA

E NELES VEJO IGUALMENTE MINHAS RAÍZES,

NOS MIL ACORDES POR MINHALMA CONTRAÍDOS

NAS LONGAS DÉCADAS EM QUE CASUAL OUVIA.

Música antiga iii

PENSO TAMBÉM NA MUCHARINGA PORTUGUESA,

EM JOÃO CARVALHO, QUE NEM TENS NO PENSAMENTO,

NAS SONATAS DE FREI JACINTO SACRAMENTO

E NAS DE GOMES DA SILVA, COM CERTEZA.

CARLOS DE SEIXAS, COM TODA A SUA NOBREZA,

MINUETOS E CANTATAS DE UM MOMENTO...

POR QUE CAÍRAM NO TEU ESQUECIMENTO

OS OITOCENTISTAS, COM TODA A SUA LHANEZA?

COMO É DIFÍCIL ENCONTRAR-SE ALGUÉM

QUE RECORDE ESSES VELHOS LUSITANOS!

A VIVER EM BILAQUEANO “ESPLENDOR E SEPULTURA”

ESSA GENTE QUE NÃO LEMBRA MAIS NINGUÉM,

EMUDECIDAS SUAS NOTAS NOS ARCANOS

DE UM PEQUENO PAÍS DE ALMA TÃO PURA!

MÚSICA ANTIGA Iv

AO MESMO TEMPO, APRECIO MONTEVERDI

BEM MAIS QUE ITALIANOS MAIS RECENTES,

NO INTELECTUALISMO DAS OBRAS MAIS FREQUENTES

ATÉ CHEGAR O ROMANTISMO DO OUTRO VERDI!...

ENQUANTO TELEMANN O APELO QUASE PERDE

PERANTE AS OBRAS DE BACH PERMANENTES,

QUE MENDELSSOHN TROUXE DE VOLTA ÀS MENTES,

HEINRICH SCHÜTZ DAS SOMBRAS MAL SE ERGUE.

E QUE DIZER DA ESCOLA DE MANNHEIM

OU DAS DEZENAS DE POLIFONISTAS?

ORLANDO DI LASSO CONHECO MAL E MAL!...

DE GIACOMO PERI E BATTISTA DOMI OS NOMES CAEM

COMO DAS NOTAS MUSICAIS OS TRANSFORMISTAS,

SÓ NOS MANUAIS APRISIONADOS, AFINAL...

MÚSICA ANTIGA V

E QUEM RELEMBRA AS OBRAS DE FOMIN,

DE BORTNIANSKY OU DE YAROSLAW?

MAXIM BEREZOWSKIJ JÁ ESQUECIDO ASSIM

E DE SOBOLIEV JAMAIS SE ACHA ENCLAVE...

QUEM DE BORIS SHISHKIN A OBRA ESCAVE

OU A DE POPLEWSKIJ PLANTE EM SEU JARDIM?

TALVEZ DESISTA E AS MÃOS ENTÃO SE LAVE

QUEM YEWSTEGNIEV VÁ PROCURAR, ENFIM...

E AQUI MESMO NO BRASIL, ALGUÉM RECORDA

QUEM MUSICOU O CANCIONEIRO DE GONZAGA

PARA DONA MARIA DOROTEIA DE SEIXAS?

A QUEM MARÍLIA DE DIRCEU CONCORDA

EM CHAMAR, PARA EM ALHEIA VENIAGA

LANÇAR QUEM FOR PESQUISAR AS SUAS ENDEIXAS?

MÚSICA ANTIGA vi

E NA INGLATERRA, ALÉM DE WILLIAM BYRD,

QUEM RECORDA OS VELHOS MÚSICOS, ENFIM?

SIMPSON, HOLBORN, DE QUEM AINDA SE HERDE

A “RODA DAS FADAS” PARA CANTAR ASSIM?

E LETHERLAND, NICHOLAS GUY, CHAMADO “O VERDE”,

ROBERT JOHNSON E TAMBÉM RICHARD DERING,

BASSANO E FERRABOSCO, EM QUEM SE CERDE

A ORIGEM ITALIANA, FARNABY E HARDING?

E AINDA A CANTAR “GREENSLEAVES”, EMBORA.

QUEM RECORDA QUE A ESCREVEU HENRIQUE OITAVO,

O REI-POETA, TANTAS VEZES CALUNIADO

POR SEIS ESPOSAS TER POSSUÍDO OUTRORA,

POIS OS CATÓLICOS LHE ATRIBUEM O CRAVO

DO ANGLICANISMO, QUE POR CRANMER FOI FUNDADO?