MULHER E MAIS
MULHER I – 21 OUT 13
Em ti eu vejo a água em sua doçura,
nessas papilas de teus dedos perolados;
escorre o líquido dos olhos disfarçados,
sempre perdidos em qualquer lonjura.
Eu vejo em ti a fonte da ternura,
que distribuis aos gatos abraçados
ou nos carinhos, mesmo apressurados,
que dispensas ao passar, em vaga pura,
à cachorrinha branca que mimaste
e que não deixas nunca fecundar
ou permitir que sua raça reproduza;
água por água em alimento preparaste,
já que as rações eu tenho de comprar,
mas em meu prato amor tua mão acusa.
MULHER II
Eu vejo o fogo no teu peito ardente,
a delinquir pelos fios de teus cabelos,
na ponta de tua língua esses desvelos
e nas narinas um fulgor impenitente.
O fogo eu vejo no peito teu, saliente,
e nos quadris de arredondados belos;
com o olhar ou com as mãos eu busco tê-los,
carícias mil nesse adejar frequente.
Houve ocasião em que tua língua me queimou
e que chamas brotaram desses olhos,
a chamuscar-me a menor das esperanças;
mas muitas houve em que tal chama confortou
a carne minha na sanha dos refolhos,
na saga antiga das milenares danças.
MULHER III
Eu vejo em ti a vapidez do ar,
esse gigante lençol que nos envolve
e que nos cerca onde quer que o olhar se volve,
como me cerca esse cuidado em teu olhar.
Em ti eu vejo o vento, em seu vagar,
mulher mutável de mistério que não solve,
promessa vaga, equação que não resolve,
emaranhado de cabelos a flutuar.
E em ti me afogo nessa fonte dos mistérios,
da alma celta distraída em mil ensejos,
reconduzidos das brumas do passado,
no mal lembrado tempo dos ibérios,
ao Sol e à Lua a lançar ódios e beijos,
na vasta herança de cada antepassado.
REDES VIRAIS I – 22 out 13
algumas vezes, as configurações
querem se impor
ao meu computador.
o que farei,
quando o guia condutor
quiser levar-me a estranhas locações?
não sei se é vírus ou worm em suas lesões
que me arrasta
em vastos borbotões
e me acaba
por levar a confusões
que me provocam embaraço e desamor.
pois vida própria parece ter, às vezes,
cada processo
que me busca dominar
e me conduz aonde não quero ir.
porém em outras ocasiões, durante meses,
parece adormecido
em seu obrar,
mas com veneno nos dentes a luzir.
REDES VIRAIS II
tal qual se fossem redes de serpentes
enrodilhadas
e sem encantador
que ao invés
de numa cesta de armador,
elas se trançam em redes imponentes
e se põem a nos cercar, pobres agentes
para marcar-nos
como um ferrador,
no seu frígido laço
e seu fervor,
cobras sem pena e à dor indiferentes.
antigamente, os ofídios que rodearam
a humanidade,
em permanente fome,
só nos podiam invadir pelos sentidos;
caminhos hoje mais fáceis encontraram
que nas redes binárias
a mente some
e nos transformam em escravos e bandidos.
REDES VIRAIS III
Antigamente se falava em possessão
pelos demônios
das plagas infernais;
hoje se encontram
caminhos naturais
para sugar de cada um sem concessão.
por celulares eles vêm, em radiação,
por micro-ondas,
em seu fervor artificiais,
por videoguêimes,
ansiando sempre mais
pelas imagens a transmitir televisão.
nisso que chamam de global aldeia
os crimes e desastres
são mostrados;
as conquistas e progressos descartados.
faz mais sucesso a bomba que incendeia;
e pelas telas
somos devorados,
nessa constante exposição que nos permeia!
REDES VIRAIS IV
assim queria, no meu aniversário,
voltar a usar
a máquina de escrever
que no passado
me deu grande prazer,
que em rapidez não achava adversário.
a quatro toques por segundo, escriturário;
era bem raro
corrigir meu quefazer;
adotei o computador
de mau querer,
em seus caprichos tão atrabiliário!
pois nele nunca tive a rapidez
da velha prática
da datilografia,
que ainda me força muito erro a cometer,
veloz que seja como os corrigia
ainda hoje
me trata com dobrez
nessas palavras que conclui a bel-prazer!
OURO ESQUIVO I – 23 OUT 13
Cada mulher possui o seu encanto,
seja menina, madura ou mesmo anciã;
existe nelas uma esquivança chã,
nelas se afirma o resplendor do pranto.
Cada mulher possui algo de santo,
a proteção de um cachecol de lã,
o gigantesco fulgor da chama anã
que como felpa tremula em cada manto.
Cada mulher é chama purpurina,
que me reveste igual a imperador
e me alimento em qualquer desconhecida
que vejo pela rua, em simples sina,
que mal me olha, por certo, sem amor
e só em relance me enriquece a vida...
OURO ESQUIVO II
Toda mulher tem algo de selvagem,
como uma fera azul em sua armadilha,
como as ondas que assediam cada ilha
em que me refugie, sem coragem.
Toda mulher possui, em sua visagem,
promessa esquiva de diferente trilha,
branda ameaça do desejo filha,
em sua atração silenciosa de paisagem.
Quando sorri de forma temerosa,
reluz-lhe aos dentes centelha de infinito,
uma promessa gentil na comissura
dos lábios rubros ou pálidos de rosa,
soltando, só de leve, um mudo grito,
qual cimitarra afiada em tal loucura.
OURO ESQUIVO III
Cada mulher é um lago transparente,
bem no fundo do qual se vê castelo;
a alga verde a refletir cada cabelo,
cada nenúfar hidropônico presente.
Toda mulher é ouro onipresente,
em cada poro da pele, em fogo ou gelo;
ouro pobre, talvez, mas quero tê-lo
na minha bateia, em simples grão luzente.
E em vendaval, que tanto a faz volúvel,
remanesce um desejo inconformado:
nenhuma delas será minha integralmente,
pois têm em si o encanto indissolúvel
de serem mais que eu, em sonho alado,
enquanto eu sou pura fumaça inconsistente...
FACETAS XXII -- A ESPERANÇOSA I – 15 JUL 2006
Bondosa é essa mulher que sabe morta
toda esperança para si e trabalha
por sustentar os filhos de um canalha
e por manter acesa essa retorta
de que rebrota, em gesto lancinante,
a geração que em esperança espalha,
o futuro em gestação, em longa malha.
porque o porvir, ainda que inconstante,
é o único que temos; o presente
passa depressa como a brisa leve,
o passado se foi e não se muda...
Mas o futuro depende mais da gente:
a cada escolha feita o véu desnuda
e o resultado há de chegar em breve...
A ESPERANÇOSA II – 24 OUT 13
Naturalmente, nunca é o que se espera;
o próprio nome da esperança diz
ser não mais que mensagem feita a giz,
no quadro-verde que o presente gera.
Talvez se realize, quem lhe dera!
esse desejo por que tanto quis;
mas toda espera é um mensageiro gris,
arauto escuso da incerteza mera...
Sempre podemos escolher a direção
em que seguir, através desse miasma,
mas o futuro é traiçoeiro lodaçal
e a esperança um belo guia de traição
que nos conduz à bênção de um fantasma
a quem pisar na lama não faz mal...
A ESPERANÇOSA III
Nosso presente é essa ponte incerta,
que nos impele à busca do possível;
a cada passo, algo mais se faz visível;
sem avançarmos, a visão nunca desperta.
Sólido apenas é o passado, essa floresta
concretamente feita de intangível,
caleidoscópio da memória perecível
do que nos causou dor ou trouxe festa.
Existe sempre a certeza da memória
desse caminho que já foi destino;
mas o presente é somente gelo fino,
a deslizar em fricção peremptória,
por sob nossos pés e já nos deixa,
tão somente com a lembrança de uma queixa.
A ESPERANÇOSA IV
Essa mulher se conecta à esperança,
porque o passado já conta por perdido,
presente feito de um obrar cumprido,
para poder sustentar cada criança.
E até o ponto em que seu pensar alcança,
deve a luta manter no dia comprido,
cada momento outro dever vencido,
nova exigência que o ardor lhe cansa.
Estão ali, porém, seus dependentes;
o pai fugiu ou, quem sabe, já morreu;
e não se pode furtar à obrigação,
todos momentos aos outros consequentes,
a repetirem as tarefas que lhes deu,
sempre exigindo, sem qualquer compensação.
A ESPERANÇOSA V
Talvez relembre de sua mãe igual destino,
mas se recusa em aceitá-lo para os filhos,
que algo os force a seguir os mesmos trilhos;
se fosse assim, cairia em desatino!...
Sabe fingir, ao olhar cada menino,
que para ele aguarda algo melhor
e não idêntico viver ou até pior:
talvez a filha encontre um moço fino...
Ou o rapaz arranje um bom emprego...
E já nem pensa em si, de conformada,
mas se reserva o direito de sonhar
que lhe seja favorável o porvir cego...
Cerrando os dentes, sem esperar mais nada
da própria vida, que bem soube a maltratar...
A ESPERANÇOSA VI
E quem sabe? Talvez se torne mesmo diferente
a vida desses filhos que ela teve;
que desses anos em que ela esteve
a se esforçar pela sua própria gente,
ainda resulte algum futuro ardente;
que algum comércio ou profissão os leve
não à riqueza, que a tanto não se atreve,
mas a uma vida de cunho mais clemente...
E assim se esforça, igual que outras tantas,
nutrindo sempre a nova geração,
para manter da esperança acesa a vela,
com nós nos dedos e outros nas gargantas,
a enfrentar cada percalço na ocasião,
sem jamais desesperar da triste estrela...
PÃO E ÁGUA I – 25 OUT 13
A cada vez que mastigo este meu pão,
de permeio a uma conversa distraída,
vem-me à lembrança a dívida incontida
para com tantos que em torno de mim são.
É certo que exerci minha profissão,
foi por trabalho a aposentadoria concedida
e com esforço prossigo sempre a lida,
para as moedas manter dentro da mão.
Não sou um parasita e nunca o fui,
mas que seria de mim, sem a cidade
e sem o campo, as fábricas e as estradas?
Se a meu redor a sociedade alui,
passarei fome, sem alcançar piedade,
na dependência de mil pequenos nadas.
PÃO E ÁGUA II
Talvez devesse hidropônica iniciar
e ter em casa meus próprios vegetais...
Mas nos canteiros já não cabe mais:
cheios estão de flores a brotar...
Complexa é a sociedade e o bem-estar
dependente de produções industriais,
da agricultura e das estradas vicinais,
do asfalto negro os campos a cruzar.
Pois hoje somos imbricados ao extremo;
até mesmo o dinheiro que se paga
é produzido bem longe daqui...
Que ocorreria se, em obra do demo,
nossa cultura cortassem, qual adaga,
sem ter valor essa poesia que escrevi?
PÃO E ÁGUA III
E bem ou mal, a água que bebemos
é tratada para menos poluição;
quem só bebe a de garrafa, de antemão
já estaria condenado a mil venenos,
caso as hidráulicas de que tanto dependemos
cessassem de repente a produção
ou um simples corte na distribuição
dessa água mineral que hoje ainda temos.
Talvez houvesse alguns poços artesianos,
impiedosos a sugar o lençol freático,
À beira estamos do Aquífero Guarani,
mas seriam filas e filas, quais nos anos
da Idade Média, em seu marchar apático,
novas moléstias campeando por aqui...
PÃO E ÁGUA IV
E o que faria um escriba nesse então,
a vida acostumada na afluente
sociedade que o tornou seu dependente
para de água e alimento ter ração?
Talvez os versos eu moesse na ocasião,
para obter uma farinha diferente
e a tinta se filtrasse, vagamente,
criando água de aquarela brotação...
Somente espero que a civilização
permita ainda alguns anos de lazer,
enquanto a minha marcha perdurar...
E que não morra por desidratação
ou venha pela fome a falecer,
sem ao menos ter um forno a me cremar!
GERADOR I – 26 OUT 13
Prazer maior não há que o de saber
quando é possível a geração do filho
e justo penetrar no mesmo trilho
em que meus pais me deram o viver.
É ao menos para mim. Pode até ser
que esse sacro momento em que me pilho
seja, ao contrário de instante de mais brilho,
uma ocasião para medo ou de sofrer.
Contudo, quando a outrem pertencer
a minha semente, no seu fatal dia,
consiste para mim o verdadeiro
maior orgasmo de todos receber,
na centelha de uma brasa de alegria
que de júbilo me percorra o corpo inteiro.
GERADOR II
Quando criança, querer eu afirmava
duzentos filhos ter, minha própria raça;
eu os faria marchar por cada praça,
em uniformes com as cores que apreciava.
Minha bandeira meu mais velho segurava,
vendo os pequenos a caminhar com graça,
vendo os maiores num vigor sem jaça,
enquanto o pavimento cadenciava...
A gente cresce e as coisas são diversas.
Rapazes foram dois; quatro mulheres,
mas só o mais velho até hoje me deu netos;
carregou-me a bandeira em tons dispersos,
enquanto os versos se ajuntaram como halteres
na vã esperança de me granjear afetos...
GERADOR III
Por certo tive de soldados batalhões,
alguns de chumbo ou plástico ou papel,
recortados aos milhares, sem cinzel,
pelas hastes da tesoura, em vagalhões,
para depois destruir em multidões,
em combates amargos como fel;
cada caixa de sapatos um quartel,
com relatórios completos das ações.
As maltas mudas de tais filhos postiços,
atenderam a meu ideal de gerador,
mas igualmente envolvi-me com feitiços
que me encantaram qual colecionador
de selos, discos e livros mais castiços,
que adquiri, sem que lhe fosse o genitor.
GERADOR IV
E finalmente encontrei conciliação
em centenas de claras partituras
ou em poemas de palavras puras,
em que pus células de meu coração.
Os filhos da carnal renovação
foram lançados do mundo nas agruras;
nunca se sabe se a bravuras ou loucuras,
nem quanto tempo a mim respeitarão.
Mas os poemas não sabem se mudar,
mesmo perdidos no binário altar,
guardarão a sua básica estrutura
de rubras células tornadas ilusão,
mas na Internet por quanto durarão,
na longa marcha à geração futura?
XADREZ INVERSO I – 27 OUT 13
O VENTO EU VI PINGAR EM MINHA CABEÇA,
ENQUANTO A CHUVA SOPRAVA EM DESCONSOLO,
A TERRA REPARTIDA, IMENSO BOLO,
FATIADA PELO RAIO EM MORTE ESPESSA.
BORRASCA ASSIM TALVEZ NEM MAIS PEREÇA,
DEZ RELÂMPAGOS CHORANDO NO MEU COLO,
JUNTO ÀS FRALDAS DO TROVÃO, QUE ONDE PÔ-LO,
JÁ NEM SEI, QUE ODOR DE OZÔNIO NÃO ESQUEÇA.
PORÉM MEU VENTO CRESCE E SENTA À MESA,
COME TIJOLOS E VIDROS SEM CUIDADO,
ENQUANTO SENTA A CHUVA DO OUTRO LADO;
E A MIM SÓ RESTA SERVI-LOS COM PRESTEZA,
POR MAIS QUE REI ME SINTA EM ORGULHO ALÇADO,
VEM A INTEMPÉRIE E ENTÃO LHES SIRVO DE CRIADO.
XADREZ INVERSO II
QUER ESSE MUNDO INTEIRO DA INVERSÃO
SEJA EM MINHA PRÓPRIA MENTE ASSIM FORMADO,
QUER SONHO ALHEIO EM MIM SEJA INJETADO
E ME FAÇA RESPONDER SOB PRESSÃO,
QUER ESSA TEMPESTADE EM SEU TUFÃO
NO CICLORAMA DAS PESTANAS TENHA ACHADO,
QUER SE PROJETE TÃO SÓ SONHO ENCANTADO
NESSA ANÁSTROFE SURREAL DE MINHA PAIXÃO,
O CERTO É QUE O ESTUÁRIO MEU NEURAL
CONFLUIU PARA ESSE IMENSO CALDEIRÃO
DE PARÁFRASES E ZEUGMAS CAPRICHOSOS,
NESSE CICLONE DE FESTEJO NUPCIAL,
ENCANTAMENTO DESCUIDADO EM ALEIJÃO
DE MEUS HIATOS E ANACOLUTOS CAPCIOSOS.
XADREZ INVERSO III
O VENTO CONDENSOU-SE E FOI CAVALO,
ENQUANTO A CHUVA SE FEZ CONCRETA TORRE;
CADA RAIO UM PEÃO QUE FÁCIL MORRE,
A GEADA UM BISPO, MITRA ABERTA EM ESTALO.
PRENDEU A DAMA O TROVÃO NO SEU GARGALO
O TABULEIRO VELOZ SEMPRE PERCORRE;
SOMENTE AS CASAS A SI PRÓXIMAS O REI CORRE,
O SILVO AGUDO DO XEQUE NO SEU VALO.
SERÁ QUE HÁ ROQUE NO XADREZ TRIDIMENSIONAL,
ENSINADO TALVEZ EM ALGUMA ESCOLA,
FAVORECENDO O PENSAMENTO RACIONAL,
SPOCK E KIRK EM DISPUTA HELICOIDAL,
ENQUANTO AGUARDAM NOVA MISSÃO TOLA,
ARRISCANDO SEM PENSAR CADA OFICIAL...
XADREZ INVERSO IV
PORÉM O VENTO PINGA COLORIDO
E EM MIM A CHUVA SE ENROSCA, PERFUMADA;
O AR ESCUTO EM CERRAÇÃO MOLHADA
E CONTROLO GRÃOS DE POEIRA EM REMEXIDO
MOVIMENTO BROWNIANO NA ALVORADA,
ENQUANTO O SOL NO AR É DERRETIDO
POR MIL GOTÍCULAS DE ESPANTO ENTRETECIDO
NO ORVALHO POLIFÔNICO DA GEADA.
AH, VENTO, FRUTO INÚTIL DE MINHA PRECE
QUE TRAGO PRESO EM MEU VENTILADOR,
UMA CARÍCIA EM CADA TRAVESSURA!...
QUE ME DESTELHA OS CABELOS QUANDO CRESCE
E DE MAUS MODOS FAZ-SE MEU SENHOR,
ENTRA EM MINHA BOCA E ME ROUBA A DENTADURA!
AUREA MEDIOCRITAS I – 28 OUT 13
Uma receita para a mocidade
é o interesse sempre renovado:
a teia de opiniões, a aprendizagem,
sadia como a sã curiosidade
de conhecer novas línguas de passagem,
ver um espectro de cores perolado,
de escutar novos ritmos melódicos,
ou contribuir com mais do que episódicos
momentos feitos de pura expectação;
sem precisar lançar-se na vazia
busca incessante de uma satisfação
e muito menos no pendor de reprimi-la:
a vida é mais que isso e desafia
a quem deseja inteira usufruí-la...
AUREA MEDIOCRITAS II
Também para a velhice há uma receita:
é o interesse sempre renovado
em cada dor das articulações,
cada mazela que se encontra e aceita.
São os dentes a rejeitar obturações,
o rosto se franzindo de enrugado,
é a surdez a pouco e pouco se instalando
e os demais interesses se deixando.
Por este espelho mágico invertido,
que aos poucos mostra fisionomia feia
e aspereza onde se achava a pele lisa,
que se consulta mesmo após desiludido
e nos recorta em sua rachada teia,
até a memória desfazendo como brisa...
AUREA MEDIOCRITAS III
São poucos os que empreendem o combate
aos interesses da avançada idade;
têm nas doenças a principal curiosidade,
de mil mazelas a encher seu açafate...
Alguns pretendem amarrar a mocidade
com óleos e perfumes que se cate,
com plásticas para que a pele não se date,
mil artifícios de igual mediocridade...
Mas de fato, se preserva a juventude
através dos exercícios interiores,
que a juventude está na inteligência;
e assim, por mais que o exterior se mude,
são nossos sonhos os equalizadores
das ilusões e quimeras da impotência...
DURAS PENAS I – 29 OUT 13
Certo é cada um ter seu defeito
e ser por causa dele desprezado;
algum é tido por mal-educado,
um outro rancoroso em seu despeito;
existe aquele que tem amor ao leito
e o que tem na bebida o seu cuidado;
quem engorda, por comer se vê troçado
e o mentiroso goza mau conceito...
Na verdade, as pessoas têm prazer
em alheias falhas poder identificar:
sempre uma forma de a si valorizar
e destarte, sua vaidade engrandecer,
nesse troçar dos outros o iludir
de mais valor perante os outros assumir.
DURAS PENAS II
E quando é mais difícil encontrar
esses defeitos que se possa desprezar,
alguma coisa sempre pode se inventar,
gruda um resto de calúnia como piche.
Ou se critica até mesmo a qualidade,
numa inversão total da validade,
troçando o velho do tatear da mocidade,
como se fosse coisa apenas miche.
E o jovem zomba, sem pena, de um ancião,
sem dar valor ao peso da experiência
que, com frequência, não passa de consolo...
Critica o fraco ao ferrabrás fortão,
despreza o doente a quem tem mais potência
e assim desfaz do inteligente qualquer tolo.
DURAS PENAS III
Caso na aldeia não exista um louco,
o povo inteiro vai um fabricar;
para excluir, é bem fácil inventar:
do superior, real louvor é pouco.
É mais comum se elogiar o cantor rouco,
cuja voz qualquer um pode imitar,
do que o artista verdadeiro se louvar
que não se possa superar tampouco.
Fala-se muito nos desprivilegiados,
porém não são os verdadeiros excluídos:
de um retardado é fácil ter-se pena,
mas um Asperger de dons inesperados
causa mais medo e rancor e se o condena
à multidão dos gênios esquecidos.
Pão dos Montes 1 – 30 Out 13
Ondula nas colinas longa espiga
E nas planícies agita-se ante o vento;
Somente em calmaria toma assento,
Que a menor brisa já se torna em sua auriga.
A haste loura dançando nessa intriga
Atrai lagartas e besouros a seu alento,
Cada avezinha a caçar, combate lento,
Mas permanente e imemorial tal briga.
Pois foram homens que lhe deram mais alcance,
Semeando pelos vales fino grão,
Para depois gozar de sua colheita;
Pouco importa ao ceifeiro que a haste dance;
A palha dá aos animais a nutrição
E o trigo corta que em celeiros deita.
Pão dos Montes 2
Já ondula pelas várzeas outra espiga,
Verde e empapada cada haste de arroz,
Pelas margens dos rios e até a foz,
Também palpita sob a brisa amiga.
E nos pádis orientais, como lombriga
Marcha descalço o agricultor, empós,
As raízes separando, como nós,
Para plantar sob a água que as abriga.
Ou em qualquer lombada ou pastiçal
Plantar-se-ão, igual que dentadura,
Dentes de ouro, em covas descuidadas,
Férteis sementes para cada milharal,
Que se erguerão mesmo em seca que perdura,
Seus cabelos ao vento desgrenhados.
Pão dos Montes 3
Algures também planta-se o centeio,
Cevada, espelta obscura e a bela aveia;
Em multidão o campo se incendeia,
Fila após fila, disciplinado veio...
E assim surgimos nós, segundo creio,
A carne filha do cereal que ateia
Todo o vigor e energia que permeia
Cada cultura humana no seu seio.
Pois os grãos esmagamos, sem piedade,
Para prover-nos de alimentação
E gerarmos assim os nossos filhos.
Novas lavras a plantar na eternidade,
Farinha loura ou branca para o pão
Que a humanidade impele nos seus trilhos...