A MÁRTIR & MAIS

FACETAS XVII – A MÁRTIR I (14 JUL 06)

Bondosa é essa mulher que sacrifica

a vida pelos filhos; e do marido

o seu próprio belo aspecto esquecido

deixa sempre...? E ainda justifica

que lhe sejam ingratos: são crianças,

umas pequenas, outro já crescido,

mas imaturo ainda, esse bandido

que põe no futebol suas esperanças...

E assim, se torna feia e desleixada

e nem surpresa fica ao ser traída.

Pois já acredita que não é a dedicação

que impressão causa, mas que pisoteada,

por mais que guarde amor no coração,

pode ser diariamente pela vida...

A MÁRTIR II (6 AGO 13)

Até que ponto, talvez, tal sacrifício

se deva à culpa ou quiçá à indolência?

Ante o combate diário em impotência,

ante a exigência que lhe requer o ofício

de mãe e de mulher, perante o vício

de esquecer de si mesma, em tal leniência,

dos filhos a aceitar toda exigência,

seu próprio aspecto levando ao precipício,

por crer que nem adianta se cuidar,

que é feia, mesmo – e pior se vai tornando,

em elogios ou galanteios descrendo,

que nada mesmo lhe irá adiantar

a tentativa de atraente se mostrando,

mas somente como mãe seguir vivendo.

A MÁRTIR III

O que leva uma mulher a se largar,

sob o pretexto de cuidar dos filhos?

Por que abandona da vaidade os trilhos,

de sua aparência inteira a descuidar.

Pois não é só questão de trabalhar...

Há quem precise no pilão moer os milhos

ou buscar água por caminhos andarilhos,

tal atitude bem fácil de explicar...

Porém há outras que dispõem de bens

e até mesmo com empregadas contam,

babá e chofer para levar filhos à escola...

E mesmo assim, se perdem em vaivens

e das crianças o cuidado apontam

como razão de sua atitude tola...

A MÁRTIR IV

Sempre é possível que haja depressão

e não somente a da bipolaridade,

ou depressão após parto, em realidade,

servindo em parte como explicação.

Mas por real que seja a necessidade,

não existirá aqui outra razão?

Não terá outros motivos, que serão

os causadores de tal malversidade?

Existe o impulso da reprodução

em maior ou menor grau. Cada mulher

pode querer uma dúzia de crianças

ou três ou quatro, com menos impulsão,

ou quem sabe uma só é o que requer

e que lhe baste para amplas esperanças...

A MÁRTIR V

Quem sabe assim não quer mais ser atraente,

por já achar ter cumprido a sua função;

sem ter desejo para nova gestação,

sendo o perigo de outra bem presente,

caso consinta em relação frequente;

ao se enfeiar, se despe da atração;

nossas leis põem o marido na sua mão,

quer o atenda ou lhe seja indiferente.

Pois se ele desejava fazer sexo,

ela buscava tão somente engravidar;

alcançado o objetivo, qual razão

para fazer de novo amor sem nexo.

E a própria igreja a busca suportar,

ao proibir da gravidez a prevenção!...

A MÁRTIR VI

Assim nos filhos concentra o interesse

e destitui o marido de carinho;

quando ele chega, é o repetir mesquinho

dos trabalhos e mágoas que sofresse,

a se queixar da vida, em ímpia prece,

qual se fosse dele a culpa; e em desalinho

o repele, a impeli-lo a outro caminho,

para melhor se lamentar do que acontece.

A eterna mártir pede o divórcio então,

para viver dos proventos da pensão,

além dos bens que do coitado retirou;

e para os filhos projeta a sua desgraça,

seu pai a condenar, enquanto traça

vasto retrato de quanto a maltratou...

MEIOBREZA I – 7 ago 2013-09-11

Existem nobres e pobres e meiobres:

em cada círculo há um tipo de poesia;

para alguns quase real a fantasia,

nessa ânsia de possuir só mais uns cobres.

Para todos os sinos tocam dobres,

por real lástima ou tão só por elegia,

que algum se queixa mais do que sofria,

outro é contido por sentimentos nobres.

O pobre passa fome em sua miséria,

o nobre sofre com seus compromissos,

o meiobre de ser pobre tem pavor...

Mas alcançar a nobreza é coisa séria

e se desgasta o meiobre nos seus viços,

na busca ardente por parecer maior...

MEIOBREZA II

Havia nobreza de sangue e outra de espada,

uns sendo nobres tão só por ascendência,

outros assim se tornando por potência,

nas fúrias dos combates demonstrada.

Havia nobres de fortuna fracassada,

a ostentar sua nobreza em impotência

ou de um rei a depender, em subserviência,

salvo a mesa real, sem ter mais nada.

Restava o orgulho de seus antepassados,

sem serem dignos de deles descender,

dessas cortes tão somente os parasitas,

esses que foram então guilhotinados,

sangue vermelho dos pescoços a escorrer,

sem qualquer tom de azul em suas desditas.

MEIOBREZA III

Era a pobreza de então mais difundida,

(como até hoje permeio a nós ocorre).

Pobre fica qualquer um, assim que morre,

depois que cesse seu orgulho e toda a lida.

Mas enriquece aquele que na vida,

pela indústria e comércio muito corre,

guardando em cofre, sem que o lucro torre,

até alcançar substância bem nutrida.

Pelo dinheiro, então, se faz meiobre

e casa os filhos e filhas, com vantagem,

entre os nobres que perderam seu dinheiro.

Não sendo raro o aristocrata pobre

que vivia de seu nome na vadiagem,

devendo a muitos, sem de nada ser herdeiro.

MEIOBREZA IV

Na verdade, o trabalho te enobrece,

mas bem difícil é amealhar fortuna,

sem que os impostos façam com que suma,

bem mais depressa que os cochichos de uma prece.

Neste país, na verdade, só quem cresce

é quem se ajunta à pública coluna;

cresce o estipêndio deles como espuma,

enquanto ao povo pouca coisa desce.

Mas a nobreza está mais no sentimento

e na cultura que reúne, aos poucos,

quem continua externamente pobre.

E de tal modo, meu sangue não lamento,

nem procuro ostentar igual que os loucos,

enquanto aqui permaneço só meiobre...

O BEM DO BEM I – 8 AGO 13

É tão frequente se perder na vida,

na busca vã de ter melhor destino,

o bem que já se tinha, pequenino,

sem que outro bem melhor nos dê guarida.

Já muitas vezes foi a frase proferida

de que a gente era feliz no velho tino

e só o veio a saber, tangido o sino,

ao ver a morta bênção já perdida.

Mas não é bem assim que a gente diga

que se era feliz e não sabia:

perde-se um bem por conseguir um novo,

por deixar de se apreciar a joia antiga...

Ao invés de lamentar, melhor seria

ir buscar em novas plagas um renovo.

O BEM DO BEM II

Que todo bem tem o preço de outro bem

e nada se consegue sem ter preço;

todo o bem de outro bem nos traz o preço

e apreço o bem pelo preço que é refém.

Refém do bem é o bem a que também

eu quero bem porque ser bem eu meço,

que existe um preço por cada bem que peço

e sou refém do preço em seu porém.

Porém se quero o bem, preciso esforço

para esse bem de alguém mais conquistar,

que até um beijo que se toma é bem roubado

e o bem conquisto com a carga de meu dorso:

mesmo de graça aparente, hei de pagar

por cada bem que julgue me foi dado...

O BEM DO BEM I

O que é o bem, senão a débil luz,

no fim do túnel cinza da ambição?

É bem somente o que abrange nossa mão,

que é falso o bem que do escuro nos reluz.

Bem é a colheita de dois braços em cruz,

que se conserva ao alcance da visão.

Há bem que é certo e há bem que é só ilusão;

há bem que ao mal futuro nos conduz.

Segundo dizem, vêm males para o bem,

igual que bens nos trarão somente o mal:

paga-se um bem, quando outro bem se pega,

enquanto raro é o bem que sempre vem

e nos cai sobre o colo, em tal sinal

de que a busca do bem ao mal nos cega...

DIGITAIS I – 9 AGO 13

Trazes nos dedos as marcas do passado,

do útero a amniótica profecia,

essa lembrança de quem em nada cria,

sem previsão de um futuro atribulado.

São tuas papilas isentas de pecado,

que assim recordam, qual estrela-guia,

qualquer lugar em que tua mão descia,

nesta réstia de ti que tens deixado.

Há centenas de marcas nas falanges,

leves fantasmas da concreta atividade,

que não passaste pelo mundo em vão,

mas as deixaste sobre a lâmina de alfanjes

ou na capa de um livro, sem maldade,

nessas carícias imprudentes de tua mão.

DIGITAIS II

Segundo afirmam, nunca houve duas iguais,

por mais que houvesse alguma semelhança;

atrás de ti deixaste, sem tardança,

marcas de crime ou de carinhos mais sensuais.

São de teus poros vestígios fantasmais,

pegadas incolores de expectância,

restos de ti que a memória nem alcança,

que te separam de todos os demais.

Que estranho código contêm essas papilas,

bem mais funesto que o da palma de tua mão?

Por que excitam tão pouco às quiromantes?

Esse astral corpo com que no mundo oscilas,

manchas borradas por hesitação,

perpetuamente demarcando teus instantes.

DIGITAIS III

E que dizer das costas de tuas mãos?

Não trazem mapa de rugas, em treliça,

entremeadas de alguns pelos, a que eriça

o vento; ou medo, ou sentimentos vãos?

Largos campos de cultivo entre armações

das cordilheiras que teu sangue atiça,

por manomotos constantes nessa liça

com que teus dedos compõem tuas criações...

Erguem-se montes, em redondos everestes

e então se escondem em pequenas depressões,

sem que a água da chuva ali se ajunte...

Algumas vezes, pelos cortes que vos destes,

por descuidados momentos, em cordões

de sangue rubro escorrendo qual rejunte...

DIGITAIS IV

Aos quiromantes, o que importa são as palmas,

todas iguais e todas diferentes,

para a cabeça e o coração sinais frequentes,

embora na linha da vida, outras embalmas

influenciam, em dependência de tuas calmas

ou nos furores de teus sonhos mais ingentes,

da alimentação também ainda dependentes,

linhas do útero a definir mil almas...

Em um ponto te revelam casamentos,

em outro os filhos que na vida hás de gerar,

linhas que negam os pendores que supunhas...

É mais sensato acreditar tais mandamentos

que os das estrelas, para todos a brilhar

ou do fulgor lunar sobre tuas unhas!...

ENDEIXAS I – 10 AGO 13

ESCONDIDOS SOB O PESO DAS MADEIXAS,

POR MAIS ROBUSTAS QUE SEJAM OU A RAREAR,

OS TEUS ANSEIOS ESTÃO A PALPITAR,

SÓ VINDO À LUZ QUANDO EMERGIR OS DEIXAS;

SOB AS RAÍZES SE ENCONTRAM DESSAS MECHAS,

AGUARDANDO EM SEMI-INERTE COCHILAR

OS TEUS TALENTOS, QUE SÓ IRÃO DESABROCHAR

AO RECEBEREM DIRETAMENTE ENDEIXAS.

SE NADA FAZES, O COCHILO É MAIS PESADO

E SE ESCONDE DE TI, SERENAMENTE.

DEIXAS QUE A VIDA DIÁRIA TE APOQUENTE,

SEM QUE TEU SONHO SEJA REVELADO.

COMO É FÁCIL DEIXAR NA SONOLÊNCIA

ESSES PEQUENOS BROTOS DA INDOLÊNCIA!

ENDEIXAS II

SEM DUVIDAR, ALGUM ESTÍMULO É PRECISO,

COMO É PRECIOSO SEU PURO DESPERTAR;

MAS CADA UM OS PODE CONCILIAR

NESSE VAGO MOMENTO DO INDECISO,

QUANDO O BOTÃO SE ABRE E A FLOR ALISO,

MEIO SURPRESO POR SEU DESABROCHAR

E CHUVO SOBRE MIM, A FERTILIZAR,

SEM QUE DE FORA ME VENHA ALGUM AVISO.

MAS DE OUTRAS VEZES, SÃO REAIS ENDEIXAS

QUE ME INDICAM O MOMENTO DE INICIAR.

IGUAL PAPEL DECORADO A RECITAR,

NA EXPLOSÃO MOMENTÂNEA DE MINHAS QUEIXAS.

ALHEIO ESTÍMULO QUE ME VENHA A DESPERTAR

E A INÉRCIA A SACUDIR EM NOVAS DEIXAS.

ENDEIXAS III

QUE SEJAM PARA MIM PURAS AS QUEIXAS,

PORÉM LAMÚRIAS SEM REAL VALOR,

NEM VELHA LÁSTIMA DE PERDIDO AMOR,

NEM BRANQUECER PAULATINO DAS MADEIXAS.

QUE SEJAM PARA MIM FRACAS AS PECHAS,

QUE TODA A INJÚRIA PERCA O SEU VIGOR,

QUE ACUSAÇÕES SE EXTINGAM SEM ARDOR

E SÓ PERDUREM AS MAIS GENTIS DAS DEIXAS.

PARA QUE ESPARZA AO REDOR MEU RELUZIR

E NÃO SEJA UM OUTRO ASTRO ADORMECIDO.

A CENTELHA AÍ ESTÁ, POR TODA A VIDA,

SIRVA DE ENDEIXA APENAS O REABRIR

DESTES MEUS OLHOS PARA O DIA CONSEGUIDO

EM MORNA CHAMA, MAS AINDA PERSEGUIDA.

PASSOS TORTOS I – 11 AGO 13

Meus passos tortos pela praia escorrem,

derramando sobre a areia depressões,

na maioria, construídas ilusões:

só comprimi as ravinas que assim morrem.

Mas há mil grãos que minhas solas também forrem.

Levo comigo as reais depreciações;

ao se fecharem as rasas contrações

nunca esses grãos para seu fundo correm.

Deixo na areia o meu peso transitório;

bem passageiras são as marcas desses grãos:

melhor espelho não há da sociedade.

Cada caráter que se tem por peremptório

um dia se afasta e seus impulsos vãos

logo se enchem com argueiros sem saudade.

PASSOS TORTOS II

Teus passos tortos pela vida passam,

deixando marcas em corações e mentes,

em cada rasgo impulsos diferentes,

em cada talho as impressões se abraçam.

Nos mais íntimos teus até perpassam

por longo tempo, teus passos decorrentes,

alguns deles os ampliam, tais quais lentes,

outros os afastam, teus sentidos mal os caçam.

Mas estas marcas, sem ter nada de uniformes,

bem rasas são, iguais passos na areia;

pela paixão um corpo se incendeia,

pelo ódio ficam mentes desconformes,

mas chega o vento e sobe outra maré

e até te esqueces do amor ou da ma fé.

PASSOS TORTOS III

São nossos passos tortos juntamente

e por mais sérios os tomemos, ilusórios,

são depressões no viver, pontos inglórios,

que se deixa de lembrar, rapidamente.

A vida inteira em repetição frequente,

de passos mil de pressão circuncisórios,

de passos vagos escusados e irrisórios,

pegadas rasas sem força mais potente.

Passos na areia, no vento, em plena chuva,

até passos solidários no arvoredo,

passos nos rios, nas pedras, nos lençóis,

meias rombudas, sem nitidez de luva,

calor disperso apenas no lajedo,

já evaporado nos primeiros arrebóis...

DANÇA DE ESMERALDAS I – 12 AGO 13

SEMPRE O VERDE ME ATINGE, AO CINTILAR

DO METÁLICO ORVALHO SOBRE AS FOLHAS

DO IRIDIADO EXPLODIR DE GORDAS BOLHAS,

DAS PENAS PAPAGAIAS A BROTAR...

EU INSPIRO A CALIDEZ DO VERDE-LAR,

QUANDO AS VIDRAÇAS EM RANCOR ME MOLHAS,

EU AMO O VERDE RÚSTICO DAS TROLHAS,

CADA PAREDE LENTAMENTE A REPINTAR.

EU TEMO O VERDE-PANTANAL MAIS SUFOCANTE,

CROCODILIANO RESSURGIR DE MIL LAGARTOS

QUAIS DINOSSAUROS PIPOCANDO EM FESTAS.

E NESSAS FOLHAS SEM GANGA DOMINANTE,

AINDA ME ESPELHO, COMO EM VERDES PARTOS,

NO DURO VERDE-ESCURO DAS FLORESTAS.

DANÇA DE ESMERALDAS II

PENSO NO ARCO-ÍRIS DE GAMA INCANDESCENTE,

ENTRE O MOSTARDA OCREADO E O AZUL-BERILO,

PERCEBO O VERDE EM GAFANHOTO E GRILO

E EM CADA TOM DE TURQUESA EFERVESCENTE.

ENXERGO O VERDE EM CADA ADOLESCENTE

QUE DA CASA DE SEUS PAIS FOGE AO ASILO:

QUER ASCENDER A MONTANHA E SOBE AO SILO,

VERDES AS FALDAS DO ALPINAR INGENTE.

E VEJO O VERDE EM CADA MAREMOTO,

NESSA INVERSÃO ALIENÍGENA DOS DISCOS

E NO FULGOR DA ESTRELA SURPREENDENTE;

E ESCUTO O VERDE NO CREPÚSCULO IGNOTO,

EM QUE A LUZ SE REPRODUZ EM TANTOS CISCOS,

SOB A VERDE IMITAÇÃO DO SOL POENTE...

DANÇA DE ESMERALDAS Iii

E EXISTE VERDE NO SANGUE DERRAMADO

QUE EM MIL FLORES SE ESCORRE A REBROTAR,

VERDE O LARANJA NA GEADA A CINTILAR

E É VERDE O TRIGO DO INSTANTE JÁ PASSADO.

VERDE É O SORRISO DE QUALQUER ENTE AMADO,

ANTE QUE O AMOR CONSIGA MADURAR,

NUMA AMEAÇA DE QUE VÁ SE DISSIPAR,

VERDE FRESCOR TEM O AMOR DESCOMPASSADO.

VERDE É O LUAR SOBRE O LAGO DOS ENCANTOS,

VERDE O SUOR NO LENÇOL APÓS O ORGASMO,

A VIDA É VERDE ENQUANTO AMOR GERMINA,

NA TURMALINA SINFÔNICA DOS PRANTOS,

NO VERDE-CINZA QUE ANTECEDE O PASMO

DO VERDE-ARCHOTE NO FULGIR DA MINA.

VOZES PRESENTES I – 13 AGO 13

Dizem que o dia de hoje traz azar.

Por sorte, é terça-feira. Fosse sexta,

a desgraça campearia como besta,

mugindo males no seu galopar.

Mas hoje é terça e existe um atenuar...

Toda a tristeza assume tons de festa,

há elegia, porém, em cada giesta

se o desencanto se busca dissipar...

Em vão se buscam as vozes do presente,

transitórias em quanto é concebível,

no fim da frase seu início desgastado.

Só a memória se aferra ao inclemente

deslizar da palavra, em voo incrível,

articulando a voz audível do passado.

VOZES PRESENTES II

A inteligência se lança ao incognoscível,

nessa breve percepção do que é futuro,

por minutos talvez – e esbarra em muro

da coletânea multifária do possível.

Nessa voz de um porvir inexaurível

mil formas nos contemplam lá do escuro;

dita a palavra inicial de um esconjuro

ela pode se esbater no intransponível.

As vozes do presente nos assaltam,

igual que fossem, de fato, bem tangíveis,

mas se perdem na transiente atualidade,

enquanto vozes do futuro nos esmaltam,

em cento e uma nuances transmissíveis

rearticulando a voz audível do passado.

VOZES PRESENTES III

Que resta então desse futuro plurinoto,

porém de fato tão só imprevisível?

Qual o fio da meada do possível

será escolhido, qual número de loto?

Que resta então do presente veloz moto,

que nem podemos tocar, mas é visível,

e nem podemos prender por mais audível

em vozes brandas ou roucas do ignoto?

Sem dúvida, só nos resta o vão antanho,

em conexão inexaurível com o porvir:

some o suspiro em breve instante alado

e não se escuta mais o som do ganho,

nem se percebe do futuro o dirigir

a vida inteira ao inaudível do passado.

PREFÁCIO ALHEIO I (2007)

Antigo amigo veio pedir-me à esposa

que escrevesse um prefácio a seus poemas;

sentiu-se honrada e, sem quaisquer dilemas,

escreveu-lhe uma página formosa...

Eu mesmo a digitei, na estranha prosa

que ela costuma usar, os velhos lemas

retornando, em metáforas extremas,

embora ela me afirmasse, melindrosa,

que nem sequer eram maus aqueles versos,

mas só prosa mal feita; sentira-se obrigada

a aceitar o convite, ainda sabendo

que são os meus mais numerosos e diversos.

É claro que o negou, porém honrada

Sentiu-se, ao tal pedido recebendo...

PREFÁCIO ALHEIO II (14 ago 13)

Já ouvi dizer que não há qualquer poeta

que dê o devido valor ao verso alheio,

mal comparado com os que vem do próprio seio,

produz desprezo e ao juízo sempre afeta.

Mas sempre existe a percepção discreta

dessas linhas alinhadas de permeio;

eu sei reconhecer, segundo o creio,

os versos puros que têm missão secreta.

Embora mais valor sempre dê à forma

do que aos versos livres, folhas secas,

presas por tinta à página inocente,

com largo esforço que a visão logo conforma

pela própria formação, as frases pecas

a voltejar num vazio incoerente...

PREFÁCIO ALHEIO III

Posso dizer que o prefácio que ela fez

bem mais poético foi que o conteúdo

desse impetuoso medíocre e posudo

no desespero que aceitas quando o lês.

Sei que até hoje os termos dessa grês

não foram publicados... Verso rudo

precisa de ser pago, não me iludo,

por si mesmo ou por ti, se nele crês.

Foi assim que ela criou a “Catedral

de Palavras” para o título da obra,

no que deixou extasiado o nosso amigo.

Mesmo sabendo ser em nada meu rival,

em “Choupana de Palavras” se recobra

o meu orgulho por meu próprio umbigo!...

AUTOCÁRCERE I (15 AGO 13)

Na placenta da noite eu me debato,

da vida amniótica na espuma,

um feto em escuridão que me consuma,

na umbilical visão do simples fato.

Essa caverna onfálica é meu contato

com o mundo exterior que assim se esfuma.

Digitalmente o dia se me apruma:

ultravermelho é o sol do meu recato.

Estou preso em mim mesmo e neste ventre

sou filho e mãe, cativo e carcereiro,

fraco demais para quebrar grilhões,

por mais que as grades da prisão adentre,

fui eu mesmo que me fiz seu prisioneiro,

forjando os elos de minhas solidões!...

AUTOCÁRCERE II

Enquanto ao ventre, existe segurança;

há calidez no sono do alimento;

não mais que a própria solidão frequento,

meu toque apenas tal placenta alcança.

Até que ponto é consciente a pré-criança,

sem o estímulo do perigo e do tormento?

O eu resgata-se em seu autoatendimento

ou depende de uma outorga em abundância?

Em meu sonhar retorno à obumbração,

laranja e rubra, exposta à luz do sol,

no amniótico esplendor do pensamento,

nesse embalo de um alheio coração

e iluminado em cerração por tal farol,

o ventre inexistente então frequento.

AUTOCÁRCERE III

Anos passados e décadas da expulsão,

por meu cordão apenas sustentado,

transformado em umbigo ressecado,

vivi pujante no afirmar desta noção.

Mas desvendei a vida o sem-razão,

esse vazio que se encontra a cada lado,

esse remorso em coração atribulado,

reconhecendo do bem toda a ilusão.

E assim me retraí. Não mais espero

que acetileno as grades me recorte

ou fio de lêiser contra os tetos que escolhi;

que a solidão busquei e nela eu gero

os aportes multicores de minha sorte,

encarcerado pelo muito que vivi.

CALOR INVERSO I – 16 AGO 13

A primavera se aproxima e chega o vento

a me trazer mil lembranças do verão,

que para mim é um desusado caldeirão,

em canibal feitiçaria do momento.

Este inverno que para outrem é tormento

a mim estende, qual em manto, proteção;

somente o frio é que me traz exultação

eu sou eu mesmo e do frior não me lamento.

Mas cada ano que passa, me parece

que o frio encolhe e que o calor me abraça,

quando meu próprio calor é suficiente;

a chuva fresca sobre minha nuca desce,

enquanto cruzo o coreto desta praça,

mas se evapora e me sinto inda mais quente.

CALOR INVERSO II

Dizem que os velhos sentem mais o frio

do que o calor gozado quando moços;

aos setenta, o Rei David, que mil pescoços

cortou durante as guerras, no seu brio,

já não mais se aquecia e o calafrio,

sob as cobertas, igual que em fundos poços,

nem o lembrava sequer de seus retoços,

quando era adulto em seu vigor de rio.

Até lhe deram nova esposa para as noites,

para ver se o aquecia e diz a história

que nunca o rei sequer a conheceu...

Nesse eufemismo contrariando mais afoites

que frase busquem redigir peremptória:

sentia frio e de seu ventre se esqueceu...

CALOR INVERSO III

Mas comigo não é assim e a cada ano

me parece menos gélido este inverno

e mais terrível do verão o úmido inferno:

só de o lembrar eu suo e a testa espano...

Ainda tenho uma semanas, sem que o insano

calor de estio me conduza para o Averno;

por sorte julgo que o verão não seja eterno:

mesmo na tumba, não será meu soberano?

Por isso, sempre almejei a cremação!...

Será um calor inverso ao dessa chama,

mas esse eu sei ser apenas temporário...

Que minhas cinzas se espalhem à viração!

Mas e se cada grãozinho então se inflama,

todo frio a desafiar, bem ao contrário?