AQUARELAS NA ÁGUA / SANDRIGO

AQUARELAS NA ÁGUA I (23 OUT 11)

Dorme a meu lado como doce rosa,

enquanto permanece a tua fragrância,

antes que chegue a breve circunstância

dessa primeira queda, temerosa,

da pétala espantada e desditosa,

percorrendo em volutas a distância

entre as sépalas e o solo nessa instância,

a ser seguida por companhia numerosa...

Dorme sobre o meu velho travesseiro,

durante os dias meus que tenho ainda,

minha pele já rasgada em mil escolhos,

antes que venha o sono derradeiro,

no qual eu dormirei a noite infinda,

enquanto a luz recai sobre meus olhos...

AQUARELAS NA ÁGUA II

Dorme a meu lado, enquanto a Lua pinta

seus meios-tons de plácido esplendor...

seu leve ocre prateado e sem calor,

seu fraco azul que de negro se ressinta...

Dorme a meu lado, enquanto escorre a tinta

das aquarelas macias desse amor,

das águas-fortes dos momentos de rancor,

dos entrechoques verbais de cada finta...

Dorme a meu lado, que me encontro só

e já cansado de viver na exaltação,

embora baste a mim mesmo, certamente.

E por prender-me a ti, seguramente,

ao pincel rubro de teu coração,

pinta meu rosto com beijos de cipó.

AQUARELAS NA ÁGUA III

Está a cidade povoada de fantasmas,

vazia dos corpos que já conheci,

tanta gente que gastou solas aqui,

que teve sonhos e engoliu miasmas...

Tanta gente que ainda em vida foi zumbi,

a quem ao veres te arrepias e pasmas,

em viva assombração de que te espasmas,

no igual espanto àquele que eu vivi...

São os jovens que morreram revoltados

ou esses poucos que quiseram se matar,

a surpresa multidão de assassinados...

Os doentes já esperando os resultados

e tantos velhos que só queriam descansar,

depois de serem pela vida derrotados...

AQUARELAS NA ÁGUA IV (2009)

Um dia também eu, definitivo,

serei fantasma nesta minha cidade.

A ela já pertenço, de verdade,

ainda que o corpo permaneça ativo.

Porque fantasmas deixamos todo dia

impregnados nas ruas e calçadas,

cruzamos por nós mesmos, pobres nadas,

que abandonamos à egrégora vazia...

Caleidoscópio de nomes esquecidos

ou cornucópia de rostos relembrados,

que agora indicam as ruas da metrópole...

Rostos de restos há muito apodrecidos,

de velhas roupas ainda acompanhados,

na sociedade das gavetas da necrópole...

AQUARELAS NA ÁGUA V (23 OUT 11)

Sinceramente, espero ter a dita

de ser levado ao forno crematório,

não quero extrema-unção nem um cibório,

mas que me cremem sem ter choro ou grita.

Eu não desejo os falsos círios do velório,

nem ter no queixo fugaz laço de fita

ou esse esparadrapo que hoje evita

que o queixo caia, em falso peditório!...

O que eu anseio é da cinza a rapidez,

sem ter sequer uma urna mortuária,

que me joguem no mar ou num monturo!

E que os fantasmas de tanta palidez

que deixei para trás, com força vária,

não me tentem reocupar em canto escuro.

AQUARELAS NA ÁGUA VI

O que desejo são as puras aquarelas,

enquanto o Sol nos olhos dá-me flores,

enquanto os dedos desenham estertores

de amor e ódio e do perfume das donzelas.

Quero assistir as paisagens das janelas

dos trens da vida em talho-doce e a cores,

gravuras em minha mente sem rancores,

antes que seja destroçada por procelas

de aneurismas ou insultos cerebrais...

Dorme a meu lado, então, doce fantasma

que sempre amei, embora nem conheça.

Até que venham os sonhos dos jograis

a descrever a hora em que se orgasma,

no derradeiro prazer que resplandeça!...

SANDRIGO I (24 OUT 11)

Em Istambul, uma nossa companheira

perdeu as malas, deixadas para trás...

Nesse descaso que a companhia traz,

não nos surgiram nunca sobre a esteira...

Premonição decerto derradeira

que a avisou, talvez, que nesses lás,

por essa vez, não encontraria a paz,

que havia intrigas e a inveja costumeira...

Ficamos largo tempo no aeroporto,

eu sentado, cuidando das bagagens,

minhas familiares saíram a fumar...

Enquanto a outra, em sala sem conforto,

empreendia a sua busca com coragem,

sem sua mala conseguir localizar...

SANDRIGO II

E não queria o guarda do aeroporto

à minha esposa de novo permitir

que entrasse, para me substituir:

pitar cigarro parecia outra viagem!

Queria que passasse o desconforto

de uma nova revista, outra triagem,

qual transportasse granada na bagagem

e o imenso prédio quisesse destruir!...

Foi necessária a intervenção do guia,

Hassan Enki, a quem muito agradeço,

antes que ao prédio retornar pudesse.

Pois só depois que me substituiria

eu poderia localizar, com meu apreço,

tal bagagem mais perdida que uma prece!

SANDRIGO III

Fomos depois levados pelo guia

até um hotel, de nome venerado,

pois Venera certamente era chamado

e tratamento bom se recebia...

Tomei o banho que já tanto queria,

prestei tributo a Caco, já cansado...

Já era tarde e o sono perturbado

foi por exótica e bela gritaria...

Pelas seis da manhã, um muezim,

seu chamado eletrônico ampliado,

se pôs a convocar fiéis à prece...

Nessa cidade de ocidental paisagem,

em cujo povo fracamente islamizado

a proteção de Alá ainda desce!...

SANDRIGO IV

Alegava o hotel ter quatro estrelas;

o café da manhã era excelente;

ofereceram banho turco à gente

e instalações de spa para as donzelas...

Naturalmente punham preço nelas,

seriam extras bem caros, claramente.

Eu não buscava artifícios, certamente,

são as mulheres que anseiam ser mais belas

e acreditam que tais coisas ajudam...

A mim bastava olhar pelas janelas,

pelas quais via anúncios luminosos,

figuras digitais, que sempre mudam,

quase antes que se possa percebê-las,

enquanto os carros se moviam silenciosos.

SANDRIGO V

Foi a coisa que me chamou mais a atenção,

esses veículos quase a se tocar,

que quase nunca se ouvia buzinar...

Só os megafones alertavam a multidão,

quando de novo na almenara estão

os muezins, mais uma prece a convocar.

Que coisa incrível esses carros a ocupar

o espaço inteiro e sem contestação!...

Ninguém gritava para pedir passagem,

apenas ocupavam o lugar...

Mais tarde vi, para meu divertimento,

que os transeuntes ali também se engajem,

pelas ruas, sem nunca se empurrar,

mas avançando em constante movimento...

SANDRIGO VI

E nas calçadas havia escadarias

conduzindo a ocultas aberturas...

Vasta ameaça em noites mais escuras,

possíveis quedas ao longo dessas vias!...

Assim se abriam, junto às paredes frias

e lá no fundo, sob luzes duras,

filas de roupas, mas que por loucuras

só em atacado adquirir podias!...

Só mais tarde descobriram novas lojas,

em outras ruas já um tanto afastadas,

em que a venda peça a peça era normal.

Enquanto nas primeiras já te enojas

pelas ofertas mil sendo mostradas,

nesse comércio sem nada de oriental!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 10/12/2011
Código do texto: T3382478
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