NATAL NO PAGO IV & MAIS

NATAL NO PAGO V

Mas o Batista derrubou uns alambrados,

fez carnear umas ovelhas e queimou

um capão de ocalitos, que plantados

tinham sido pela mão do próprio avô

da dona dessa estância... Dispersados

foram seus seguidores, que juntou

o fazendeiro uns capangas malcriados,

tocou os outros e o Batista degolou!...

Foi então que o Jesus saiu dizendo

que isso não era certo, que essa guerra

feita em tempo de paz, ia acabar!...

Sua mãe viúva no ranchito foi vivendo,

Jesus foi rezar missa pros sem-terra,

querendo o pampa todo reformar!...

NATAL NO PAGO VI

Porém Jesus, que era analfabeto,

foi à cidade com o Bispo conversar;

andou vivendo uns tempo com os sem-teto,

mas foi na escola se alfabetizar.

O Bispo deu apoio, fez exames,

completou faculdade o bom Jesus,

fez concurso pro Estado e até tem PAMES

e numa Páscoa foi pregado numa cruz!

Mas era só um treato salafrário: (1)

ninguém morreu; até os dois ladrão

tavam bebendo canha no outro dia!...

Jesus de Nazaré fez seminário,

foi ordenado e hoje faz sermão,

em que prega essa nova Teologia!...

(1) Teatro.

NATAL NO PAGO VII

A gente nota assim que é outro dia:

houve um Jesus que proclamava a fundo,

que o reino Seu não era deste mundo:

lugar das almas que para Deus queria.

Mas o Jesus de agora é doutra cria:

se interessa pela carne e pelo imundo;

é mais superficial, pois o profundo

para esse povo de hoje é sem valia!...

O que ele prega é muito mais concreto:

é bem verdade que a fé é a morte

se não tiver as obras, mas o pobre

sempre temos conosco, branco ou preto;

mas pouca gente consegue ter a sorte

de um churrasco no céu que nos recobre!

NATAL NO PAGO VIII

Hoje em dia, essa gente revoltada

só deseja estragar o que está feito:

não trabalha nem planta e põe defeito

na querência em tantos anos empreitada.

Pois Senado e Imperador de cambulhada,

só por mais votos, sorrindo com trejeito,

ainda apóiam esse povo sem proveito,

que apenas come e bebe e não faz nada.

Fico a pensar se o Patrão Velho da Invernada,

lá de riba das nuvens, faz questão

que assentamentos na terra recortada

desmanchem dos crioulos o potreiro,

carneiem as ovelhas e a boiada

abigeatem e a destruam por inteiro...

NATAL NO PAGO IX

Ou se o Jesus de ontem nos diria

que deveríamos largar a antiga trilha

de nossa terra, da pecuária filha,

para entregar os campos da magia

do velho andejo, do alambrador, da cria

do minuano, que a geada mesma ensilha,

da boiada que tropeava milha a milha,

nas campereadas de ardor e de energia,

para que fiquem assim abandonadas,

pelo pretexto de dar terra a quem não tem,

mas que não planta nem semente espalha

ou se o bom Deus, nas nuvens algodoadas,

que manda o arco-íris para nós também,

não prefere abençoar a quem trabalha!

NATAL NO PAGO X

Agora cabe a ti, neste Natal,

tomar o teu partido, bem consciente,

pela nova doutrina dessa gente

ou se preferes o mais antigo aval.

É bem verdade, coisa natural,

a que o gaúcho assiste, indiferente,

que os campos de arroz,freqüentemente,

substituíram a pastagem por taipal.

As coisas mudam, é certo, meu amigo:

se encolhe o campo do crioulo antigo

e o tempo já passou da Farroupilha...

E quanto mais se ajuntam multidões

pelas cidades, mais as tradições

o povo lembra dessa velha trilha.

NATAL NO PAGO XI

O fato é que o gaúcho deste dia

não usa bota nem poncho, anda de carro:

toda essa antiga história que aqui narro

já se foi para o passado em que existia.

A charrete não mais enfrenta o barro,

carro de boi perdeu a serventia,

o herói antigo que a lembrança cria

só nos fantasmas da memória agarro.

Jesus se foi e é tempo de outra lida...

Para esta história não ficar comprida,

vou dar fim a esta série de sonetos...

Que no teu coração ideais secretos

se realizem ao longo de tua vida

e que inda vejas gaúchos nos teus netos.

EROCÍDIOS

Hoje não vejo o que chamar eu possa

de amor ou simpatia ou chama pura,

fonte de inspiração, limpa e segura,

melancólico derrame ou vasta troça

nesta minha vida patética que esboça

pouco mais que um anseio pela agrura,

que se recusa a aceitar qualquer ternura

por uma vida a dois que seja nossa...

Hoje percebo de tocaia a indiferença:

não mais me importa amar ou ser amado

e é isso que interfere em minha ascensão,

porque não mais me instiga a bemquerença,

nem posso me inspirar em ser magoado

para mais versos vazios na escuridão.

DENÚNCIA I

Odeio os olhos que te vêem e eu não,

agora que estás longe e que te espelham

no fundo de seus olhos, que te encelham

por trás das pálpebras e cuja aceitação

de ti é pouco mais que indiferente,

enquanto a minha, a ânsia de te ver,

me explode dentro ao crânio, sem poder

mais do que imaginar como é freqüente

o número de vezes que, gulosos,

ao te olharem tais olhos, com prazer,

tiram nacos de ti e me espoliam...

Como eu queria esses jactanciosos

de ti afastar, por olharem, sem saber

quanto furtavam nas vezes que te viam!

DENÚNCIA II

Quem te levou de mim, no tempo velho,

no qual tu me deixaste para trás?

Qual a trilha que tua sombra ora perfaz

e quem foi que te afastou de meu conselho?

Qual é o olhar que te serve hoje de espelho

e que tua imagem sob as pálpebras refaz?

De quem os cílios de tal grade pertinaz,

dessa esclerótica jungida por tal relho?

Ficaste presa nas vistas do inimigo...

mil instantâneos nas íris dessa malta

que mal te dedicou um pensamento...

Quantos olhos te vêem e eu não consigo!

Se um dia retornares, quanto falta

daquela que alegrou meu sentimento?

DENÚNCIA III

No fundo de seus olhos, cada um

que te contempla, leva teu retrato,

tirado num instante, sem recato,

e o guarda para sempre, envolto num

marasmo de mil outros, sem que algum

tenha maior importância, triste fato

que aquela por quem tanto me debato

pertença a eles, sem sobrar nenhum...

Repara, não é ciúme de um momento

em que reprove um coito passageiro;

minha sede de ti vai bem mais fundo:

reclama é o tempo perpassado lento

em que as imagens que tinha, som e cheiro,

naufragaram nos baraços deste mundo.

DENÚNCIA IV

Pior ainda, eu vejo e a ninguém culpo

por roubarem no olhar partes de ti;

afinal, foste tu mesma o alibi,

pois fugiste de mim e estás distante.

Porém de modo algum a ti inculpo,

nesta denúncia que registro aqui;

porque eu também roubei, quando te vi,

sob meus olhos guardo teu semblante.

E sei roubaste o meu por um instante

E, mesmo que não queiras, o conservas,

bem lá no fundo, no âmago dos olhos.

E assim me espelhas, em sonho delirante,

pois estou preso em ti, imagens servas,

que levaste de mim, fardo de espólios.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/10/2011
Código do texto: T3291013
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