TELA DE TOQUE IV & MAIS
TELA DE TOQUE IV
Aprenda com seus erros e tristezas.
Pelo menos, nunca tente difundir
sua amargura entre outros; saiba ouvir
e guardar para si suas incertezas.
As pessoas se iludem nas belezas
de versos e palavras. Contribuir
para essa trama lenta é produzir,
mais cedo ou tarde, uma série de baixezas.
Console sempre e nada espere em troca.
Quando ajudar, não espere ser amado
e muito menos por tal bem agradecido.
É agindo como adulto que se aloca.
sobre alicerces firmes no passado,
a construção do futuro pretendido.
TELA DE TOQUE V
Mais cedo ou mais tarde, aprenderá
que ajudar e acorrentar próximos são;
que, no momento de estender a mão,
sua escolha é livre... Assim, não deverá
esperar por eterna gratidão,
bem ao contrário. Pois quem ajudará
irá marcar a ferro e poderá
criar rancor mais firme que paixão.
Isto eu já vi. Quando um presente caro
dar decidi, por generosidade,
ocasião houve em que mal interpretado
por certo eu fui. Ofereci amparo
gratuitamente e pensaram ser maldade
esse presente que mal chegou a ser usado.
TELA DE TOQUE VI
Havia uma serpente matutina
enroscada na Lua, em plena glória;
seus feitos relatados pela história,
enregelada na luz que o Sol afina
e suaviza, em manteiga e margarina
ou em queijos de prata e merencória
papa de prata, limalha de uma escória
que metal nobre foi e agora ensina
unicamente o poder do magnetismo:
ao ímã aparas correm; junto aos polos
se aninham, conformando outra serpente,
numa implosão de metal e mimetismo,
desenrolando o papiro em estranhos rolos,
que tem, ao menos, um desfecho diferente.
TELA DE TOQUE VII
Não é nova a sensação. Já muitas vezes
bati contra as paredes, sem que portas
nelas abrisse, essas muralhas tortas,
em que deixei meu sangue tantos meses...
Em minha cela, convivo com minhas fezes,
longo produto de grávidas retortas
e as moldo entre meus dedos, folhas mortas,
para compor sonetos que até prezes...
Às vezes, penso poder abrir passagem,
mas vejo o sangue e a pele nas paredes,
marcas fetais em busca da miragem.
Contaminado eu fui pelas minhas sedes,
que me impedem de nascer, grossa trançagem,
que me emplacenta em reforçadas redes...
TELA DE TOQUE VIII
Abro o outlook e vejo, ao rodapé,
"Nenhuma mensagem nova" e desconecto:
mais um insulto ao meu pobre intelecto,
que ser reconhecido um dia, até,
pensou possível ser e teve fé
de poder alcançar melhor afeto
e escapar-se de ser prenda e objeto:
dos deuses um inseto, a seu sopé.
Mas não encontro na tela lenitivo,
pois só escrevem os que de mim precisam
alguma coisa de mim, que assim lhes desse.
E os enleios da Internet, em dom esquivo,
me negam mesmo o solo em que já pisam
e nunca encontro as mensagens que quisesse.
LENÇÓIS DE ESPANTO I
Vou despejar a luz no meu bornal,
como faço, ao final de cada tarde:
a sombra de minhas mãos o solo encarde:
dobro o manto de Apolo, no final.
Enrolo o dia, com fim proposital,
como lã branca que a memória carde:
a fúria do calor nos dedos arde,
revoltada em tal descanso vesperal.
Retiro então do alforje a meiga sombra,
que espalho pelos prados como um véu:
doce mortalha para meu descanso.
E a sola de meus pés sobre essa alfombra
ondulará, sob os reflexos do céu,
nesses espinhos de luz que agora alcanço.
LENÇÓIS DE ESPANTO II
Eu dançarei sobre a noite, lentamente,
evitando pisar sobre as estrelas,
que são rosetas essas luzes belas,
de tocaia em cada poça indiferente.
Guardo na bolsa a luz alvinitente,
enquanto, no veludo dessas velas
eu deslizo, cantando mil balelas,
até chegar à banda azul do Oriente.
Lá eu me agacho e consulto o coração,
medindo, com cuidado, esse frescor,
até da hora completar-se o rol...
Retiro a luz mantida em comunhão,
levanto a fímbria da saia do negror
e, a pouco e pouco, vou soltando o Sol.
AMOR DE SOMBRAS I (2006)
Meus pensamentos me espreitam de escaninhos secretos:
são morcegos alados, com asas de algodão
ou gaivotas famintas, roendo o coração,
na ciranda opressiva da morte dos afetos...
Aqui eu vivo a sós, meus céus são mais discretos
que as bênçãos zodiacais de arcana maldição:
não faço o que me querem, recuso a indicação
dos signos tortuosos de antigos dialetos...
Sou a sombra fugaz da sombra indiferente:
sou reflexo despido e desnudo é meu reflexo,
sou frestas cristalinas de mil cristais rachados.
Sou porta-voz das sombras e sinto-me impotente
para negar minha língua aos que não têm mais sexo
e a campainha me apertam com dedos descarnados.
AMOR DE SOMBRAS II
Há coisas que nem sei se te falar devia,
não de erradas ou secretas, mas de inúteis.
Existem certas coisas que, inconsúteis
na alma não provocam o efeito que eu queria.
É inútil te falar, porque não quererias
ouvir. Mesmo que saibas serem úteis
as coisas que te digo e em nada fúteis,
evitas escutar. Talvez que esperarias
que minha boca fique aberta eternamente.
Passado o tempo em que escutar devias,
quando quiseres, meu tempo já passou.
Escuta agora, enquanto estou presente,
antes que cale a boca e cheguem dias
em que tudo que era inútil se acabou.
AMOR DE SOMBRAS III
Irei tentar novos ritmos e esquemas,
mas não agora. Já sinto a nostalgia
da influência dos mortos neste dia,
não que pretenda plagiar-lhes seus poemas.
Porém se encaixam em mim os entimemas (*)
que hão de levar-me à chuva serodia
de novos artifícios, de escusa fancaria:
a desusadas métricas, apenas...
Não que meu estro em tal filão copie
porque, de fato, são métricas antigas,
que deixei de empregar por livre escolha.
E que em meus versos, então, não mais adie,
num rutilar agudo, em velhas bigas,
conforme o vento em que se agita a folha.
(*) Silogismo truncado. Argumento em que uma das proposições é subentendida, seja a antecedente, seja a consequente.
AMOR DE SOMBRAS IV
Meu amor ama a paixão da solidão:
não que paixão amor final revele,
se bem que, em solidão, eu te desvele
o verdadeiro amor do coração.
Não que te ame em clara exultação,
como te amei um dia, mas que anele
poder amar o amor que mais compele,
desvele e vele a mais pura emoção.
Amar amor é real paixão de esteta,
que não deseja real o que deseja,
mas realiza, no ensejo que desliza
a lisa sorte escusa de um poeta,
gastrônomo do odor da solidão,
em que espuma e flutua o coração.
AMOR DE SOMBRAS V
Nem sei se sabes o que queres. Queres
poder dizer que queres o que sabes,
mas o que queres tu não sabes. Sabes
que não queres ouvir e assim me feres,
porque feres a ti. Mas não esperes
saber porque ferir hoje me caiba.
Cabe ferir a quem mais ferir saiba,
mas não te ferirá se um dia quiseres
um lance breve, em que outra dor recaia
no ferimento antigo que nutriste
na aguardança de outra dor que nele caia,
sobre a ferida, em gesto calculado.
Talvez te fira, mas não qual me feriste,
na distração de um amor já congelado.