BILHETE / REGALO / CAOLHO

BILHETE I (29 JUN 79)

Muito mais fácil para ti será esquecer-me

que eu me esquecer de ti, peremptório:

o amor que tens por mim, sonho é ilusório,

mas o que sinto por ti, parece encher-me

do ribombar enfim de um sonho antigo,

pois sempre quis achar quem mais me amasse

do que amor lhe tivesse; e me entregasse,

na sombra do sereno, um beijo amigo.

No entretanto, ao te julgar tão minha,

pelo que me dizias e até fazias comigo,

perdi de controlar a mansa ladainha...

E quando me dei conta, tamanho era o perigo

que não pude escapar: tornei-te minha rainha,

buscando te esquecer, porém jamais consigo!

BILHETE II (20 JUL 10)

De fato, te esquecer é coisa que não posso,

por mais que o experimente, em minha desrazão,

que estou emaranhado, perante a multidão

de quefazeres mil, atolado num fosso

de mil preocupações. Sou cão: defendo o osso

de meus bens materiais, em plena confusão.

são livros aos milhares, são discos em roldão,

são selos que inda guardo do tempo em que era moço

e que salvei do incêndio, embora muitos mais

tivesse amealhado ao longo destes anos:

não se viaja longe, tão cheio de bagagem...

Assim, estou confuso, meus laços são demais;

bem podem ser desfeitos, mas para tais afanos,

preciso de mais tempo e muito mais coragem.

BILHETE III

Por isso, fico preso à minha própria teia

e os anos vão passando de minha indecisão;

aos poucos, vou atando, com fios de coração,

outros casulos mais ao fardo que me enleia.

Não é que não deseje sair, por favor, creia,

mas lembro o que passei, em outra mutação:

perdi o meu passado, queimei o meu pulmão,

no vento que me arrasta, no fogo que incendeia.

E ainda sinto o efeito de tal recordação:

olho ao redor de mim, aos muros que tapei

com livros e com discos, com álbuns às dezenas

e fico a imaginar o custo de uma ação

que deixasse para trás o quanto rejuntei,

com tanto esforço, enfim, a custo de minhas penas.

PÓS-ESCRITO

Que vai acontecer, enfim, quando eu morrer

e tudo o que juntei ficar atrás de mim...?

Meus livros e os mil discos que amealhei assim,

depois que me afastar, que lhes há de suceder?

E os selos que guardei, nessas capas de brim,

que minha mãe costurou, a fim de os proteger?

Quinhentos mil ou mais, quem os irá querer?

Irão ser destruídos, ou se espalhar, enfim...?

Não é que valham tanto, em termos financeiros:

serão bem recebidos, talvez, por comerciante,

porém a preço vil, do lucro na sua busca...

Foi isso que fizeram, com armários inteiros

dos livros de meu pai, vendidos num instante

e o amor por esses meus a mente ainda me ofusca.

REGALO I (8 ago 79)

No vápido aroma, nas ânsias tão mornas,

meus dedos vorazes tuas vestes desvendam,

percorrem-te a carne, que desejos acendam

e em cálido ninho depressa te tornas.

No grácil perfume, em tua boca me enfornas,

a boca de todos, que todos contemplam,

a boca das faces, que os olhos retemplam

e a boca das trompas, um par de bigornas,

clamando por malho, que os foles atiçam,

meus dedos são beijos, na pele se enguiçam

e a boca em ciúmes, que finge ter medo,

talvez, que a outra boca, que aos poucos revela,

não queira agitada, tão mais que contê-la

nem possa em pudor que do ardor é arremedo.

REGALO II (22 jul 10)

Assim é que te quero, inteira nos meus braços,

açucena de luz, mulher que esperei tanto,

mulher que se espelhou nas gotas de meu pranto,

sem que soubesse ao menos o doce de seus traços.

Assim é que te quero, reunida em fortes laços,

a mística alma irmã, despida de seu manto,

sussurro em meu ouvido, a voz que inspira canto,

contida brandamente na concha dos abraços.

Assim é que te quero, perpétua e permanente,

mulher feita de sol, de vastidão e aurora,

teu corpo contra o meu, em beijo transparente.

Assim é que te quero, em nossa intensa hora,

por rápida e fugaz, que seja inteiramente,

tal qual já foste minha em encarnações de outrora.

REGALO III

O mesmo sonho teu partilho integralmente,

tua pele na epiderme, um divinal abrigo

que possa me acolher, no mesmo sonho antigo

de enfim me preencher das falhas do presente.

De enfim te absolver da falta que ainda sente

tua alma, que não guarda, na luz do peito amigo

aquele que a complete, que a afaste do perigo,

que a tome inteira e só, de forma permanente.

Assim é que te vejo, meus dedos na tua pele.

teus dedos sobre a minha, isentos de receio,

saliência e reentrância em pura exploração,

até que haja esplendor que tal amor nos sele,

sem que a menor reserva exista de permeio,

entre tua carne e a minha, em plena exultação.

REGALO IV -- CODA

Assim eu te sonhei, olhando da janela,

enquanto eu me chegava, por trás e sorrateiro,

a onda de perfume a me envolver inteiro,

a teia em que gravito, cometa de uma estrela.

Assim me aproximei e vi quanto eras bela,

a luz se difundindo, igual farol certeiro,

por entre teus cabelos, em sonho alvissareiro,

a luz que me possuiu, completo só de vê-la.

Assim eu me acheguei, apenas respirando

o som que vem de ti, meu coração pulsando,

ao ritmo do teu, brilhando de desejo...

E assim eu te assoprei, ansiado e até com medo,

por entre tuas madeixas, que ocultam teu segredo,

a saga multicor de meu primeiro beijo.

CAOLHO I (14 AGO 79)

Ai, como enxergo mal! Estas minhas lentes

Escondem de meu mundo, tão frequentes,

A mais completa e nítida visão,

Somente pelas lágrimas correntes,

Cujo contato, a deslizar, ondeia,

Quando a falácia e o canto da sereia,

Cercando de esplendor a imperfeição,

Sobre os olhos, qual brasa, se incendeia!...

De modo tal, que a mente me alucina,

Quando não vejo os olhos da menina,

Mas tão somente o que o olhar me mostra,

Numa certeza dura, em que me prostra,

Perante a realidade do infortúnio,

De saber que só a vejo ao plenilúnio.

CAOLHO II (29 JUL 10)

As coisas demudaram. Novas lentes

me permitem enxergar o meu entorno

com bem mais precisão e mais adorno

e os mil detalhes fazem-se presentes.

Meus fantasmas são também assaz frequentes:

quando ao redor de mim os olhos torno,

por entre lágrimas, em cortinado morno,

distingo vultos que julgava ausentes...

Não tenho acesso a uma visão do céu,

em que velhos amores se completam,

cujo retorno queria, mas nem peço...

São apenas minhas pestanas ou esse véu,

é entretecido dos fios que se projetam

de minhas suíças crescidas em excesso?...

CAOLHO III

Meu coração, porém, enxerga mal:

precisa ter as lentes da razão,

precisa submeter a imaginação

e acreditar no mundo material.

Porque dependo dessa natural

tendência à amorosa solidão,

dependo dessa estranha inclinação,

correndo a mente atrás do carnaval

que me revela, em plena fantasia,

um novo amor que acaba de chegar,

no passo e ritmo de minhas ilusões...

De novas lentes, assim, precisaria,

para forçar o peito a se enfocar

no leve arco-íris destas seduções...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 10/06/2011
Código do texto: T3025522
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