EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO I-XII

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO I

A diferença entre o calor do ambiente

que vem de fora, do qual recebo tanto

e o calor que provém do riso e pranto,

é que um é maldito em seu frequente

desgastar da energia. É, novamente,

já bem entrado o outono e, no entretanto,

queimo outra vez, imerso em seu espanto,

que me angustia a alma e rói a mente.

Quão mais queria ganhar calor humano!

Esse me alegra e ufana e dá poesia

e como me faz falta tal calor!...

Meu coração congela, inda que o arcano

calor da atmosfera, sem amor,

me esmague corpo e alma noite e dia!...

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO II

Recordo muito bem: era pequeno

e as estações se cumpriam regulares,

inverno após o outono, em esfriares

progressivos, como após a ceifa o feno

é empilhado. A primavera, de teor ameno,

seguia-se ao inverno. Os alamares

brotavam pelos campos, mil cantares

das aves... Mas logo, em seu veneno,

mostrava-se o verão, feroz em esgares,

revelados no céu, sem mais piedade:

seca-se o lago e o chão fica gretado...

Mas tudo acontecia em seus lugares,

já se aguardava que em tal fatalidade,

fosse o verão pelo outono acompanhado...

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO III

Mas agora, todo o clima é demudado,

revelaram-se tremendas variações...

Antigamente, não havia tufões

e era do sol o corpo acariciado...

Hoje em dia, com o ozônio dissipado,

sucedem-se em semanas estações...

Mesmo num dia, há invernos e verões

e nada ocorre mais como o esperado...

Eu não aceito o centrismo antropomórfico

que culpa o homem por toda essa mudança:

é um novo ciclo em que nos adentramos.

Nem tampouco o pensamento teomórfico:

não é um deus cuja paciência cansa,

porém nos mesmos que nos castigamos.

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO IV

Lamente embora desse outono a falta,

lamento ainda mais a falta tua:

minha alma foi cremada, toda nua,

geme em borralho junto à triste malta

de outras almas despidas de calor,

em que só o desespero forma a brisa:

por entre asfódelos a multidão repisa,

nesses campos vazios de todo o amor.

Queria o outono de cálida ilusão:

que buscasse minhalma e a retirasse

do tenebroso reino de Plutão,

onde caí, porque tudo me faltasse,

ao fugires de mim, exalação

de fogo-fátuo que a mente me sugasse.

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO V

Eu quero as folhas verdimulticores

que reluzem contra o azul descompassado,

unicamente no outono revelado

por bailarinas da brisa, em estertores.

Como crisálidas abertas para amores

são as folhas borboletas desse fado;

serpenteiam suas asas, nesse alado

adeus em que abandonam seus pendores.

Pois saltam sem um eco, sem estalo,

flutuando ao vento, doces fantasias,

para um baile de máscaras compradas.

Meu coração também deixou seu talo:

não mais se prende a ti, em nostalgias,

e nem sequer percebe as tuas pisadas.

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO VI

A cada ano, a verde clorofila,

que se mostra nos ramos, variegada,

do galho gris à flor amarelada,

a vida cria que ao redor desfila...

A hemoglobina é gêmea, de igual fila,

só por um átomo difere ao ser formada,

no que uma é verde, torna-se encarnada,

uma é da folha, a outra o sangue instila...

A clorofila à hemoglobina inveja,

pois corre pelas veias e impulsiona,

enquanto as folhas na fronde desfalecem...

Por isso, tantas cores ela almeja:

durante o outono, em explosão, detona

as mil nuances que em chamas permanecem.

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO VII

E pensa a clorofila, ao colorir-se

de amarelo e laranja e avermelhado,

que o movimento poderá ser imitado

da hemoglobina em artérias a fluir-se.

Vai do verde a primavera desvestir-se,

nessa busca do vermelho desejado:

se escoa em falso ardor, anuançado

por toda a seiva dos galhos a esvair-se.

Então, quando o pedúnculo é cortado,

solta-se a folha, em dança primorosa,

no amargo baile da desilusão...

Em leve zéfiro vai o sonho alçado,

mas logo ao desamparo, pesarosa,

ela escorrega, aos poucos, para o chão...

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO VIII

Assim é o amor. A clorofila verde

é que faz rebrotar o seu vigor:

galhos desnudos reagem ao calor,

na grande fronde, que em paixão se herde.

E nesse orgulho vital, até se perde

a noção mais profunda, que o verdor

se manifesta sem maior pudor,

antes que venha o verão e tudo lerde.

Passado esse calor, chegado o outono,

não mais queremos o antigo paradeiro.

Tomamos novas cores nesta busca...

Como é veloz a dança do abandono!

O coração adeja, em luz que ofusca,

e cai ao chão, em pouso derradeiro...

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO IX

Mas como é belo o outono, enquanto dura!

Foi-se a denúncia do orgulho primordial,

foi-se a vaidade no domínio do estival,

foi-se a vindima e a vida fez-se escura...

Mas, de repente, um novo amor nos cura,

quando retorna, em sumo natural,

medrando a sedução quase irreal,

que permanece enquanto amor perdura!

É então que retomamos novas cores,

num festim de clorofila e hemoglobina:

o sangue estua e a seiva é perfumada.

Pois só no outono da resina os esplendores

melhor se manifestam... e faz-se a mina

inexaurível... se a ilusão não for tocada...

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO X

E como é duro esse inverno após verão!

Após excesso de calor, perplexidade

nos atinge, em um rigor de frialdade:

surgem mil gretas em cada coração...

A borboleta seu casulo deixa em vão:

a geada a cobre em cristais de falsidade:

passa o verde ao castanho, em realidade

úmida e fria, que a derruba pelo chão...

Não há sequer a dança transitória:

somente a queda terminada em estalo,

dilacerada na selva de granizo...

Resta somente o tapete da memória

e nessas folhas cinzentas eu resvalo,

quais almas mortas em que agora eu piso.

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO XI

Porém se houvesse apenas primavera

que, com o outono, assim se intercalasse,

nossa vida então monótona tornasse,

qual floresta tropical feita de cera...

É necessário enfrentar a besta-fera:

se ao inverno o verão não contestasse,

se nunca a infância à velhice deparasse,

não saberia jamais o quanto a espera...

Qual se fosse prematuro o envelhecer,

crianças velhas a sofrer de progeria

e velhos gastos a sofrer de infantilismo...

Melhor é ter os quatro irmãos a entretecer

a cada folha que no chão caía,

para levar-nos a um novo romantismo...

EM BUSCA DO OUTONO PERDIDO XII

Portanto, não me deem a primavera,

com flores em excesso no relvado,

em mil nuances o verde contrastado,

nessa etapa inicial da longa espera...

Nem me deem o verão, que a sede gera,

todo o vigor nos suga, descuidado,

esse tempo em polvadeira amarelado,

que seja muito breve, quem me dera!...

Nem me entreguem o inverno como dom,

em que a cinza se converte num brancor,

em que a saraiva nos rouba dos cabelos...

Eu quero é um longo outono, o tempo bom,

no qual ainda me iluda um puro amor

de alguém que corresponda a meus desvelos...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 27/04/2011
Código do texto: T2933572
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