CACOS DE ÁGUA 1-12

CACOS DE ÁGUA I

Meus dedos eu enfio pelo gelo

e a lâmina levanto, vidro puro,

sensato e transparente: só é escuro

meu proceder por entre a lã e o velo.

A vida é doce, mas meus dedos melo:

entre certezas de azeite então me curo,

entre meimendro e urtiga ainda perduro,

em mil olhares já apus meu selo.

A lâmina desfaz-se em verdes cacos,

amarelados alguns, outros mais sujos,

marrons ou negros como sonhos mortos.

Eu bebo os cacos em dormentes nacos,

lambendo os sujos, tolos caramujos,

na verde busca por silentes portos...

CACOS DE ÁGUA II

Meus dedos eu enfio pela chama

e o fogo assim se aquieta, azul e manso:

faço-o dançar na mão e não me canso

dessas centelhas em que o sonhar exclama.

Eu busco o sol da noite que reclama

essa percepção maior que em sonho alcanço:

entre gotas de lava os dedos lanço

e pelas unhas cintila a antiga flama.

Gotas de lua me sobem pelos braços,

em busca da faringe e do pulmão:

da Lua o fogo a alma me ilumina...

Que só na luz de prata de teus traços

me ferve a mente em pura irradiação,

fogueiras acendendo em cada esquina...

CACOS DE ÁGUA III

Meus dedos eu enfio pela terra

e deixo as bactérias devorarem:

essas células mortas a levarem,

mudo combate em tão antiga guerra.

Esvai-se a pele, escudo que me encerra.

Descasca diariamente. A se espalharem,

voam os átomos que átonos deixarem

os capilares. Que a mente assim desterra.

Cedo ou mais tarde, o corpo em cinza pura

se tornará: almácego e viveiro,

cada molécula sofrerá degradação,

nessa entropia da natureza obscura...

Embora eu almeje, em sonho derradeiro,

que façam parte da cauda de um faisão!...

CACOS DE ÁGUA IV

Meus dedos eu enfio pelo ar,

colho depressa mil cacos de sol,

a mão direita os toma qual farol,

a mão esquerda em opaco bezoar.

Cada dedo tem estrela a cintilar,

cacos de orvalho na saga do arrebol,

cacos de unhas uso como anzol,

com rede de plaquetas vou pescar.

E nessa teia de meu próprio sangue,

cacos de hemácias prendem filamentos,

leucócitos chorando em desespero,

eu capturo a luz do amor exangue

e assim engasto os antigos juramentos

nesses cacos de sonho que ainda espero.

CACOS DE ÁGUA V

Quando minhalma beber da praia a areia

e a brisa mansa tornar-se em furacão,

assaltar-me-ão os grãos em multidão

a perfurar-me a carne ao fio da teia,

como peneira, em tal assombração,

apenas transparente, artéria e veia

visíveis a tal ponto que se leia

cada segredo oculto ao coração.

Mas há vantagem na alma perfurada:

por entre seus arames capilares,

rebrilha o sol e a lua se incendeia.

Não sou obstrução concretizada,

porém abstração em meus cantares,

na transparência que a ilusão permeia.

CACOS DE ÁGUA VI

A vida morre e a morte está na vida,

tal como a sorte é azar e o azar é sorte...

Embora o universo nos comporte,

também em nossa mente acha guarida.

Como o cometa corre à toda a brida,

corremos nós em cometa de igual porte...

Embora a morte a vida logo corte,

enquanto vivos, a levamos de vencida...

Cacos de morte e cacos de cometas,

cacos de planos e intenções secretas,

o caco é bênção e o caco é maldição...

É a argila da mente que os rejunta

e tantos cacos, pouco a pouco, ajunta,

em magra herança à nova geração.

CACOS DE ÁGUA VII

Que poderá passar pela tua mente,

a cada vez que me tratas mal assim?

Rancor apenas projetas contra mim

ou é tão só um desdém indiferente?

Concentrada em ti mesma, na frequente

abstração de meu desejo, enfim,

aceitando como contas de marfim

o quanto eu busco te deixar contente?

Não sei qual o pior, se a indiferença

ao que eu possa sentir, a meu querer,

nesse descaso de emoção vazia,

ou se vejo só amargura, em mágoa densa,

nessas frases de insolente desprazer,

em que me apagas os instantes de magia.

CACOS DE ÁGUA VIII

Vejo uma estranha expressão em teu olhar

e fico a imaginar se já deixaste

para trás esse amor que me entregaste,

quando outra luz surgia em teu mirar.

Olho teus olhos e fico a matutar

o que cambiou no brilho que mostraste,

se poderei ainda conservar-te,

ou se é o princípio do fim de teu ficar.

São muito estranhos os olhos que me lanças,

nesta manhã de hoje, estremunhada

ainda dos lençóis e da emoção...

Como se todo o amor das velhas danças

pelas solas dos pés fosse espalhado

e não sobrasse nada ao coração...

CACOS DE ÁGUA IX

A cada vez que sorris, teus dentes brilham;

no espelho da saliva assim me vejo:

cacos de água revestem cada beijo;

cacos de amor em cada abraço encilham

meu coração, enquanto os dentes rilham;

cacos de tempo moldando cada ensejo:

suspiro em cacos tangendo cada harpejo;

dedos em cacos por tua pele trilham.

Contudo, o teu sorriso diferente

me parece mostrar a tua saliva,

como um sabor a outro misturado:

sinto um fisgar no coração fremente,

um laivo de ciúme que se ativa,

a imaginar quem mais terias beijado.

CACOS DE ÁGUA X

A moeda, lentamente, se desgasta,

nos suores das mãos que a manipulam:

mil moléculas nos dedos me pululam

e a superfície, aos poucos, já se afasta.

Que ser de ouro ou prata não lhe basta,

as mãos que nela tocam já se anulam,

se esforçam por retê-la e assim a adulam,

mas a moeda se desfaz em obra infausta.

Ocorre assim com o frescor de uma mulher,

dos homens gasta, quanto mais se apega:

que um pouco dela levam quando vão.

E ela se dá, até quando não quer,

a cada vez que em seu amor se entrega,

até não ter mais nada ao coração...

CACOS DE ÁGUA XI

Quer seja amor, portanto, uma quimera,

quer seja uma paixão avassalante,

quer seja uma certeza triunfante,

quer seja a aceitação do que se espera,

quer seja o movimento de uma era,

quer seja a ilusão de um só instante,

quer seja a situação impactante,

quer seja o apego da parede à hera,

quer seja o fruto, enfim, da solidão,

qualquer desejo por competição,

quer seja a chama volúvel sempiterna,

quer seja apenas a sublimação

da rasa chama que consome, interna,

e explode ainda em cada coração.

CACOS DE ÁGUA XII

São cacos de quimera que nos rasgam,

são cacos de paixão que nos consomem,

são cacos de certeza que nos tomem,

são cacos de um aceite que nos pasmam,

são cacos de uma era, anos que somem,

são cacos de ilusão, que nos espasmam,

são cacos de interesses que fantasmam,

são cacos de raízes, que nos comem.

Cacos de água, solidão em gotas,

cacos de luz, correndo sem ter pés,

cacos de chama a consumir as fés,

cacos sublimes que em minha mente botas,

cacos de goma em tal restauração

de exangues cacos bem fundo na ilusão.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/04/2011
Código do texto: T2923661
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