OLARIA 1-12
OLARIA I
Em vez de barro, meus sonhos vou usar,
misturados a palha e desaponto.
Com chirca e lenha queimarei meu conto,
em tijolos de paina e de luar...
Estou faminto desse teu olhar,
que para o meu fazia contraponto.
Quando ao teclado solitário eu monto,
sobram somente botões a dedilhar...
Que não me servem para revelar
o que se encontra sob teus botões:
um arquivo que não posso mais abrir.
Resta dos versos o intrincado masturbar,
a fecundar alheios corações:
já que esse teu deixei de percutir.
OLARIA II
Vejo minha vida em fornos a evolar,
cada poema um tijolo avermelhado.
pelo barreal do sonho deformado,
cortado a arame, tarifas a ganhar.
No amassadouro, minhalma a rebolcar,
em palha e barro, santafé molhado.
dos cabelos de meu peito descartado,
a trave gira a calha, a vomitar...
Logo alguém chega, em busca de outra carga
para os oleiros, em sua vida amarga:
quebram as costas, os dedos a cortar,
enquanto inundo com música os ouvidos,
nessas notas fragrantes e de olvidos
que me ajudaram mil fornos a queimar.
OLARIA III
Feito o tijolo a campo, na olaria,
o seu formato é sempre irregular;
os tarifeiros procuram se apressar,
sempre um dos cantos para o lado espia.
De um polegar, a marca apontaria,
de um dedo indicador resta o marcar,
porém o resultado é de espantar,
depois de seco, o barro se encolhia...
E fica em seu padrão retangular,
sumindo a marca daquele polegar
que o barro modelou com suor e dor.
E o mesmo ocorre com poemas a narrar,
some-se a marca de um antigo autor,
que só o leitor os pode renovar...
OLARIA IV
Um cavalo revolve o amassadouro,
um pingo velho, pobre pangaré,
um pacho sobre um olho, como até
caçavam os piratas prata e ouro.
É este antolho que o mantém de pé,
nessas voltas constantes de desdouro,
hora após hora, até seu morredouro,
derviche manso num girar sem fé.
Uma soga amarrada no seu freio,
um punhado de aveia o seu recreio,
quando descansa, acorda com um puxão!
Até que chega a noite e vai ao pasto,
capim amargo por todo o seu repasto,
para dormir atado num moirão!...
OLARIA V
Também se fazem telhas na olaria,
mas apresentam biodiversidade:
cada forma tem sua própria qualidade
e no telhado antigo não servia...
Ainda quando ao mesmo eirado se fazia,
dava de si a forma, na umidade:
ou se alargava ou apodrecia de verdade
e contra a telha antiga não se unia...
E a vida é feita da mesma imbricação:
tenta encaixar-se a cada geração,
mas as telhas se quebram, uma a uma.
E as que vem depois, encaixam mal:
apresentam outros gostos, afinal,
pois outra é a chirca que nelas se esfuma.
OLARIA VI
Também faziam ladrilhos de calçada,
empregados nos pátios, igualmente,
proteção contra a umidade mais frequente,
embora a senda ficasse esverdinhada
pelo limo e em cada inverno recamada
por musgo em resistência surpreendente:
verão e inverno, a capa permanente
dessa esmeralda o caminho tapizava.
Contudo, o limo era escorregadio,
enquanto o musgo dava mais firmeza:
como as pessoas, tudo é diferente...
E quando vinha a chuva, como um rio,
firmava ao pé o musgo, com certeza,
porém o limo era traiçoeiro como a gente...
OLARIA VII
Mas existem olarias bem mais nobres,
em que a mão delicada gira o barro,
formando ânfora, alguidar ou jarro
e quanto mais com que tua mesa cobres.
Vermelha a argila só para os mais pobres,
branco esse grês da xícara que agarro,
pratos e copos cujos cacos varro,
muitas vasilhas na baixela que recobres.
Urnas contendo cinzas funerárias,
cenotáfios vazios em monumentos
e as mil garrafas para nobre adorno
ou mesmo estátuas de posturas várias,
formadas em cuidados movimentos,
ao compassado circular do torno.
OLARIA VIII
Também existe, decerto, um outro Oleiro:
esta é uma imagem demasiado antiga,
que há mais de dois milênios se prossiga,
cuja metáfora gastou-se por inteiro.
Sou apenas mais um, nem o primeiro
e nem o último a entoar essa cantiga,
igual que comparar o Sol a auriga,
igual que a Morte ao sono derradeiro...
Perante o obreiro antigo, somos barro,
pois nos moldou da terra, desde o pó
e pretende que cumpramos Sua vontade.
Posso insurgir-me, mas de fato, amarro
meus versos numa corda e cada nó
me cerceará mais um pouco a liberdade.
OLARIA IX
Porém, eu também posso ser oleiro:
gólen feito de barro, mas consciente,
o meu destino tramo diferente,
sem querer entregar-me por inteiro...
Que cada ato seja o derradeiro
protesto contra o fado persistente:
com meu caminho sempre descontente,
procuro ser autêntico e guerreiro.
Mas quem me diz que já não seja essa
a vontade do pé que gira o torno?
Que me rebele contra a forma desse giro
talvez seja, afinal, a minha promessa:
minha golilha na garganta é adorno,
nesse combate em que a mim mesmo firo.
OLARIA X
São meus escritos, afinal, artesanato,
tantos que saem, em padrão parelho:
não chego a ser artista, sou espelho
apenas do inconsciente espalhafato.
Sou fonte apenas, fluo qual regato,
minha água é mineral de poço velho:
sou aquífero, meu jorro é antigo telho,
projeto o esguicho sem qualquer recato.
Sou Lagos, afinal, da mãe o nome;
não me contento em ser somente um rio,
mas não quero diluir-me em pleno mar.
Prefiro um lago, assim, que a alma dome,
alma de água, alma de rocio,
alma salgada de tanto solfejar...
OLARIA XI
Foi esse o meu ideal de porcelana:
eu quis Murano ser; Gallet, talvez,
Mary Gregor, quem sabe, em altivez;
barro queimado na mais ardente chama.
Eu quis ser vaso Ming, que se irmana
à faiança, ao biscuit, eu quis ser grês
de jarro etrusco, quiçá vidro holandês
ou da Boêmia a espelhar antiga dama.
Mas neste meu anseio de opalina,
esmeralda não fui, só turmalina.
Quebrei-me no soprar em que se esboça
o Art-Nouveau, que do Tiffany faz troça.
Não fui capaz de tornar-me louça fina,
Só um alguidar que à cozinha se destina...
OLARIA XII
Pois são meus cantos famélicos troféus:
qual um cavalo magro o mundo giro;
nesses cacos afiados as mãos firo,
pobres tijolos de rubros fogaréus...
Rachadas as feições, ao erguer dos véus:
imperfeito esse forno em que me insiro;
cerâmica quebrada por suspiro,
acre fumaça transportada aos céus...
Que meu destino é o mesmo do tijolo:
oculto nas paredes, ninguém vê,
revestido do cinza da argamassa...
Mas no momento em que consigo expô-lo,
começa a esfacelar-se e então se lê
os mesmos cacos em que a alma se desfaça.