ARMADILHA PARA LOBOS & mais
ARMADILHA PARA LOBOS
tem sido sempre assim, pensando bem:
enquanto não te vi, foi como não vivera;
despertei de repente e quase compreendera
o sentido da vida ao te perder também...
de novo nos achamos e foi uma surpresa
saber que estranhamente o tempo
não passara:
dos dias afastados a vida me apagara,
ficando permanente apenas a certeza
de novo confirmada e outra vez, de novo,
que a cada encontro nosso o encanto ressurgia
e os laços entre nós seguiam se estreitando.
e como relutamos! sem crer os dois,
que um dia,
pudesse rebrotar em singular renovo
o mesmo amor que estava, enfim,
nos espreitando...
ANESTÉTICO
Os dias vão passando em horas vãs, desnudas,
vazias de sentido, molduras só de espera,
traços de união somente, inquietações agudas,
enquanto não se cumpre, enquanto não se altera
de minha irrealidade essa aguardança morta:
percebo tudo em torno qual nunca houvera visto;
não reconheço nada, a mente não comporta
e toma como estranhos os gestos que me assisto
a praticar, tais como atos dentro de um romance,
as cenas de uma peça, um filme que passasse,
porém que contemplasse tão só de indiferença,
enquanto a vida fica, suspeita num relance,
suspensa de teus olhos, tal como se contasse
uma história mal feita e envolta de descrença...
METAPAVANA
O que eu sinto por ti é amor de vento
que te golpeia o rosto; amor de chuva,
no calor mais intenso, amor que sente a luva
pelos dedos que envolve, num momento
de intimidez total; amor de duas colheres,
uma encaixada à outra; amor de ameixa,
que sumarenta escorre, sem mais queixa,
e se espalha em doação de mal-me-queres.
Mas o que sinto de ti é o amor da água,
que escorre entre meus dedos, refrescante,
porém que não retenho; amor de areia
que escorre da ampulheta e que me enleia
o coração... tão só por um instante...
e então se vai, sorrindo desta mágoa.
CARAVELA
Não esperes que eu rime "ama" com cama,
qual fazem hoje em dia os "trovadores";
minha rima é mais difícil de estertores,
pretende seduzir a musa que reclama...
e assim, fala de vento, de olor, de opacidade,
de fígado e meniscos, de almíscar, azevinho;
não se deixa levar assim pelo mesquinho
e primeiro pensamento da saudade...
Mas enfrenta o rigor de um grande desafio:
de tomar-te nos braços, apenas nessa hora
em que tua alma toda, perfeita e sem demora,
se entregue ao meu calor em luz feita de brio,
na esperança sutil de nunca mais embora
perder-se deste amor, qual se perdeu outrora!
FACETAS UM -- DEGELO
Cruel como mulher que sabe ser amada
e o coração entrega... mas não já;
mulher que espera o fulgor de uma alvorada
de um novo dia, de um mês, até, quiçá,
pela aurora do ano que pensa avizinhado,
em que tomará posse do reino oferecido,
mas que desdenha agora; tem por assegurado
o futuro, como algo que tem por merecido.
E, no intermédio, fica brincando de donzela;
não que deseje um outro; em geral, é fiel,
mas a si mesma... segura... na certeza
de que basta acenar e a mágoa se cancela
e o jovem namorado daquele doce fel
retorna agradecido, até pela tristeza...
FACETAS DOIS -- A DOMADORA
Cruel qual mulher feia que sabe ser amada
e maneja suas cartas com hábil precisão;
que nega e então promete, que finge querer nada,
para enfiar-me a face bem fundo ao coração.
Pois feia aos próprios olhos, quase toda a mulher
percebe-se ao olhar do espelho, indiferente;
jamais torna o reflexo o rosto ideal que quer:
da pele, a boca, os olhos, da face é descontente...
E assim, se faz valer, só por julgar-se feia
e judia e maltrata... depois, sorri... e é bela,
seu rosto se encandeia desse fulgor de luz
que rebrilhou da alma; e assim, alma incendeia,
encadeia... agrilhoa... acorrenta e cancela,
em beijo cintilante, a mágoa que produz!...
FACETAS TRÊS --- A BARREGÃ
Cruel qual mulher tola, que pensa que a beleza
vai-lhe durar pra sempre, mulher que então provoca
ciúmes por capricho, coquete sem nobreza,
mulher cujo sorriso, tal qual champanha, espoca!...
Mulher que só deseja saber-se desejada,
mulher que apenas quer fazer-se de querida,
mulher que da luxúria pretende-se alvejada,
mulher que, ao seduzir, termina seduzida...
E quando amor se esvai e torna o desengano,
quando busca consolo na vastidão do espelho,
por mais que seja tola, percebe que o momento
da morte da beleza é rápido e cigano...
que assalta de repente e marca um rosto velho,
sulcado pelas rugas vazias do sofrimento.
FACETAS QUATRO -- A TECELÃ
Cruel como só pode a mulher inteligente,
que conhece do amante inteiro o sentimento,
que sabe manejá-lo e nunca se ressente
de novo ardil para envolver, potente,
seu pobre coração em dúvida e tormento,
mulher calculadora, que sabe seu destino,
que enleia sem perdão, pelo cordel mais fino,
na teia da ilusão, no meigo desatino...
E o toma para si, nos rumos da memória
aprendida das mães, herdada das avós,
que em tantas gerações fizeram-se de escravas,
enquanto dominavam e atavam em seus nós
os homens que pensavam controlar aljavas,
mas foram asseteados no decorrer da história...
FACETAS CINCO -- A ZUMBI
Cruel qual mulher morta que pensa inda estar viva
e vive no passado... e macula o presente
com desgostos de outrora, punindo tanta gente
pelo que outros fizeram, mantendo rediviva
a mágoa dos amores desfeitos, a impaciente
espera sem futuro, a vastidão lasciva
do amor insatisfeito, a gestação esquiva,
o aborto, a prevenção, a cópula infreqüente...
Pobre mulher que sofre, até por opção,
que feliz não quer ser, que até sofrer deseja
e quer tornar os outros a seu redor, também,
criaturas sofridas; e quando a chance vem
de finalmente achar o novo amor que enseja,
prefere a angústia antiga à nova exultação!...
FACETAS SEIS -- A PARTEIRA
Cruel como mulher nas garras do ciúme,
que enxerga a seu redor apenas a maldade
daquele que possui, a potencialidade
de perder seu lugar a troco de azedume...
E assim, antes que seja posta de lado, ao lume
dos conselhos opostos da própria lealdade,
se esforça por perder, afasta sem piedade
o homem a quem ama, nesse fatal costume
de repelir primeiro, antes de ser repelida.
Assim, pode dizer ao próprio coração -----
"Fui eu que não quis mais, fui eu que rejeitei,
eu que mandei embora, fui eu que o expulsei,
não fui a repudiada, por outra preterida,"
----- feliz a mastigar placentas de ilusão...
RESOLUÇÃO
Foi dito muitas vezes que os valentes
morrem só de uma vez, mas os covardes
mil vezes morrem nesses seus freqüentes
combates silenciosos, sem alardes...
temendo a morte, a dor, uma ferida
que lhes perfure o peito e que dessangre
por uma artéria fina, toda a vida,
que seja infectada e depois gangre...
Assim aqueles que amam, se rejeitam
do amor de hoje o dote cristalino,
não gozam desse amor, que morre triste.
Morrem mil vezes; porém, se então aceitam,
falece uma só vez o amor que existe
dentro de si, ribombando como um sino...
RETIRADA
eu me entreguei a ti, sem mais reservas,
de pés e mãos atados, tão confiante
de conquistar tua mente delirante
e usufruir dos tesouros que conservas...
eu me entreguei a ti, amor sem medo,
disposto a tudo fazer abertamente,
sem me importar com as vozes dessa gente
que nunca mesmo me aceitou no enredo
de seus rituais ----- inúteis e banais.
eu te busquei completo e não quiseste,
não conseguiste me querer assim;
eu vejo bem não ter graças sociais,
mas sei, depois de tudo o que fizeste,
que agora é tempo de voltar pra mim...