OCEANO DOS CEGOS I-XII
OCEANO DOS CEGOS I
Eu vejo a humanidade em vasto oceano,
em que nos contemplamos, lado a lado;
um corpo a cada corpo está encadeado
e a geração se sucede ano após ano.
Fisicamente longe, mas em pano
de ouropel ou de estamenha é nosso fado;
tapeçaria em que tudo é registrado,
desde o mais nobre até o mais insano.
E nesse vasto tapete, os velhos ossos
se tornam fios de giz para o presente
e o presente do futuro é gestação.
Mas somos cegos diante destes fossos
que nos afastam, sem abrir a mente
para escutar os mortos que aqui estão.
OCEANO DOS CEGOS II
Tentei pegar o pedaço de uma luz
encolhida nos reflexos das sombras;
era um retalho caído nas alfombras,
a ilusão de um laurel que me seduz.
A luz da lâmpada no tapete se introduz,
por entre pilhas de livros e de encumbras,
qual folha seca de perdidas umbras,
na busca vã a que o alvo me conduz.
De intermédio a meus dedos, ela some
e ao retirar da mão, refulge a estrela,
nada mais do que um rasgo nesse escuro.
A mão corre nas falhas, por que tome
na palma o brilho dessa estrela bela,
mas só consegue tanger um negror puro.
OCEANO DOS CEGOS III
E de repente, percebo que essa luz
já tomou conta da palma de minha mão
e me recolho de toda a escuridão:
para a palma eu escorro, que reluz.
Sou reduzido tão só a esse condão:
nesse fiapo de luz acho minha cruz,
meus braços abro nesse X que expus
toda a minha vida pendente de um cordão.
Agora vejo o que ninguém consegue,
reduzido a esse íris pequenino:
minha carne um manso verme cristalino.
Desse cosmos incerto sou a certeza;
Olhos abertos na alfombra em que me esfregue,
enxergo muito mais que em minha grandeza.
OCEANO DOS CEGOS IV
E sendo pura gota nesse oceano,
que me isenta de luz e de artifício,
navego em torno a mim, sem mais bulício,
e em cada gota me torno mais humano.
Contemplo esse universo em cada plano:
a multidão dos homens em estrupício,
o mal do bem e o bem do malefício,
do lodo primordial à areia em guano.
Meus olhos eu perdi nessa película,
permeada para tudo em derredor,
a célula das células em tal espícula,
água da água, fogo desse mar,
e minha visão se faz muito maior,
nesse encolher que é feito de ampliar.
OCEANO DOS CEGOS V
O que menos se enxerga nesse oceano
é a extensão do amor que assim nos une:
é a própria obscuridade que nos pune,
na qual o individual é o mais humano.
É porque nos devolve, em tal arcano,
um osmótico esplendor que não nos mune
da percepção que assim nos coadune
a uma partilha do consciente soberano.
O que nos falta é uma comparação,
algo que mostre os limites dessa união,
mostrando um mundo talvez desencantado.
Seria mais fácil escutar o canto,
se passássemos os retalhos desse manto,
como as franjas de um tecido esfiapado.
OCEANO DOS CEGOS VI
Pois todo amor existe em referência
ao desamor, tal como a treva existe
em referência à luz de que consiste
a negação na fímbria da existência...
E tal deslumbramento é uma potência
do monótono diário que se aviste,
tal qual contraste da dor, punhal em riste,
neste insensível gozo da impotência...
Assim é o amor, em terno lampejar,
por contraste do ódio e indiferente,
tal como a ausência da água traz a sede,
tal como a fome é falta de manjar,
tal como a fé é o oposto da descrença
e o ser só é livre se escapa de sua rede...
OCEANO DOS CEGOS VII
Pois mais se sente amor após a perda:
enquanto dura, mal se dá valor,
por mais que nos impregne seu ardor,
é natural aceitar o que se herda...
Mas quando tal herança chegou lerda,
é uma surpresa em todo o seu calor:
é no vácuo que se expande em esplendor,
puro tecido de dourada cerda...
Ocorre assim no amor, quando ele chega
e empolga, de repente, o ser inteiro,
fosforescendo em fluida exultação...
Mas quando queima mesmo, então nos cega
e ao aspirarmos seu alento derradeiro,
sobra o borralho da final desilusão...
OCEANO DOS CEGOS VIII
A falta de um amor é pressentida
muito antes que nos chegue o final corte.
É nos momentos de mais intensa sorte
que dentro ao coração acha guarida
a sensação dessa ilusão perdida:
quanto mais forte o amor, maior sua morte:
cedo ou mais tarde, o bem que nos aporte
o destino seguirá de toda a lida...
Talvez melhor nos fora essa cegueira
que não permite amor reconhecer,
quando nos ronda em sua feroz cilada...
A não ser que se prefira, por inteira,
a sensação da perda receber,
do que, afinal, não ter sentido nada.
OCEANO DOS CEGOS IX
A meu redor se encontram outros eus
e há outros tus bem ao redor de ti,
que não percebes encontrar aqui,
por mais que sejam reflexos só teus.
Eu sei porquê sou rodeado pelos meus:
são as mil oportunidades que perdi,
são os caminhos que não percorri,
que me lastimam com os olhos seus...
Também te acusam, embora não os vejas;
já foste todos eles no passado,
antes de teres cruzado teus portais...
E assim te seguem por onde quer que estejas,
reflexos de um outrora abandonado,
fantasmas mortos que nem queres mais.
OCEANO DOS CEGOS X
Só sei do mundo o que meus olhos veem;
como os outros me veem, eu não conheço
e a pouca luz que à minha história peço
só me revela reflexos também...
A forma então que me contemplam, tem
conotações de mistério no seu preço;
apenas interpreto e nunca meço
essas noções subliminares do porém.
Apenas sei que as imagens dos retratos
não são as mesmas que me mostra a luz,
refletida nos espelhos e vidraças...
Mas aos olhos dos outros, quantos fatos
influenciam essa imagem que reluz:
como será que me vês, ó tu, que passas...?
OCEANO DOS CEGOS XI
Sabes do mundo apenas o que escutas;
como te escuta o mundo, tu não sabes;
no tímpano dos outros, tu não cabes:
na luz escura das auditivas grutas.
como tua voz ressoa, até refutas,
ao ouvi-la ao microfone; talvez gabes,
talvez até em mal-estar te babes:
esse não é o som com que esternutas
ao mundo as lutas de teu coração,
a rebelião da mente, o som da alma;
mas essa é a forma como outrem te ouve.
E se até mesmo tua voz é uma ilusão,
como escutar desse silêncio a calma,
na vã esperança de que alguém te louve?
OCEANO DOS CEGOS XII
Sabes do mundo, enfim, o quanto o olfato
te infla nas narinas: o mundo é faro,
muito mais do que a luz do dia claro,
embora o albor do sol te deixe grato...
Essas tuas desconfianças, sem que um fato
real as justifique, o teu desgosto raro,
a tua antipatia e esse preclaro
sentimento de amor, o sonho inato
que alguém te desperta, a atração sexual,
as lembranças mais antigas de tua infância,
são esses cheiros que nem reconheces,
mas que o inconsciente aceita, natural.
E assim o amor, em derradeira instância,
como um odor envolto em velhas preces.