ALMAS ESTUPRADAS I-XV
ALMAS ESTUPRADAS I
Vou percorrer as ruas, recolhendo
mil carroçadas de bom tempo perdido;
vou reciclar o tempo assim colhido,
para meu próprio tempo ir estendendo.
Há tanto tempo venho percebendo
que jogam fora o tempo recebido;
esse farnel de momentos recolhido
será alimento de que irei vivendo.
O meu não joguei fora por meu gosto,
foi-me tirado à força no trabalho
e, mesmo assim, muito recuperei,
roubando tempo em que no leito encosto,
a rascunhar poemas que hoje espalho,
quando somente exausto descansei.
ALMAS ESTUPRADAS II
Estou cansado de cruzar com meus fantasmas,
que se acotovelam em cada rua que passo;
são fantasmas demais, não há espaço:
passo por tantos, cujas faces pasmas
descreem ainda de que tais marasmas
assim os prendam em torvelinho escasso:
meus duplos não pensavam que tal laço
os prendesse para sempre nos miasmas
desses caminhos esguios e apertados,
por fantasmas de outros tantos já povoados
e então me fitam, famintos e risonhos,
mendigando de mim traços de vida,
tentando me arrastar da real lida,
envilecidos pela luz dos sonhos.
ALMAS ESTUPRADAS III
O sofrimento dos outros não consola,
mas sempre é margem de meditação,
quando percebo até que ponto são
assolados pela dor que igual esfola
tanto o corpo quanto a mente, escola
que dizem enobrecer, velha ilusão:
a dor só traz revolta e rebelião,
que a alma debilita e o corpo assola;
pois da dor o mais certo resultado
são os maus sentimentos, mesquinhez,
as pequenas vinganças e rancores;
assim, ao ver os outros nesse estado,
sempre procuro fugir da pequenez
com que me mostram tristezas em mil cores.
ALMAS ESTUPRADAS IV
Então, vou por anúncio no jornal,
dizendo quanto pago pelo tempo
que os catadores recolhem no entretempo
sem que ninguém o compre no final.
Compram garrafas, papelão, o geral
lixo orgânico produzido no destempo:
vidro não querem, é mais um contratempo
mas esse dom mais precioso e natural
e que se encontra jogado nas calçadas,
até chutam para o lado com desprezo:
fica mofando até secar ao sol...
Pois comprarei tal tempo em carroçadas:
vou usá-lo de acordo com meu vezo,
estilhaçando tempo no arrebol...
ALMAS ESTUPRADAS V
Porque esse tempo são retalhos de alma,
que permitiram serem estupradas:
os farrapos são lançados nas calçadas
por essa gente que não sente calma
e caminha a desgastar da vida a palma,
ou que dorme durante as alvoradas:
o tempo inútil foge das pousadas
e busca outro lugar em que se espalma,
a pedir mil esmolas pela rua:
não que lhas deem, porém que seja aceito
e guardado no bolso, em condições
de ser trocado por mais vida nua:
esse tempo abandonado, sem defeito,
que tanta falta faz a meus pulmões!...
ALMAS ESTUPRADAS VI
Eu quero o tempo das almas estupradas
que desgastaram em drogas a energia,
que permitiram morrer a fantasia
desse tempo sem valor das madrugadas.
Eu beijo o tempo das prostituídas fadas
que nas calçadas toda noite eu via.
Eu beijo o tempo da gente que se alia
a queimar pedras, em chama condenadas.
Eu quero todo esse tempo recolher,
desperdiçado por tanta juventude,
em baladas, em cerveja, em cada bar,
dessa gente sem destino, sem saber
que na busca do prazer assim se ilude,
as próprias almas estuprando sem pensar.
ALMAS ESTUPRADAS VII
Minhas pombas sete cores têm do arco-íris
trazem nos bicos tempos e aquarelas,
tempos vermelhos de mil amoras belas,
tempos dos templos desse velho Osíris.
Tempos azuis das vezes que mentires,
com tempos amarelos de procelas,
meu róseo coração fulgura estrelas:
cores dos tempos em que danças gires.
As minhas pombas me trazem o laranja,
o roxo e o azul em seu matiz anil,
os tempos verdes do primeiro amor.
Tempos cinzentos cobrindo toda a franja
do tempo antigo de esperanças mil,
em que estas pombas revoavam no calor.
ALMAS ESTUPRADAS VIII
Flocos de neve caíram nos meus versos
pelas janelas trancadas, transportados
por postigos e vidraças transpassados,
acumulados em meus sonhos tersos.
Dizem que os flocos, ao cair dispersos,
prendem o frio em mantos ensopados
e até acalmam os ventos, congelados
no silêncio abafado em brancos berços.
Os passos soam mais acalentados,
como embalados por invisível mão
e o vento hesita em tiritar os galhos.
Ficam as marcas no chão, quais atos falhos
e é nesse instante que somos revelados
por esses rastros deixados pelo chão.
ALMAS ESTUPRADAS IX
É nesses rastros que se agacha o tempo
em fuga, dessas almas estupradas,
que o reduziram a tão pequenos nadas,
sem se esforçarem por nada conservar.
Eu vejo nessas marcas de outro andar
essas mentes trespassadas por espadas,
os corações de turbas desvairadas
e exploro a mina desse contratempo.
De cócoras na neve, assim me avento
a recolher cristais em fragmentos,
enchendo feito estrelas a minha luva
e os guardo na mochila, para alento,
ampliando a extensão de meus momentos,
que deixei escorrer em dias de chuva.
ALMAS ESTUPRADAS X
Por isso, eu saio à noite nas calçadas
e junto o tempo que jogaram nos cantinhos,
nas gretas e sarjetas dos caminhos
e em outras locações mais desusadas.
Levanto as tijoletas mais pesadas,
enfio as unhas, permeio a mil carinhos,
encontro os tempos, bem encolhidinhos,
encontro as horas mais desencantadas.
Tudo isso eu coloco em meu bornal,
para dar continuação à minha vida,
pois o tempo que tenho é muito pouco.
Percorro essas travessas feito louco,
guardando o tempo em pedaços de jornal
arquivados em minha casa ao fim da lida.
ALMAS ESTUPRADAS XI
A pouco e pouco, vou juntando meses.
Enrolo em plástico e, no congelador,
os armazeno e protejo do calor,
que já me apodreceu o tempo tantas vezes...
Por mais que em tais ações tu me desprezes,
eu uso o micro-ondas sem rancor.
quando sinto fraquejar o meu ardor,
desgastado por vencer os meus revezes.
Se estou cansado, eu bebo a vitamina,
feita de tempo, no liquidificador,
e passo a trabalhar com mais vontade.
Ou quando uma tarefa não termina,
ao fim do dia, renovo o meu vigor,
comendo os restos roubados da cidade.
ALMAS ESTUPRADAS XII
Nas noites de verão, chega o besouro,
aos milhões, de seus ovos eclodidos,
simpáticos bichinhos, malferidos
por essa luz que se assemelha a ouro.
Mas quando vem rodear esse tesouro,
ou têm os élitros queimados e perdidos
ou caem nas calçadas, sem sentidos:
são pisoteados por borracha e couro.
E nesses negros montões encontro dias,
perdidos no monturo dos insetos:
cada um deles me cede alguns segundos,
de que recolho com cuidado as energias
antes que escorram para vãos secretos,
por construir com elas novos mundos.
ALMAS ESTUPRADAS XIII
E quando horas se perdem, lá estou eu,
varrendo o tempo para minha pazinha
com piaçava de pequena vassourinha,
em que se apega a féria que rendeu.
Recolho o tempo de quem mais sofreu,
mas mostra ao mundo uma alegria mesquinha;
recolho o tempo da ingrata ladainha
do ébrio que atenção não recebeu.
Para que querem seu tempo imaterial,
se não acham sentido nas suas vidas?
Por isso, o jogam fora, sem pensar.
Enquanto eu, mais vate que jogral,
coleciono diariamente as despedidas
de tanta gente que morre sem notar!
ALMAS ESTUPRADAS XIV
Hão de querer saber por que preciso
desse tempo recolhido em meu labor;
não sou apenas um colecionador,
bem diferente é este ideal que viso.
Recolho horas e dias, num conciso
receptáculo de tanta humana dor,
porque os vou transformar noutro teor:
são mil poemas mais que te improviso,
acrescentados à fímbria de minha vida,
meses e anos que me garantirão
a redação de meus versos derradeiros,
que nunca foram meus, mas a perdida
saga dos ossos, que se partirão,
sob o peso dos sonhos de terceiros.
ALMAS ESTUPRADAS XV
Caronte entrou em férias e pediu-me
que remasse seu barco por um dia;
quis recusar-me, porém não podia:
era mais forte que eu e compeliu-me.
"És familiar dos mortos", me dizia
o espectral barqueiro e impeliu-me
a tomar seu lugar à proa: seduziu-me
a impulsionar o bote que se enchia.
Reconheço ter ouvido a voz dos mortos
e marcá-la em meus versos contristados
ou bem alegres por eventos relatados,
mas não queria levá-los a tais portos
de que não retornassem, pois seriam
de novo mudos e nada mais diriam...