DEZ SONETOS DESESPERANÇADOS
Joé Neres
UM
Mais de mil sonetos falam de amor,
Dez mil idolatram a solidão,
Mas estes meus têm outro sabor,
Sabor de fome medo e podridão.
Os meus versos dão muito mais valor
Às lágrimas suadas pela mão
De um pobre e sofrido trabalhador
Que às gotas perfumadas da paixão
Eu não posso cantar sobre uma flor
Se, no mesmo jardim, no mesmo chão,
O que mais brota é dor e aflição
Eu, como posso escrever sobre amor
Se neste momento co’exatidão
Um irmão, sem pena, mata a outro irmão.
DOIS
Ele, filho da estúpida Inflação,
Vaga, triste e roto, pelo caminho
Seco, agreste de amor e carinho,
Onde só brota fome e decepção
Mas no seu penar nunca está sozinho.
Será que segue com ele um irmão?
Não! Não! Muito mais... perto de bilhão
De pobres seguem bem devagarinho
Em busca d’água e pedaço de pão,
Pra enganar fome do magro filhinho
Que soluça chora e geme baixinho.
Já tem no cerne a dor da inanição,
Gordo presente da vó Inflação
Que nina o neto já tão friozinho.
TRÊS
No meio da rua um trapo imundo,
Pedaço de pano jogado ao léu,
Monte de lixo debaixo do céu,
Restos humanos, pedaço do mundo
E pela rua passa muita gente
Apressada, sem tempo para nada.
Cada qual vai para sua morada,
Ninguém vê o lado, segue sempre em frente.
Aos poucos, vai o sol, vem o luar
Chorando sobre duas pedras frias
E muito pouco, muito pouco resta lá.
E, sobre pedras, velas se consomem
Queimando restos de dores sombrias.
Dentro dos trapos jaz um corpo de homem.
QUATRO
As esperanceiras estão murchas;
A última rosa já morreu
Já não existe mais alegria.
Não mais me pertence o que era meu
Até a terra em que eu vivia,
O casebre onde meu pai nasceu
Desde agora já não mais são
Não mais me pertence o que era meu.
Casas carros mulheres dinheiro ...
Tudo já tive, hoje nada é meu,
Pois tudo o meu ser hoje perdeu.
Só minha dor restou, nada mais;
Porém a dor que mais me doeu
Foi saber de que eu não sou mais meu.
CINCO
A tristeza de pobre não tem rosto
De artista de cinema ou de postal
De pontos turísticos. Tem , sim, gosto
De esperança cortada com punhal,
De feriado em dia de Domingo,
De dor de dente, comida sem sal.
Sofrimento de pobre bate em bingo,
É certo, cruel, dolorido e real.
Pobre sofre, sofre e nunca tem nome
É sempre um zé ou fulando de tal.
É um guerreiro, luta contra a fome.
Fome: inimiga feroz e mortal,
Mercadoria que não se consome,
Que não sai em coluna social.
SEIS
Uma dor preenche todo o meu ser
Quando passeio por minha cidade
E vejo uma podre realidade
Desde Pantheon até Reviver:
Famélicas crianças na orfandade
Social lutam pelo sub-viver,
Mãos que pedem, roubam para comer
Restos de fétida sociedade,
Grande fábrica das humanas dores
Que vem mascarada por tanto nome
E muitas tintas de todas as cores
E, mesmo num largo chamado Amores
Choro, vendo nossos futuros homens
Cheirando cola pra sufocar dores.
SETE
A solidão é a única irmã
Daquele velho que vivo apodrece
Nos guetos do mundo, mas não esquece
O doce ácido da velha maçã,
Nem todos os dias fazer sua prece
Plena de dor e de esperança vã,
Pedindo aos céus um novo triste amanhã
Livre das dores que o corpo esmorece.
Mas tem a certeza de que o espera
É uma fila – insuportável fera
Que cresce, cresce e que sempre tem fome.
Fila – a fera que o milagre opera
De do velho transformar a quimera
Em grande monte de dores sem nome.
OITO
Vêem alguns do poeta-cantor
A estátua entre belas palmeiras;
Outros, aquela flama derradeira
Do sol do mar em pesado torpor
Tão cheio de poesia e de amor
Oculta a Ilha as visões verdadeiras
De coisas tão torpes, vis rasteiras
Que, à tona, causariam terror.
Olhos cegos, em miradas primeiras
Vêem rapaz rico, moças solteiras;
Palmeiras, flores, sabiás, amor...
E os meus, que tão míopes sei que são,
Só veem drogas, fome, solidão,
E gente chorando um pranto de dor.
NOVE
Na rua do Sol um menino há
Cuja pele de tanto frio treme,
Lá na rua dos Prazeres está
Uma velha que de tanta dor geme.
A rua do Egito leva ao mar,
Que lava o sangue que sai da Alegria
Depois d’Alecrim e Horta irrigar
E no Ribeirão lavar novo dia
Cujos dejetos no mar vão parar.
Mas isso bem pouco te diz.
Que te importa todo o povo a chorar,
Se tu, em nossa bela São Luís,
Depois de teu suculento jantar,
Fechas os olhos... dormes... és feliz?
DEZ
De dores, fomes e angústias falei,
Arrancando tudo do coração,
Muito males ainda deixei
Perdidos no limbo da escuridão,
Onde não reina alegria nem lei
Mas somente tristeza e podridão.
E nesse lugar não mais mexerei
Com medo de nova desilusão.
A dúvida fica se algo acertei
Ao longo desta breve exposição,
Mas, como diria lendário rei:
- Nem tudo está errado não,
Já que mesmo o relógio que quebrei
Duas horas marca co’exatidão.
NERES, José. Negra Rosa e outros poemas. 3ed. São Luís, 2010. [edição virtual disponível em www.joseneres.blogspot.com]