SONETO INVERSO AO VOO DAS GARÇAS*
No voo das garças foram-se os meus versos
Cinzas de sonho disperso nas plumas
Soltas das asas do meu pensamento.
Descendo n’água doce, submersos
Em torrente emergindo entre as espumas
E as alvas penas levadas ao vento.
Roubou-me um verso a ave que havia
Fisgado o peito meu, posto em porção
De sangue o verso em vaso de emoção
Que já no peito meu não mais cabia.
Isto porque a garça que eu não via
Ao ver meu poema alcançar-lhe a mão
Faminta beliscou meu coração
Roubando-me um pedaço de poesia.
(Hermílio)
*Soneto com inversão das estrofes: tercetos antes dos quartetos.
SONETO
Segundo alguns, o soneto é uma criação do poeta siciliano Giacomo de Lentini, do século XII; já outros autores consideram-no como invenção do "troubadour" francês Girard de Bourneuil, poeta do século XIII.
Dos poemas de forma fixa é o que mais largamente tem sido praticado desde o seu aparecimento. Grandes sonetistas, dentre outros, foram Dante, Petrarca, Garcilaso de La Vega, Quevedo, Cervantes, Shakaspeare, Thomaz Yatt, Du Belly, Desportes, Voiture, Scarron, Gautier, Sully-Prudhome, Banville, Heredia. Em Portugal, lembramos Sá de Miranda, Camões, Rodrigues Lobo, Bocage, Antero de Quental, Júlio Dantas, José Régio, Fernando Pessoa. No Brasil: Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Raul de Leôni, Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e muitos outros, inclusive entre os contemporâneos, como Lêdo Ivo, Geir Campos, Vinícius de Moraes.
O Soneto, que somente foi praticado vez por outra pelos românticos, gozou de prestígio entre os clássicos modernos, os parnasianos e os simbolistas.
É uma composição de 14 versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, sendo o último verso a chamada "chave de ouro" que deve conter a essência da ideia geral do poema, conforme Theóphile Gautier.
A estrutura do soneto não é rígida em relação à métrica e à rima. Assim, os clássicos deram preferência aos sonetos decassílabos com rimas opostas e paralelas nas quadras (abba); já os parnasianos, além do decassílabo empregaram também o solene alexandrino. E encontramos também o soneto com versos heptassílabos, conhecido como sonetilho de que nos dá exemplo Benedito Lopes, através do seus "Cromos". (vide Poesia do Ciúme//O Ciúme do Poeta), o primeiro, que não é soneto, assinado por Cecília Meireles; o segundo, de minha autoria, ambos conjuntamente aqui postados, T2301350).
Ainda há a registrar o soneto quebrado, em que os versos se bipartem na cesura (ou seja, na 6ª sílaba do decassílabo), podendo ser lidos independentemente. Há sonetos com mais de 14 versos, que são os que apresentam mais um terceto, com o nome de "estrombote". (Cita-se "Estrombote Melancólico," de Carlos Drummond de Andrade).
A forma rígida predominou no classicismo e posteriormentre no simbolismo e parnanianismo. Mas o modernismo concebeu o soneto com versos brancos (sem rimas) de que é exemplo Augusto Frederico Schmidt:
"O desespero de perder-te um dia
Ou de vir a deixar-te neste mundo
Habita o coração inquieto e triste
Enquanto a noite rola e o sono tarda.
Olho-te, e o teu mistério me penetra:
Sinto que estás vivendo o breve engano
Deste mundo, e que irás também, um dia,
Para onde foram essas de que vieste.
- Essas morenas e secretas musas,
Tuas avós ciganas de olhos negros
Que te legaram tua graça triste.
Lembro que esfolharás na eterna noite
A rosa de teu corpo delicado,
E ouço a chorar como uma fonte."
Quanto ao assunto, embora sendo por excelência lírico-amoroso, o soneto comporta quaisquer temas: épico, humorístico, satírico, didático, simplesmente descritivo, etc. O Parnasianismo deixou aqui no Brasil um legado riquíssimo mais precisamente representado pela famosa tríade: Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia. A "arte pela arte" preceituada por essa corrrente foi muito além disso. Partindo do soneto essencialmente descritivo como Vaso Chinês e Vaso Grego, (Alberto de Oliveira), os sonetos históricos (O Enterro de Frinéia, O Incêndio de Roma, de Bilac) deram novo brilho e pompa a essa forma de composição. Outros de cunho filosófico como os de Vicente de Carvalho( vide Velho Tema).
SONETO (Mário Faustino)
Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler
À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso
Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.
Mário Faustino, um gênio consagrado que a crítica literária pouco divulgou. Piauiense de Teresina (1930 -1962). Jornalista, advogado, poeta, tradutor, crítico literario. Encantado pela beleza e alto nível de sua realização literária, trago ao público do Recanto das Letras o soneto supra, seguido do meu breve comentário.
O poema tem por título SONETO, que a mensagem lhe impõe antes que o rigor formal reclame a uniformidade métrica clássica parnasiana, característica da tradicional forma de composição.
No primeiro quarteto o eu lírico (sujeito oculto), evidencia-se na primeira pessoa, carente de outro ser (humano) que o "envolva de ser". Tem-se aí a conotação deste vocábulo, ser (substantivo) e ser (verbo) constituindo-se na carência física/afetiva do poeta. Um ser contrário ao "ser universal", ou seja, ao comum e misterioso ser, cuja essência não se deixa transparecer. Aquele ser que não se dá conta de sí mesmo e, consequentemente, nada tem essencialmente que envolva e complete o outro ser.
O transitivo indireto "necessito" se completa com o objeto indireto, imaginário "ser", reforçado pelo adjunto adnominal "humano" de que precisa. Não de um ser qualquer, mas de um ser humano, contrário ao arcano que se não ler, que não se mostra.
O segundo quarteto vem com a alegórica assonância " à luz da lua", sob a qual o poeta, solitariamente, atenua o "desumano desejo de morrer".
Repete-se no primeiro terceto a necessidade de um ser, aqui mais próximo, quase palpável, cujo abraço lhe estenda, "dormente e lasso" ao ser carente.
"Arfante", neste epílogo a fechar com "chave de ouro" a necessidade do poeta de ter consigo não um simples ser "arcano", estranho e enigmático, mas alguém que, ao seu lado, seja-lhe visivelmente claro, aberto e profundamente amado.
Proposital ou intuitivamente, a estrutura do soneto se compõe nessa igual necessidade de completar-se em contagem silábica, como que cadenciando a mesma carência do poeta que, nem ligou pra pra isso na inquieta necessidade do SER.
Hermílio