Soneto do amor que não veio ( EC)
Soneto do amor que não veio (EC)
A cena é primorosa. Na pintura a óleo um misto do êxtase que traz a alegria sendo tragada pela dor. Ambas entranhadas na mesma proporção. A tela de tamanho considerável orna a parede principal da sala de estar do casarão antigo onde vive seus últimos anos Liege Caldaro, uma renomada artista plástica cubana que há décadas reside em uma pequena e sossegada vila do sul da Itália. Fora composta há exatos sessenta anos, quando Liege completava os trinta. Ela grafou ali o que considera a obra que melhor retrata a própria vida a qual não permitiu integrar a coleção respeitada em exposição permanente hoje em Paris. Em frente à tela uma cadeira estilo colonial, de madeira enegrecida, com acabamentos almofadados recobertos de veludo grená que parece dialogar um franco diálogo com aquele deleitável naco de passado. Ambas cúmplices de Liege se completam na história.
Desenha o quadro uma pequena e aconchegante varanda lateral, com vista para um frondoso pomar, um alpendre com escada acimentada de poucos degraus, chão limpo e cuidado, mesa, sofás e cadeiras de vime pintados em branco, na mesa um jarro de água, uma porcelana chinesa em tons de azul recheada de miúdas e coloridas flores do campo intercaladas por rosas em tom vermelho. Completam o cenário alvas guarnições de chá com arremates em dourado, papéis e canetas espalhados, almofadas de pigmentos intensos sobre os sofás. Um atraente canto que curiosamente e em um lampejo tem toda a metade retocada de cinzas, negros e marrons. É isso: a tela em cores divide-se ao meio. Parte do céu é azul, na outra é negra noite. O vaso com flores metade é vibrante a outra são galhos secos e raras pétalas tombadas sobre toalha que de um lado é laranja e outro é nítido desbotar.
A arte choca e extasia. Divide-se sem criar rupturas, é como se num lento processo fosse transmutando. Em um olhar cremos que tudo voltará às cores vivas, em outro seguinte pensamos: será inteira a coloração funesta da pintura. Tem vida, movimento, relevo, perspectiva, contexto, detalhes preciosos, como rotos ficam os tecidos, amarelados os papeis, sem cor as capas dos livros, carcomidos os batentes da porta e janelas.
O que não sabe a velha artista é que uma desconhecida poeta brasileira, sabedora de toda a história que inspirou a tela, encantada com tal acontecido e por ter vivido semelhante destino, compôs isto há várias décadas atrás um soneto como o mesmo título da obra, que reproduzo aqui, para seus deleites.
Pela casa mil rosas espalhando cores
Enfeitei com carinho, alegria intensa em mim.
Buscava a ti encantar, na sedução das flores.
Somente por ti ansiava, neste amor que é assim.
Tua vinda planejei com enlevado apreço.
Com coração preenchido, tanto amor sentido.
Aguardei tua chegada, tu: meu real começo,
Os dias, horas, contava, ter tua voz no ouvido.
Mas eis que a vida muda, e tudo agora é triste.
O tempo se fez cruel e não te fez presente.
Estão murchas as flores, sou infinita dor.
Nada mais me faz rir, minha alegria inexiste.
É pena que não veio sem ti de mim sou ausente.
Vou seguir nesse mundo, encontrarei outro amor?
(Alexandrino ou dodecassílabo com Quartetos em rimas alternadas e Tercetos em cde/cde).
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Pena Que Você Não Veio
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