A morte e o poeta... peça em cinco atos...

Primeiro Ato - Cena 1.

Entra a morte na forma de uma menina e inicia um monólogo...

"A Morte"

eu tenho várias faces, vários seguidores,

vários motivos me permitem celebrar

a dor terrível que se alastra sem cessar

entre os humanos quase sempre sonhadores...

eu habito a noite que conspira sem parar 05

contra a esperança de quem guarda as suas dores

nos cemitérios de onde brotam as minhas flores

com seus perfumes corrompidos pelo ar...

carrego a foice que degola o ser humano

e toda forma de existência animal 10

não poupo nada que respira o gás banal

que faz da vida um deus supremo e soberano...

sou a certeza certamente natural

que abraça o rico, o pobre louco e o bom cigano...

não tenho rosto nem revelo o meu segredo 15

atendo ao nome que define toda sorte

faço da vida meu brinquedo e meu suporte,

sou a própria forma conservada do degredo...

ninguém precisa me temer como inimiga

pois sou o descanso de quem vive na miséria, 20

seja na França, no Brasil ou na Sibéria

deixo sem vida um soberano ou uma formiga...

não tenho rosto e chego sempre de surpresa

somente os deuses se livraram do meu abraço;

eu nunca durmo e quando ataco a minha presa 25

ela definha lentamente no meu laço

como água louca conservada na represa

morrendo aos poucos gota a gota, passo a passo...

adoro os jovens imprudentes e perdidos

que se debruçam pra beijar a minha boca, 30

pobres demônios que celebram iludidos

a vida insana, deturpada e muito louca...

os mais prudentes, mais idosos, me respeitam,

pois já conhecem o caminho da verdade,

ninguém escapa do meu beijo sem maldade 35

e nos meus braços os suicidas se deleitam...

os moribundos já cansados me consolam

enquanto os ricos fazem tudo pra esquecer

da minha face permanente de não-ser

como se a vida não tivesse um preço caro... 40

por isso mesmo sacerdotes se isolam

na inútil fuga do meu beijo doce e raro...

a minha casa é o cemitério aconchegante

de onde contemplo sem pesar qualquer desgraça

de quem insiste em me enganar com vil trapaça 45

pedindo aos deuses outra vida apavorante...

eu tenho um nome conhecido e bem chocante,

ninguém suporta ouvir meu riso como graça,

sou como a sombra permanente que se enlaça

na vida eterna sem sentido e apavorante... 50

chamo-me Morte a dama negra do destino,

única chama da certeza deste mundo,

berço perfeito pra cachorro e pra menino...

chamo-me Morte a musa eterna do profundo

que faz da vida um sonho besta sem memória, 55

sou o manto negro que encobre toda a história...

só não suporto nesta vida os artistas,

esses senhores da trapaça e da mentira

que sempre insistem em fugir da minha mira

com as suas obras geralmente anarquistas... 60

eles trabalham como os deuses imortais

redefinindo a própria vida sem sentido

com suas pinturas, com seus versos irreais,

eles se enganam sem saber que estão perdidos...

quero lançar meu doce escarro num poeta 65

que já plantou em muita gente esta ilusão

de que com arte todo homem se completa

na eternidade de um poema declamado...

irei fazer com que sua pálida razão

se perca agora neste solo calcinado... 70

vamos ouvir os seus lamentos mentirosos

para depois lançar seu corpo nesta cova,

como as carniças de covardes e leprosos

pra alimentar tudo que em mim não se renova...

(aparece o poeta caminhando com uns papéis na mão procurando os entre túmulos um, aparentemente,conhecido...)

lá vem meu prato destilando a sua tristeza 75

para os meus braços de silêncio e solidão

no fim da noite vou levá-lo com certeza

para o meu reino de completa escuridão...

vem meu menino conversar com o coveiro

contar sua história de paixão pro mundo inteiro 80

vem respirar o cheiro azedo do meu corpo

bem devagar como um veneno adocicado...

estou guardando o seu leito (nobre morto)

como um brinquedo raramente conservado...

ficarei aqui como uma sombra transparente 85

vendo de perto o desespero lhe abraçar

até que chegue o meu momento de atuar

como o coveiro solitário e indiferente

que não pergunta pelo nome de quem morre...

ele chegou com seu semblante embrutecido, 90

vou ficar quieto feito um santo adormecido

depois de ter ficado bêbado e de porre...

façam silêncio para ouvir os seus lamentos

ou do contrário vou lançar a minha foice

contra vocês, todos os dias como um acoite 95

fazendo festa dos seus pobres sentimentos...

ele sentou já como um morto à sepultura

- uma paisagem conservada na pintura...

(a morte sai de cena atrás de um túmulo)