Um brinde à verve de Augusto dos Anjos
Verborragia do preconceito
Tusso a hipocrisia enquanto escarro,
dissimuladamente, o preconceito.
E sinto, assim, aliviar-me o peito
do asco abjeto em que me agarro.
O bem é construção feita barro
pronta para ruir a qualquer custo.
Mas, mesmo assim, ainda me assusto
quando no cuspe nada esse catarro.
Tenho tussido muito hoje em dia
e baforado minha hipocrisia
pelas narinas do homen perfeito.
O homen puro e imaculado,
que vive junto a outros, agarrado...
acumulando escarro no seu peito.
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A morte e o poeta
—Vim buscar-te, pois é chegada a hora!
Não haverá clemência, poeta!
Escolhe a poesia predileta...
Prepara-te! Eu Vou levar-te embora.
—Não poderias vir em outra hora?
Indaga o poeta, então, aflito...
Tenho um poema ainda não escrito;
deixa-me, por favor, que faça agora.
—Viveste a poesia toda a vida;
Minha missão terá de ser cumprida;
Não te concedo mais um só minuto.
Sofre o vate a sua agonia,
mas antes pôde ver a poesia
carpir o verso triste do seu luto
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Execução
Vai-se a luz da vida trás da morte,
qual procissão de filhos subalternos
às chamas flamejantes dos infernos,
que selam, cá na terra, antiga sorte.
A dor se faz premer inda mais forte
enquanto a guilhotina se levanta
e a lâmina pungente grita e canta
e anuncia à vértebra, o corte.
O riso do algoz ecoa ao céu
e pinta, no silêncio do réu,
a obra terminal da criação:
Entre a expectativa e o desejo,
a morte calmamente dá um beijo
e o sangue sai em busca do perdão.
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Psicografia de uma sombra
Eu sou a própria sombra de Augusto,
desassombrada, ávida de morte.
A sombra triste, aquela triste sorte,
que o seguiu qual prócere dos justos.
Sou a sombra que deu-lhe o curvo porte;
Dama de honor de sua alma dura...
Espectral... eu sou a tal figura
que fez-lhe em vida súdito da morte.
Eu sou também a sombra dos sonetos;
de cada verso único, perfeito...
com que bendisse a morte ou a vida.
Eu sou a própria sombra de Augusto,
que não morreu e vive a todo custo
em busca de um verso suicida.
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Metáfora da reencarnação
O sangue antepõe-se ao gemido
que anuncia a morte iminente!
A dor desaparece de repente
e a vida passa ter novo sentido.
O homem, ora morto, dividido
entre a realidade e a crença,
procura qualquer coisa que o convença
de que será por Deus reconhecido.
E Deus, em seu juízo, onisciente
declara ser o homem inocente
de todos os pecados cometidos.
E, assim, o homem morto vira santo!
E finalmente, como por encanto,
a dor volta em busca dos gemidos.
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Soneto da lugubridade
Quem beijou-lhe a boca traiçoeira
e dividiu com ela algum segredo,
sentiu, da poesia, o gosto azedo
de quem sorveu a morte a vida inteira.
A morte que alugou a cumeeira
e o teto que o poeta se servia
para cobrir de luto a poesia
ao sepultar as dores corriqueiras.
A morte, tão amiga e companheira,
com quem subiu a última ladeira
quando abduziu-se do cortejo.
A mesma que na boca do poeta,
como uma dama, sempre tão discreta,
oferecia a língua para o beijo.
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Monólogo do seio direito.
Vivo a desmamar cruel saudade
de quando, junto a ti, compadecia...
Eu fui indene à patogenia
que mutilou bem mais que a vaidade.
Eu vi o sangue encher a cavidade!
Eu vi murchar o pomo ao meu lado!
Eu vi um viço inteiro sepultado,
depois de anos de cumplicidade!
Eu sou, dos dois, a túmida metade
que soma o percentil de morbidade
nas estatísticas do sofrimento.
Por um acaso, o seio direito,
que, hoje só, aplaca o preconceito
e a dor que, ora sozinho, amamento.
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O só e sua sombra
Era um morto-vivo. Um vegetal.
Um faz-de-conta sem qualquer história,
que cedo deu a mão à palmatória
e fez co'a morte pacto conjugal.
Natimorto -um vácuo cerebral-
não via, não falava, não sentia...
Não sabia, de fato, se existia;
se era gente ou um animal.
Aos vinte e cinco anos dessa vida,
-nem mesmo anunciou a despedida-
fechou os olhos, cego, sem lembrança...
e faleceu sem que tenha vivido,
deixando, de herança num gemido,
a dor que carregou desde criança.
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