Um brinde à verve de Augusto dos Anjos

Verborragia do preconceito

Tusso a hipocrisia enquanto escarro,

dissimuladamente, o preconceito.

E sinto, assim, aliviar-me o peito

do asco abjeto em que me agarro.

O bem é construção feita barro

pronta para ruir a qualquer custo.

Mas, mesmo assim, ainda me assusto

quando no cuspe nada esse catarro.

Tenho tussido muito hoje em dia

e baforado minha hipocrisia

pelas narinas do homen perfeito.

O homen puro e imaculado,

que vive junto a outros, agarrado...

acumulando escarro no seu peito.

************************

A morte e o poeta

—Vim buscar-te, pois é chegada a hora!

Não haverá clemência, poeta!

Escolhe a poesia predileta...

Prepara-te! Eu Vou levar-te embora.

—Não poderias vir em outra hora?

Indaga o poeta, então, aflito...

Tenho um poema ainda não escrito;

deixa-me, por favor, que faça agora.

—Viveste a poesia toda a vida;

Minha missão terá de ser cumprida;

Não te concedo mais um só minuto.

Sofre o vate a sua agonia,

mas antes pôde ver a poesia

carpir o verso triste do seu luto

***********************

Execução

Vai-se a luz da vida trás da morte,

qual procissão de filhos subalternos

às chamas flamejantes dos infernos,

que selam, cá na terra, antiga sorte.

A dor se faz premer inda mais forte

enquanto a guilhotina se levanta

e a lâmina pungente grita e canta

e anuncia à vértebra, o corte.

O riso do algoz ecoa ao céu

e pinta, no silêncio do réu,

a obra terminal da criação:

Entre a expectativa e o desejo,

a morte calmamente dá um beijo

e o sangue sai em busca do perdão.

**************************

Psicografia de uma sombra

Eu sou a própria sombra de Augusto,

desassombrada, ávida de morte.

A sombra triste, aquela triste sorte,

que o seguiu qual prócere dos justos.

Sou a sombra que deu-lhe o curvo porte;

Dama de honor de sua alma dura...

Espectral... eu sou a tal figura

que fez-lhe em vida súdito da morte.

Eu sou também a sombra dos sonetos;

de cada verso único, perfeito...

com que bendisse a morte ou a vida.

Eu sou a própria sombra de Augusto,

que não morreu e vive a todo custo

em busca de um verso suicida.

**********************

Metáfora da reencarnação

O sangue antepõe-se ao gemido

que anuncia a morte iminente!

A dor desaparece de repente

e a vida passa ter novo sentido.

O homem, ora morto, dividido

entre a realidade e a crença,

procura qualquer coisa que o convença

de que será por Deus reconhecido.

E Deus, em seu juízo, onisciente

declara ser o homem inocente

de todos os pecados cometidos.

E, assim, o homem morto vira santo!

E finalmente, como por encanto,

a dor volta em busca dos gemidos.

*************************

Soneto da lugubridade

Quem beijou-lhe a boca traiçoeira

e dividiu com ela algum segredo,

sentiu, da poesia, o gosto azedo

de quem sorveu a morte a vida inteira.

A morte que alugou a cumeeira

e o teto que o poeta se servia

para cobrir de luto a poesia

ao sepultar as dores corriqueiras.

A morte, tão amiga e companheira,

com quem subiu a última ladeira

quando abduziu-se do cortejo.

A mesma que na boca do poeta,

como uma dama, sempre tão discreta,

oferecia a língua para o beijo.

*********************

Monólogo do seio direito.

Vivo a desmamar cruel saudade

de quando, junto a ti, compadecia...

Eu fui indene à patogenia

que mutilou bem mais que a vaidade.

Eu vi o sangue encher a cavidade!

Eu vi murchar o pomo ao meu lado!

Eu vi um viço inteiro sepultado,

depois de anos de cumplicidade!

Eu sou, dos dois, a túmida metade

que soma o percentil de morbidade

nas estatísticas do sofrimento.

Por um acaso, o seio direito,

que, hoje só, aplaca o preconceito

e a dor que, ora sozinho, amamento.

****************************

O só e sua sombra

Era um morto-vivo. Um vegetal.

Um faz-de-conta sem qualquer história,

que cedo deu a mão à palmatória

e fez co'a morte pacto conjugal.

Natimorto -um vácuo cerebral-

não via, não falava, não sentia...

Não sabia, de fato, se existia;

se era gente ou um animal.

Aos vinte e cinco anos dessa vida,

-nem mesmo anunciou a despedida-

fechou os olhos, cego, sem lembrança...

e faleceu sem que tenha vivido,

deixando, de herança num gemido,

a dor que carregou desde criança.

*************************

Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 10/10/2009
Reeditado em 10/10/2009
Código do texto: T1857956
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.