A TROVA E A IMORTALIDADE

Coroa de sonetos em louvor à trova

Em 1992 o emérito poeta, editor e promotor cultural Eno Throfro Wanke idealizou um livro de "sonetos sobre a trova" e onvocou os confrades a participarem com um soneto. Eu realizei o trabalho a seguir - Coroa de Sonetos -, que foi incluiu na coletânea:

I - A POBREZA DA TROVA

10-12-92

"A trova, dizes, não tem vôo, é pobre,

não conta nos brasões da Academia.

Que poeta se imortalizaria

compondo a trova, ainda que o brilho sobre?

O poeta há de crescer no verso nobre,

subir aos céus sem fim da fantasia.

Jamais ficar restrito à linha e a estria

do compasso que mede o sino em dobre.

Nunca se alcançará sem vôo alto,

sem a subida ao cume do Himalaia

- sair do terra a terra, chão e asfalto.

Sem vôo, dizes por fim - vãs pabulagens -,

mesmo a beleza da mais rica alfaia

não marca a glória das reais paisagens."

II - LUZES DA TROVA

0-12-92

Não marca a glória das reais paisagens,

mas como o pirilampo fosforeia.

A trova tem as luzes, sons e imagens

com que se canta o amor e a dor pranteia.

Se queres, meu amigo, as vãs roupagens

do brilho fátuo que se acende e alteia

no esforço de marcadas tatuagens,

hás de ir ao fogo que o vulcão boleia.

Uma trova é um extrato ou um fingimento,

bem diz Pessoa - é o mais fiel invento

das lágrimas choradas de verdade!

Fingido é o trovador e finge tanto

que chega a ser piegas no seu pranto,

não cobre o chão de luzes e vaidade.

III - A TROVA E OS SÁBIOS

10-12-92

Não cobre o chão de luzes e vaidade,

porém acolhe, a trova, os homens sábios.

Os que estudam com fé os alfarrábios

são simples sem fugir à realidade.

O néscio é que não lê nos astrolábios

e não busca ou investiga a qualidade.

Tolo, não grava na simplicidade,

a grandeza da luz sem ter ressábios.

O trovador é simples, mas proclama,

trabalha o eterno, acende a eterna chama

que imortaliza sem trivialidade.

Não se põe como o néscio ensimesmado,

porém rendilha a trova, é estimulado

no seu vestido de simplicidade.

IV - O TROVADOR

IRMÃO DE SÃO FRANCISCO

10-12-92

No seu vestido de simplicidade

O trovador tem o que quer, e basta!

Se não exibe o luxo, não se afasta

do pouco que lhe dá felicidade.

No luxo cria-se a rivalidade

em que o ódio se anima e se repasta.

Ao trovador todo o rancor agasta

agasta e humilha a frívola vaidade...

O trovador, irmão de São Francisco,

prefere as luzes fracas ao corisco,

quer a simplicidade das imagens.

Na glória de ser simples, desfigura,

nega os que buscam a literatura

na vastidão desértica - as miragens!

V - A ARCA DA ALIANÇA

10-12-92

Na vastidão desértica, as miragens

oferecem oásis de ilusão!

Buscamo-los, e adeus! Figuração,

verdores irreais e não paisagens...

A glória é assim. Pousadas e estalagens

ilusórias a põem em nossa mão.

Cedo porém, sentimos a visão

esvair-se em fumaças e visagens...

Sendo a glória fugaz, vai-se tão breve,

que mal a percebemos; a água ferve

e se evapora sem maior delonga...

Porque é real e humilde, em sua andança.

prefere a trova a Arca da Aliança,

não anda largos mares, não perlonga...

VI - O CORAÇÃO DA POÉTICA

15-02-93

Não anda largos mares, não perlonga,

o coração humano, em seus caminhos,

as curvas e os esconsos remoínhos,

mas, só persegue o amor e o amor alonga.

O coração não cria nem ditonga

a fúria elementar, os torvelinhos.

Busca a simplicidade, os alvos linhos,

a mansa paz que a vida nos prolonga.

Procura, busca o coração humano,

no seu lento pulsar de amor e engano,

a toada, o fado, a valsa, o tango, a conga...

Compare agora a trova - é o coração

da poética. Por que, nessa razão,

não chega nunca a trova a idade longa?

VII - A TROVA AUGUSTA

12-03-93

Não chega nunca, a trova, a idade longa,

- é uma proclamação dita acaso.

O trovador não reconhece o prazo,

nem muda a trova na real milonga.

Nos campos do sertão grita a araponga

chamando o companheiro à hora do ocaso.

O trovador soluça em campo raso,

descanta a sua trova, a alma pionga.

Soluça, grita, ou estribilha o canto

do seu pesar, e o seu tormento é tanto,

que a trova curte a dor e em dor se veste.

E sendo o seu remédio a trova augusta,

ao trabalhá-la com amor, lhe assusta

a luxúria poética inconteste.

VIII - A HERÁLDICA DO VERSO

13-03.93

A luxúria poética inconteste

vem marcada em não mais que uma quadrinha.

Crescendo em espiral de Leste a Oeste,

de Norte a Sul se aclara e apergaminha.

E vai, e encurva, e enroda, e ouro, se alinha

para a jóia raríssima que ateste

em seu soberbo colo de rainha

a cantiga de paz que a paz apreste.

Na heráldica do verso um simples risco

põe o ritmo na trova e acende a rima

com luz de sol sem fogo de corisco.

Ao rebuscar sua matéria prima,

o trovador limpa-a de sujo e cisco,

não usa o fogo que a matéria anima.

IX - A PUREZA DA TROVA

13-03-93

Não usa o fogo que a matéria anima,

nunca a expressão erótica ou o obsceno.

Não tem nas suas glândulas a enzima

do frívolo, do fútil, do pequeno.

A trova é pura, é mansa, é como a esgrima

de duas rosas rubras no sereno;

como um sopro de amor, como a supima

consagração do Cristo Nazareno...

Não comporta a maldade ou a escravidão,

o tétrico e o cruel, somente encima

a aura de luz que marca a boa ação.

A trova não condiz com a grossa lima

que rói a alma da gente, o coração,

na embriaguez voluptuosa da vindima.

X - DEUS E O TROVADOR

13-03-93

Na embriaguez voluptuosa da vindima,

nasce o fogo terrível das paixões;

forjam-se os crimes e as mais vis ações

- o mal conjunge o mal e se aproxima.

Quem sabe que Deus ri nas orações

mais simples e é no simples que se arrima

para a glória maior, que a vida anima,

aprende do mais simples as lições.

Assim, o trovador quando compõe,

em síntese seu quadro, aí dispõe

em tons de amor, a mágoa que lhe reste.

Vêm Deus e o trovador, vêm de parelha,

dizer que em fogo fátuo, sem centelha,

A trova, muito simples, não se veste.

XI A SIMPLICIDADE DA TROVA

13-03-93

A trova, muito simples, não se veste

do extraordinário, do excessivo luxo.

Tem luz de lua cheia no debuxo,

tem sol de amor, ainda que o frio creste.

O trovador dispõe do mundo e investe

o mel no sofrimento, abre em repuxo

a cadeia de luzes, como um bruxo

faz alegre a tristeza do cipreste.

Se tão simples vem tudo em seu trabalho,

é que a bigorna, o ferro e o próprio malho

respingam dor e amor em solo agreste.

Ainda agora, criava uma quadrinha,

e ao concluí-la etérea, alva, mansinha

- tinha o fulgor do sol no azul celeste.

XII - A QUADRINHA DE AMOR

13-03-93

Tinha o fulgor do sol no azul celeste,

o albor do amanhecer em solo raso

- a quadrinha de amor em que puseste

os raios do arrebol à hora do ocaso.

A trova vale ouro; e bem quiseste

o contraste de negro e luz, sem prazo,

para a contemplação que se reveste

de fantasia e sonho por acaso.

Era o espertar da luz nascendo o dia,

que se mudou no ocaso pela esgrima

da ilusão que idealiza a ave-maria.

O trovador é assim, tem arte e estima,

para criar de nada e fantasia,

à vista da quadrinha, cuja rima...

XIII - SONETO EM LOUVOR À TROVA

13-03-93

À vista da quadrinha, cuja rima

vinha engastada de brilhantes raros,

produziste de um jato e sem reparos,

a fina jóia, alvíssima, supima!

Que te direi, quando o soneto encima

luzes e cores, quedas, desamparos

de mortas estruturas, dinossauros

ou crostas milenares, força de ímã?

É a hora em que se impõe a reflexão,

e hei de pensar no que dizer-te, em vão,

se a palavra é mesquinha e não se anima.

Quis um soneto de louvor à trova

e o fiz tão simples como a lua nova,

quando falei em termos de obra prima.

XIV - LOUVOR AOS MESTRES

13-03-93

Quando falei em termos de obra prima,

à vista de uma trova, a mais singela,

não faltou quem pintasse uma aquarela

em nuanças que a ambas aproxima.

Houve mais quem erguesse a alta Estela

para inscrição da trova, ritmo e rima,

a comprovar que a arte mais se anima

quando andam em compasso essa e aquela.

Zélio, B. Tigre e Aldemar Tavares,

Rodolfo e Luiz Otávio - são altares

da trova simples que de luz se veste.

E agora hás de curvar-te ao próprio erro,

de quando à trova desejaste o enterro:

"Trova, literatura? Ora!" - opuseste.

SÍNTESE

10-12-92

"Trova, literatura? Ora!" - opuseste,

quando falei em termos de obra prima

à vista da quadrinha, cuja rima

tinha o fulgor do sol no azul celeste. -

"A trova, muito simples, não se veste

na embriaguez voluptuosa da vindima,

não usa o fogo que a matéria anima,

a luxúria poética inconteste.

Não chega nunca, a trova, à idade longa,

não anda largos mares, não perlonga

na vastidão desértica, as miragens.

No seu vestido de simplicidade,

não cobre o chão de luzes e vaidade,

não marca a glória das reais paisagens”.

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