Seis sonetos de Borges
A CHUVA
De repente a tarde se aclarou
Pois caía uma chuva minuciosa.
Caía ou caiu, pois chuva é coisa
Que indubitavelmente já passou.
Quem a ouviu cair e não recobrou
O tempo em que a sorte piedosa
Revelou-lhe a flor chamada rosa
E o colorido curioso que resultou?
Chuva que embaça os cristais
Alegrará, em longínquos locais
De alguma parreira a escura uva
Pátio que já não há. A molhada
Tarde traz-me a voz tão desejada:
Meu pai voltando vivo após a chuva.
EDGAR ALLAN POE
Marmóreo portento, negra anatomia
Ultrajada pelos vermes sepulcrais
Em triunfo, e da morte os glaciais
Mistérios reuniu. Não os temia.
Temia outra sombra, a amorosa
As alegrias que toda gente sente:
Não foi cegado pelo metal luzente
Da lousa tumular, senão da rosa.
Como do espelho ao outro lado
Entregue a complexos solitários
A criar mil pesadelos destinado
Talvez, do lado oposto à existência
Prossiga a criar, horrendos, vários
Monstros bem além da nossa ciência.
OS ENIGMAS
Serei eu, o que agora vai cantando
Amanhã o misterioso, o ido morto
Morador de algum mágico, absorto
Mundo sem antes, depois ou quando?
Assim dizem os místicos. Creio-me
Indigno porém de Inferno ou Paraíso
E nada disso almejo. Impreciso
Como Proteu meu mundo veio-me.
A que labirinto, a que brancura
Cega de esplendor a minha sorte
Será entregue, ao fim da aventura
Na curiosa experiência da morte?
Quero beber seu cristalino olvido
Ser sempre, sem jamais ter sido.
O VINHO
Em que reino, que século, sob qual silente
Conjuntura de astros, em qual secreto dia
Que o mármore não salvou, veio a ingente
E incomum idéia de criar a alegria?
Em outonos dourados foi criada. O vinho
Fluindo rubro ao longo das gerações
Como o rio do tempo no árduo caminho
Dá-nos sua música, seu fogo e seus leões.
Na noite jubilosa ou na jornada adversa
Exalta a alegria e nos mitiga o espanto.
E o novo ditirambo que por ora canto
Outrora foi cantado em árabe ou persa.
Vinho, ensina-me a olhar minha história
Qual fora ela já a cinza fria da memória.
O SONHO
Se o sonho fosse, como dizem, uma
Trégua, um puro repouso da mente
Por que, se te despertam bruscamente
Sentes que privaram-te de alguma
Rica fortuna? Foi tão cedo! A hora
Nos despoja de um bem inconcebível
Tão íntimo, apenas traduzível
Por um torpor que a vigília penhora
Com sonhos, que bem podem ser
Reflexos truncados, tesouros velados
De um local do qual estamos afastados
E que o espelho do dia tende a perverter.
Quem serás, esta noite, em teu escuro
Sonho, do outro lado do teu muro?
O MAR
A alma em seu terror sonhava
Mitologias e cosmogonias...
Mas bem antes que houvesse dias
O mar, sempre o mar, ali estava.
Quem é o mar? Quem é o violento
E antigo ser que rói os pilares
Da terra, um só e muitos mares
Abismo e esplendor e sorte e vento?
Quem o vê, pela primeira vez o vê
Sempre. O espanto pelas coisas
Elementais nos deixa, as formosas
Tardes, a lua, o brilho da fogueira.
Quem é o mar? Quem sou eu? Você
Um dia saberá, na hora derradeira.
– Jorge Luis Borges –
(traduzidos com todas as licenças poéticas possíveis)