Amarelo Gelo - Capítulo 3

Odeio essa cigarra quando abro a porta.

- Ei maldito,porque toda vez tu troca o som dessa cigarra hein? – grito com Coelho enquanto me desvio dos caixas de som, amplificadores e parafernálias eletrônicas.

Ele nem me ouve, com um fone gigantesco nas orelhas, a cabeça balançando igual a um retardado, sentando num banquinho meio curvado, o boné para trás. Gosto desse infeliz, lembra meu filho, o mesmo jeito e idade. Distraído mexendo com qualquer equipamento de som como habitualmente acontece quando entro aqui.

Toco em seu ombro. – Acorda moleque! Que susto o danado leva, tira o fone dos ouvidos, me abraça.

- Cara! Cadê você sábado?! Showzão dos Besouros lá no Café, foi muito foda!

- Eu andei ocupado nesse fim de semana, tem uma filha da puta me seguindo e tô querendo me livrar dela. Mas antes quero descobrir quem é e tô precisando de áudio de qualidade. Consegue me entender?

Ele coloca as mãos na cintura, olha para baixo pensando. A moralidade dele é que me fode.

- Dick eu não acho certo você espionar os outros. Tua paranóia é sem motivo. Nunca vi ninguém atrás de tu nem soube de nada que tenha te ocorrido que precisasse de toda essa vigilância.

- Você não faz ideia de como é minha vida, melhor fazer do jeito que te digo, confiar em mim sabe? – o moleque é receoso demais, sempre fica um pé atrás – Vamos Coelho, você sabe que eu nunca te sacanearia, nem conto pra turma quem me fornece os melhores equipamentos da cidade se eu for pego.

- Coelho não, Sombra, sabe que não gosto que me chame de Coelho. Respeite meu trabalho Dick ou vai querer que te chame pelo nome?

- Tá bem, tá bem! – é bom pisar no calo dos outros pra mudar o tom da conversa e ficar mais fácil negociar – Vamos fazer negócio, te compro aqui e tu instala lá em casa, já que tu saca mais de acústica do que eu.

- Que tipo de material dessa vez? Microfones discretos e com alta potência de captação ou antenas com um raio amplo de atuação? Grampos? – ele pensou um pouco – Tu me disse pra instalar na tua casa? Ouvi bem?

Era essa a parte que eu estava achando mais cabulosa, cedo ou tarde alguém teria que descobrir onde moro, mas para esse garoto não tem problema, gosto dele, um menino bom com o único defeito de não gostar de beber. Dá para perdoar esse.

- É isso mesmo Sombra, a bronca dessa vez é mais séria. Acredito que tem alguém me espionando em casa, aquela filha da puta que te disse, ela anda rondando meu barraco. Quero você pra montar todo o ambiente.

Você tinha que ver o brilho nos olhos de Sombra. Senti que a cabeça fervilhava de idéias, louco para montar um equipamento completo de som com todo tipo de loucura tecnológica que conseguia imaginar, ou talvez por ter convidado ele, de forma indireta, a ir lá em casa. Nossa amizade monta coisa de dois anos, mas nunca o levei na minha toca, sempre preferi total sigilo de onde moro, nem meu telefone dei.

- Certo! Vamos começar então a escolher os equipamentos, você me mostrando o que quer de acordo com a situação de captação e aí te indico os melhores microfones.

Demos um passeio pela loja, pedi um microfone para ficar em meu quarto ligado enquanto eu durmo ou não estou em casa, um microfone para cada cômodo do meu esconderijo, não que sejam muitos – uma sala, uma cozinha, um quarto da bagunça e o terraço – dois microfones externos para pegar a parte da frente e a de trás do quintal, não quero nada no beco e uma antena para pegar as conversas num raio de cem metros de minha casa – foi mais ou menos a distância que calculei do portão da minha casa até onde tava aquele grupo indecifrável conversando. Depois de receber a facada na carteira acertei com ele o sábado, dei o endereço, expliquei como chegar. É hora do bar.

Nada alivia mais um homem e engrandece sua alma do que o bar, não existe melhor ambiente nem lazer mais proveitoso que esse. Acredito, com toda a experiência que carrego nas costas, na fundamental importância do bar na criação do caráter do homem. É só observar os diferentes sujeitos do sexo masculino e logo ficará claro qual freqüenta, ou freqüentou, um bar ao longo de sua vida. Os que têm maior facilidade de se comunicar com os mais diferentes tipos de pessoas, maior capacidade de perceber o que se passa em um ambiente, conseguem se livrar de qualquer enrascada é aquele que sempre esteve em bares, dos mais diferentes tipos, os outros tipos de sujeitos, introvertidos, reservados e pouco afeitos aos jogos sociais são os tristes homens que não tiveram a oportunidade de ir a um bar.

Além do bar ser esse maravilhoso ambiente, algo mais brilhante e de mais importante nas relações sociais se encontra lá: a bebida. Adoraria conhecer quem descobriu o processo de fabricar a bebida, saber quem foi o primeiro a criar um líquido com a natureza de transformar um homem patético em um exemplo de homem. Nada se compara aos efeitos da bebida nos sujeitos, as mais diversas, e cômicas, reações podem dar o ar da graça. Conheci sujeitos que depois de bêbados eram donos das mais valiosas fortunas, em outras situações tornavam-se gênios da informação, todo o conhecimento detinham, acerca de tudo, conheci malucos que diziam serem amigos das mais famosas personalidades, entre outras milhares de situações proporcionadas pela bebida. As mulheres deveriam ser gratas aos miraculosos efeitos do álcool no homem, graças a essa substância um simples trepada pode se tornar um maratona sexual de horas de duração, e a feiúra de algumas se apaga diante da mágica do álcool no sangue.

Por isso tudo agora estou indo ao bar. Não apenas por isso claro, não se bebe sozinho em canto nenhum do universo, se existe vida inteligente fora desta merda de planeta eles bebem sempre acompanhados de alguém além da loira.

O bar é do jeito que gosto, muitas mesas espalhadas por cima da calçada e no meio da rua, garçons alucinados para lá e para cá tentando servir os clientes sedentos, pessoas e mais pessoas, burburinho, risos e muito acontecendo nas entrelinhas da noite. Mas isso é num dia normal, numa sexta ou sábado, não numa quarta chuvosa. Merda de dia. A rua está sem as mesas, apenas dentro do bar e nos pontos da calçada que oferecem alguma proteção contra a chuva. Os garçons estão no balcão jogando conversa fora para passar o tempo até a hora de largar, apenas umas cinco ou seis mesas estão com clientes, e mesmo assim poucos, dois casais e grupos de poucos amigos.

Olho para um lado e outro, a figura que espero ainda não chegou, me sento num dos bancos do balcão peço uma dose de cana com uma fatia de limão. Desce queimando, rasgando tudo por dentro, mas ainda assim continua bom. Acendo um cigarro esperando o tempo passar.