EU NÃO FUI - disse a vaca; EU NÃO FUI - disse o burro...
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Parte inicial deste texto inspirada nos contos infantis de
Ana Maria Machado e Christian Voltz
Obs.:
Ideal para a montagem de uma peça teatral para adultos.
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A velhinha, dona Michelina, todas as madrugadas,
no sítio onde mora, tira leite de sua vaca malhada.
- Bom Dia, minha vaquinha! Como está sua família?
Vim, tirar o leite de todo dia, mas não a vasilha completa.
É só meio pote desta vez, para a coalhada da minha neta.
Sei que você não sabe, mas neta é a filha da minha filha.
- Bom Dia, dona Michelina!
Não entendo nada de neta, mas entendo de nata.
O leite que vou lhe dar, coalha que é uma maravilha.
Eu estava guardando pra minha filha, aquela novilha
que tá ali me esperando pra gente entrar na mata.
Leite tirado e um afago na vaquinha antes de ir embora.
De repente, a velhinha se vira de uma forma estranha:
é que passeia em seus pés uma pequena aranha.
Com o susto, ficou parada; aí, levou uma marrada forte,
tão forte que caiu estatelada, quebrando o pequeno pote.
- Foi você, sua vaca malhada, desgraçada,
que deu no meu traseiro essa baita chifrada?...
Pois saiba que vou lhe dar 25 chibatadas, 05 por mês: pela
marrada, p/susto, p/pote, p/aranha e pelo leite derramado.
- Eu não fui, dona Michelina, nem fui eu que comecei!
Foi o burro que, por sua vez, me deu uma patada.
Eu quis responder-lhe com uma chifrada, mas errei.
Agora,nem adianta chorar sobre a coalhada derramada?!...
- Então, foi você, seu burro analfabeto, que tá aí quieto,
mas deu um coice na vaca malhada e ela me deu uma chifrada?
Não se recorda?!!"... Pois vai levar três chicotadas de uma vez:
uma pela burrice e outras duas pela demência e pela estupidez!!...
- Eu não fui, minha senhora, mas lembrei agora:
Foi a cabra, que também me deu uma chifrada.
Como só sei me defender com coice ou marrada,
acertei, sem querer, o traseiro da vaca malhada.
- Pois então essa cabra vai levar logo seis chibatadas.
Aí, a cabra não quis conversa, deu no pé, caiu fora.
- Ei, volte aqui, sua cabra safada!
E a cabra voltou, focinho ensanguentado.
- .Foi você, sua cabrita sem vergonha,
que chifrou aquele jumento pamonha,
e o jumento deu um coice na vaca malhada,
e a vaca, sem querer, me deu uma chifrada?
- Eu não fui, não, dona Michelina!
Foi o seu cãozinho, esse estuprador,
que me confundiu com uma cadela e me beijou.
Como eu reagi, ele mordeu a minha narina.
E continuou:
Aí, eu quis chifrar o bucho desse cão cretino,
mas errei; acabei furando a pança do vizinho,
esse bestão sem tino, que já está batendo pino...
Além de burro, está sem memória, o coitadinho!
- Foi você, então, meu cãozinho de estimação,
que iniciou toda essa confusão (?): feriu a cabrita,
que feriu o burro, que feriu a vaca que me pôs no chão,
e eu quebrei o balde, derramei o leite e gritei aflita...
- Eu não fui, não, minha dona!
Foi o diacho dessa pulga que não me abandona.
Quando vou mordê-la ela se esconde e fica braba.
Numa dessas eu errei e mordi o focinho da cabra.
(Continuou, aperreado*, como um fiel fanatizado):
- A gente mora num mesmo lar, então não me bata!
A senhora precisa parar de bater nos pobres vira-latas!...
Nem sabe que essa pulga seu marido trouxe lá da caserna.
Eu é que a aguento, dia e noite com o rabo entre as pernas.
- Ah, foi você, dona pulga?... Cadê você, que ninguém vê?
Nojenta, depois que picou meu cão, fez que desapareceu!
E meu cão, agoniado, feriu a venta da cabra, sem perceber.
E a cabra, com medo de ser estuprada, correu e se escondeu.
- Na fuga, passou por baixo do burro e lhe deu uma chifrada.
E o burro, perto da vaca, deu-lhe um coice, sem querer.
E a vaca por certo com medo da aranha, me deu uma marrada...
Então, dona pulga, a senhora ainda diz que não foi culpada?!...
- Eu não fui, não, dona Michelina! Ora, que chateação!!...
(Grita a pulga, que entre os pelos do cãozinho se escondeu;
por sinal, cãozinho que também era seu, e de estimação)...
Aqui tá feito eleição dos homens: só se ganha no tapetão.
- A senhora veio sugar leite pra coalhada da neta. Perdeu.
E eu, pras minhas larvas, ganhei o sangue que Deus me deu.
A senhora tem que saber o que é perder e o que é ganhar.
No campo, ganhador trabalha, e perdedor tem que esperar.
Continuou, fazendo comparações:
- A senhora não viu o que aconteceu no Brasil?!...
21 anos de ditadura, muitos mortos e desaparecidos.
Não se culpou nenhum ditador ou delator, militar ou civil,
pelo sangue derramado dos jovens nos quartéis detidos!!...
- Aí, 34 anos depois, ditadores e suas larvas voltam ao poder,
ocupam cargos relevantes e, após 4 anos, tentam se reeleger.
Como a pulga mais sedenta não consegue novo mandato, tenta
matar a Democracia: terror no aeroporto... tudo se arrebenta...
Que bom pra mim seria, hein! Sangue derramado por todo lado,
de civis assassinados e de inocentes esmagados e mutilados!...
(Enquanto diz isso, a pulga se lambe, imaginando-se saciada!)
No outro golpe também foi assim: bico calado, nenhum culpado.
- Nenhum general, nenhum capitão, nenhum ser influente...
Ah, sim, sobrou só pros fanáticos, pobres "zés ninguém"!!...
E a senhora, dona Michelina, ainda perseguindo inocentes;
chicoteando a gente e tirando o leite de quem não tem...
(Como pulga é inseto que não voa, avesso a repelentes,
coragem de fêmea destemida, ela persiste na indagação):
- Responda agora, minha velhinha, se a senhora foi ou não,
por tudo o que agora aconteceu, responsável ou conivente?
- Conivente, eu?!... Jamais me meti em qualquer tramoia!
Meu medo - fala calmamente - digo a vocês em segredo -
é que quebrei o pote em que meu marido guardava as joias,
que ninguém sabe qual general recebeu ou quem vendeu!
- NÃO FUI EU..., NÃO FUI EU..., - graças a "Deus"!...
- Mas, que "deus" é esse, dona Michelina,
misturado com ouro, diamantes e joias finas?!...
- Não sei! Não sei! Só sei que o meu "deus" é a minha grei.
e digo, mais uma vez, que "Minhas joias ainda são vocês".
Aí, todos os irracionais, vertebrados e invertebrados,
batem patas, se confabulam e, depois de chicoteados,
se calam, conformados.
RESOOMER:
"Os fascistas do futuro (que é hoje) não vão ter aquele estereótipo
de Hitler ou Mussolini. Não vão ter aquele jeito de militar durão.
Vão ser homens e mulheres falando tudo aquilo que a maioria
das pessoas bem intencionadas quer ouvir, sobre bondade,
família, bons costumes,religião e ética. É exatamente nessa
hora que vai surgir o novo demônio, e poucos (dos ainda vivos)
vão perceber que a história está se repetindo" (José Saramago).
ANISTIA, NÃO!... ANISTIA, NÃO!... ANISTIA, NÃO!...
(fernandoafreire.net)
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(*) aperreado" - originado de "perro": cão em espanhol.
Obs.: grifos nossos, no excerto de Saramago.
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